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O presente volume está por isso mesmo, como o primeiro, muito longe de ser a expressão integral a que aspirávamos. Entre outros capitulos deixaram de nos ser envia- dos os que se occupavam dos seguintes assunti)^ { Cerâmica Por- tuguesa. Escultura e Pintura emPor^u^al^J Lingua Portuguesa (sui evolução no Brasil e em i^octugai ), O Lyrismo Português. A falta d'estes artigos faz-se viv,^»nenie ^sentir, é evidente. En- tretanto alguns houve que, dada a natureza dos seus assuntos, foi absolutamente necessário entregar a novos collaboradores. Refi- ro-me aos que, devendo constituir uma como que Introducção es- thetico-geographica ao volume ii, descreveriam O País Português, O Povo Português, As Praias e as estações de aguas em Portugal. VI Advertência preliminar Sem a apresentação d'esses tres números, o 2.® volume teria de ser adiado porventura sine die; e mais valia publicá-lo, ainda que incompleto, desde que o seu plano se definisse. Primitivamente dirigira-me eu ao Sr. Ramalho Ortigão e pedi- ra-lhe que se dignasse acceitar a redacção dos citados tres artigos. Apesar, porem, da minha insistência, o illustre escritor declinava o encargo numa carta em que me dizia não se achar, ao tempo, no estado de espirito necessário «para formular esse documento de sorridente carinho, para escrever as doces e coloridas pagi- nas que nem escrevera já, nem de modo algum poderia escrever agora por falta de azul e de rosa em que molhar a ferrugenta penna». Sendo porem, como disse, absolutamente necessário dar um successor ao Sr. Ramalho Ortigão, viu-se que não era fácil, neste caso, como em qualquer outro, substituir a sua «ferrugenta penna» ; e neste principalmente, attento o caracter que deviam ter esses três capitulos e que o illustre escritor tão bem definiu, e attento ainda o pouco tempo de que dispúnhamos. Teixeira Júdice en- carregou-me então de resolver eu a questão, entregando-me a re- dacção d'esses números. Ora, ridiculo seria acceitar eu o encargo nas mesmas condi- ções em que primitivamente o propusera. Acceitei apenas, como uma espécie de dever, organiiar tudo quanto se referisse a esses artigos, dentro do espirito que presidiu á elaboração do plano do livro. Org^z;//;íírr:4'0.-teiyi)0:J4stG^.íç>plicavel ao processo por mim adoptado para ''ar •cbô^ecSjçãfe" 'á^esiê- intento, processo que, resol- vendo a dificuldade* â& ri^íácç^i: porque a limitava á capacidade dos meus recursoç,.*n-^,í)^flviíiá jacceitar o terrível encargo, até com verdadeiro prâzéí/* '••' :'•.::..: Graças á profissão de engenheiro, viajei por quasi todo o país, chegando a conhecê-lo na grande variedade de aspectos que só conseguem observar os que estudam e constroem vias de commu- nicação. Igual conhecimento adquiri dos habitantes das nossas Advertência preliminar VII varias províncias, com os quaes convivi e trabalhei. E, como na nossa litteratura, após 1870, muitas paginas se occupem da pai- sagem e do povo português, resolvi escolher de entre essas as que mais se ajustassem á impressão que directamente recebera do país e das nossas gentes, bem como ao caracter doesta pu- blicação. Desde já, porem, declaro que não pretendo ter esgo- tado a serie d'essas descrições, nem o pretenderia ainda quando dispusesse de maior espaço do que me foi attribuido e de mais largo tempo. Fixo a data de 1870 de uma maneira um pouco vaga. Só de- pois do apparecímento do naturalismo na nossa litteratura, é que o estilo da língua portuguesa começou a especial izar-se no sentido do assunto a tratar. Ksse aspecto que, na arte de escre- ver, toma o principio, commum a todas as artes, do emprego ló- gico do material, teve entre nós o seu inicio em Kça de Queiroz. Até elle, ou não se descrevia (Camillo e, em geral, Garrett), ou se tratava a paisagem de uma forma heráldica, ou genérica (Her- culano, Júlio Diniz). O novo processo formal deve-se pois aos es- critores naturalistas, e aos que se lhes seguiram, encontrando-se portanto nas obras publicadas após a data que fixei. Voltando, porem, a falar da solução adoptada, julgo-a talvez mais fecunda do que se a descrição de todo o país ficasse entregue a um só temperamento artístico, o qual, sem duvida, se revelaria por forma desigual, pois que desigual seria a commoção nelle despertada pelos differentes sitios ou povoações. A minha solu- ção deve necessariamente levar, senão desde já, com certeza mais tarde e num trabalho mais completo, á criação de uma espécie de galeria de paisagens e quadros de género onde todas as escolas de arte manifestem livremente os seus recursos próprios, em ex- pressões do máximo poder ; por nos revelarem commoções deter- minadas por affinidades de temperamento, e não productos de ar- tifícios artísticos a cujo emprego, em certos casos, a encommenda fatalmente leva. VIII Advertência preliminar Achada a solução, desejável seria poder reunir a paisagem ou representação pictoral á paisagem litteraria; a juncção de duas expressões de arte, presas a processos formaes tão diversos, por certo daria dos vários assuntos uma mais completa e valiosa im- pressão. Para isso seria, porem, necessário empregar a gravura colorida, o que tornava sobremaneira complicado e dispendioso o problema. Recorreu-se pois, á gravura a preto, reproduzindo a photographia na maioria dos casos. Fixada a parte meramente estructural dos citados artigos, devo ainda justificar, para cada um d'elles em separado, o espirito di- rigente ahi seguido. Na apresentação methodica das varias Terras poriugnesas, di- vido o país em quatro zonas principaes. Tal divisão, feita grosso modo, á vara larga, pode sem duvida completar-se pela sub-divi- são em zonas menores e mais especificamente caracterizadas. Pro- cedo, porem, d'esta forma, não só por facilidade de exposição, como também em virtude das conclusões a que se chega em outro ponto do presente livro. Assim o Dr. Silva Telles, na sua Intro- diicção geographica ao i.® volume, formulando uma synthese que se me afigura abranger todas as opiniões anteriores sobre a ma- téria, affirma: «Portugal, no seu conjuncto, apresenta, pelos seus caracteres geomorphologicos, o aspecto de um immenso amphitheatro irre- gular, de SO. para NE., com o sopé meridional demasiadamente vasto em relação á superficie hypsometrica principal. Esta cons- tituição morphologica facilita a interpretação geographica das suas redes hydrographicas, das grandes zonas de transito entre Portu- gal e a Espanha e os caracteres do seu clima». Partindo doesta synthese, divido o país nas quatro zonas prin- cipaes, ao deante definidas não só pelos seus caracteres morpho- logicos, pela vegetação, clima, densidade de população, etc, como ainda pela canção popular. Para mim, de todas as expressões do Advertência preliminar IX folklore de uma nacionalidade qualquer, a canção é a que mais se prende á terra e ás condições naturaes do meio physico onde ella apparece e do qual procede immediatamente o seu caracter estructural e expressivo. !.• ZONA. — Constituída pela superfície hypsometrica principal do país. — Comprehende o trapézio irregular limitado a N. pela fronteira espanhola, a L. pelo rio Douro e ainda pela mesma fronteira, a S. pelo Tejo e, finalmente, a O. por uma linha quebrada que, partindo de Abrantes, passa a nascente de Thomar e Coimbra, toca em Águeda e, cortando no Porto a linha da costa ma- rítima, se funde com esta desde ahi até Caminha. É pois formada pelas provín- cias do Minho, Trás-os-Montes, Beiras c grande parte do Douro. Zona de aspectos variadissimos, imprevistos, formada por terrenos primiti- vos — archaicos e primários (granitos e schistos cristallinos). Paisagem extremamente movimentada, por vezes atormentada; formas amphitheatricas, declives pronunciados ; solo áspero, violento. Vegetação va- riada e muito ríca nas terras medias e baixas, dominando o pinheiro, o car- valho-roble de folha caduca (zona húmida), o carvalho pardo nas Beiras e a oliveira ; nas partes altas, o castanheiro, o azinho, e ainda o sobro e a amen- doeira; arvores diversas. Milho dominante, centeio no planalto; cultura de médio valor, algumas vezes muito rica. Clima variadíssimo, pontos extremos; na parte voltada ao mar grande hu- midade, brumas; chuvas (de i:ooo a i:5oo, attingindo a 2:000 na parte mais alta) máximas no outomno e inverno. População a mais densa do país na zona baixa, menos de media na alta montanha ; a mais pura e primitiva de todo o país nas montanhas beirans. Luz geralmente metallica, luz de aço, reflectida pela mica dos granitos; por vezes hilariante. Lingua a mais antiga e porventura mais incorrecta de todo o país. Canção popular variadíssima, profunda; danças vivas, alegres e rudes, ge- ralmente caracterizadas apenas por um rythmo simples c persistente (chulas). 2.« ZONA. — Constituída por terras baixas e comprehendida entre a linha acima indicada, de Abrantes ao Porto, e uma outra que, partindo do primeiro doestes pontos e caminhando irregularmente, por leste de Coruche e Alcácer do Sal, corta a da costa marítima por baixo da bacia do Sado ; e finalmente toda a linha da costa desde ahi até ao Porto. Abrange portanto toda a Estre- madura e uma parte do Douro. X Advertência preliminar Zona de pequenas ondulações e aspecto calmo, formada por terrenos se- cundários e terciários, onde portanto abundam os calcareos, e pela maior faixa de terrenos modernos que possuimos. Paisagem bastante uniforme, aguas baixas no interior das terras. Vegetação variada, em que as arvores de madeira branca e molle (choupos, salgueiros, vimieiros) e o carvalho português de folha mais resistente põem notas caracte- risticas. A maior cultura do país, aspectos verdejantes. Clima temperado, suave ; chuvas de 700 a mil, máximas em janeiro. População acima da media geral, uniformemente distribuida. Luz quente que, em Lisboa, alegra e doira tudo (Eça de Queiroz) e parece igualar a da Pérsia (Dieulafoy). É a região em que a lingua portuguesa toma a feição mais harmoniosa e correcta. Canções e danças populares suavemente onduladas, leves de expressão. 3." ZONA. — Toda a região dos districtos alcmtejanos de Portalegre, Évora e Beja, comprehendida entre o Tejo a N., a fronteira espanhola e o Guadiana a L., as serras de Monchique e Caldeirão a S., a costa marítima desde a foz do Seixe até ao limite da zona anterior, entre a foz do Sado e o Cabo de Sines, e a linha irregular que de Abrantes levamos até este ultimo ponto. Constituem* na terrenos archaicos e primários ; granitos, schistos cristallinos e carbónicos. Com excepção de duas pequenas zonas montanhosas a nascente — Marvão e Portalegre (S. Mamede), Estremoz e Serra de Ossa, e ainda alguns oásis raros, toda a região é plana, monótona, desolada. Paisagem extremamente ingrata, sem imprevistos ; planuras com aspecto de stcppes, exceptuando naturalmente a citada região montanhosa dos districtos de Portalegre e Évora. Terreno seco. Vegetação pouco importante na maior parte da zona ; oliveiras, mas principalmente azinhos e sobros. L o país do trigo. Clima por vezes extremo, mas idêntico em toda a zona ; annos ha em que, aos calores prolongados e ardentíssimos do verão, se oppóe a neve no inverno. (Chuvas medias, entre Soo e 700, hibemaes. Zona a menos povoada do país, inferíor a um terço da media geral. Luz que cega, cruel. Lingua áspera, mas pouco incorrecta. Canção lenta, profunda, triste ; danças rudes, por vezes vivas e alegres. 4.' ZONA. —A província do Algar^•e. Num pequeno espaço, toda a variedade de terrenos e vegetação, esta ultima por vezes excessiva. Advertência preliminar XI Zona cheia de imprevisto, de movimento na paisagem. Granitos, schistos, calcareos, grés e terrenos modernos. Solo riquissimo. Castanheiros, oliveiras, montados, mas principalmente amendoeiras, figuei- ras, alfarrobeiras, palmeiras do esparto e arvores diversas. Clima do mediterrâneo ; chuvas minimas, inferiores a Soo. Luz que ri e canta (J. Barreira). População um pouco abaixo da media geral. Lingua incorrectíssima, formas regionaes ; cantada em excesso. Canção viva, alegre, por vezes erótica, pouco profunda >. Nestas quatro zonas, a i .* e 4.* de grande variedade e riqueza de aspectos, a 2.* e 3.* de aspecto uniforme, embora uma doestas encantadora e delicada, e a outra, a ultima, por vezes desolada e rude, vive, como diz o Sr. Fonseca Cardoso no seu estudo An- tropologia portuguesa, inserto no volume i, uma População notável pela sua simplicidade e homogeneidade ethnica: «Quando olhamos para o mappa das raças europeias de Ripley ou de Deniker, esta população ibero-insular salienta-se como a mais dolicocephala e homogénea da Europa nos seus caracteres somáticos». Sendo, porem, diversas de zona para zona, por vezes até dentro da mesma zona, as condições de solo e clima em que se encontra essa população, diversa também ella nos apparece no caracter, hábitos externos e costumes quando de uma região passamos para outra. Entretanto, até ao presente, está por fazer o estudo completo d'essas alterações, verdadeiramente dirigido pelo espirito scienti- fico. Fazem-se affirmações em grande parte gratuitas, paradoxaes ou, pelo menos, precipitadas. A estatistica comparada da quasi I O pequeno espaço de que dispomos inhibc-nos neste momento de nos occuparmos de regiões importantissimas sob todos os aspectos, como são as nossas ilhas da Madeira e dos Açores. Somos forçados a limitar o nosso estudo ao continente do reino. XII Advertência preliminar totalidade dos factos sociaes não existe; e tudo quanto nella se precisou, quer dentro, quer fora do país, chega a resultados que parece carecerem confirmados por trabalhos posteriores. Entre outros, factos ha, relacionados com o movimento de emigração e sendo até a sua causa, que permanecem em parte desconhecidos ; de onde resultam inexplicáveis certos aspectos d'essa questão de- mographica. Este conjunto de circunstancias, ou enfraquece, ou condemna muitas das syntheses sugestivas e em extremo definidas que correm em publico, applícadas a phenomenos de uma com- plexidade tão difficil de abarcar. A conclusão a que chega o Dr. Silva Telles, no seu citado trabalho, é que se me affigura encerrar o segredo de muitos fa- ctos que essas syntheses pretendem dominar: — «A população portuguesa é vigorosa, mas faltam-lhe neste momento instituições sociaes que favoreçam o seu crescimento». Essa falta far-se-ha sentir portanto em todo o modo de ser da população — menssana in corpore sano. O conhecimento directo que formei do povo português define- m'o como tendo um mesmo fundo de caracter, do norte ao sul do país, e apenas pequenas differenças em cada habitat, as quaes desapparecem após os primeiros tempos de convivência, ou com a mudança de região. Na própria canção popular, de um ao outro extremo de Por- tugal, ha um laço de parentesco, um fundo commum de caracter, que vae desde a mais viva das danças até ao mais calmo e mys- tico bemdito, e muito confirma o que expus. Esse fundo de caracter, a que não podemos deixar de chamar nacional, por- que é absolutamente diverso do da canção espanhola, revela-se logo a partir de qualquer ponto da fronteira. A nossa canção, pobre de harmonia, embora muito interessante pelo desenho melódico e pelo rythmo, corresponderá, em ultima analyse, á simpleza primitiva que a anthropologia encontra no povo por- tuguês. Advertência preliminar Xlll Semelhantemente ao que dissemos acerca da descrição da pai- sagem, e talvez até aqui com mais razão, deveria o estudo do ca- racter do povo português ser acompanhado de gravuras represen- tativas dos vários typos das nossas populações. Idênticos motivos aos já expostos nos levam, porem, a limitar a illustração do nosso artigo, apresentando quasi exclusivamente os typos das gentes beirans da alta montanha, por pertencerem á parte mais pura da gente ou raça portuguesa, e accusarem as maiores estaturas até hoje verificadas entre nós. Fazemo-los acompanhar de alguns typos da arte plástica popular por excellencia, a cerâmica, lamentando não poder ainda documentar a evolução das suas tão lindas e va- riadas formas através do país, com a serie aproximadamente completa d'essas formas. O nosso trabalho reduz-se apenas a um esboço parcial da questão tão complexa e eriçada de difi- culdades, que não pode deixar de ser a do estudo esthetico e ethnographico do povo português. As Praias portuguesas fizeram em tempo objecto de uma hu- morística e interessante publicação do Sr. Ramalho Ortigão. Hoje todas as condições d'esses sitios se acham alteradas por innumc- ras influencias, resultantes em geral da abertura successiva das nossas varias linhas férreas á circulação e do aumento de popula- ção e riqueza do país. Desde o apparecimento da citada obra, algumas d'essas praias ganharam enormemente em importância, outras perderam-na quasi por completo. Mas a natureza especial doeste assunto é talvez o que mais sensível torna a falta de uma penna leve, scintillante e espirituosa que pusesse bem em evidencia a atmosphera encantadora das nossas praias, a frescura inconfundível dos seus aspectos — caso para, mais tarde e quando de maior espaço se disponha, ser no- vamente proposto a quem possua recursos para o tratar. As nossas Aguas mineraes que, no volume i, apparecem estu- dadas no campo geológico pelo engenheiro Sr. António Maria da XIV Advertência preliminar Silva *, deveriam ser descritas ainda ahi, mas no campo da phy- siotherapia, pelo Conselheiro Tenreiro Sarzedas, medico-inspector do respectivo serviço official. Sem duvida, por deveres de uma outra importante commissão de serviço, náo pôde o illustre func- cionario enviar-nos o artigo promettido. Recorri, pois, ao seu es- tudo — Aguas ffiinei^aes, Physiotherapia (Impressões colhidas em missão especial) 1907, como sendo a mais completa e valiosa pu- blicação que, sobre esse assunto, existe entre nós, para dar a característica medica na noticia da respectiva villegiatura ao deante apresentada e, até certo ponto, preencher a lacuna que a falta do trabalho do Conselheiro Sarzedas foi abrir no volume i. O terceiro artigo completa-se por um estudo de Portugal como estação de inverno. O meu objectivo, ao redigir este capi- tulo, foi sobretudo o de revelar o nosso pais como excepcional- mente destinado a todas as formas de villegiatura e ao estabele- cimento de estações de saúde de todo o género e para todas as camadas sociaes ; e definir emfim o que se me afigura poder ser a solução do problema do fomento português. Já em 1900, ao organizar os quadros analyticos das nossas aguas mineraes, quando confeccionei o catalogo da secção portu- guesa na Exposição Universal de Paris, eu havia notado a grande riqueza e variedade de typos que Portugal possue nesse meio therapeutico. Hoje então, conjugando-os com os outros elementos que vêem completar o nosso meio de villegiatura e o de thera- peutica, mais se impõe, a meu ver, a importância que este adquire deante das questões económicas que nos assoberbamrEnãocreio que vá causar estranheza esta juncção do útil ao agradável, A belleza da terra e do clima é um dos mais valiosos requisitos a recommendar na escolha das estações de aguas. i Artigo — Nascentes termo-mineraes de Portugal. Advertência preliminar XV Num conjunto de trabalhos da natureza dos que se acham comprehendidos no presente volume, a illustração tem indubitavel- mente uma importância capital. Procurou-se, por isso mesmo, reunir dentro d'elle o maior numero de documentos artisticos tendentes a esclarecer, tanto quanto possivel, os vários assuntos. Muitos d^esses documentos estão já conhecidos e até divulgados pelo bilhete postal. Quando recebiamos a photographia de um caso qualquer, por vezes succedia já a conhecermos pelo bilhete postal e, não raro, termos de preferir este á prova photogra- phica. Entretanto muitas das nossas gravuras são completamente inéditas e aqui devemos consignar o mais vivo agradecimento ás pessoas que nos confiaram os originaes ao deante reproduzidos. Em primeiro logar á Senhora D. Maria da Conceição de Lemos Magalhães, illustre esposa do nosso amigo o Conselheiro Luis de Magalhães e notável amadora photographica, a quem pertencem os originaes do Vidago, Cavado, Quinta do Mosteiro, Ria de Aveiro, Choupal, Felgueira, e outros ainda que damos em simile- gravura e denunciam um verdadeiro e superior sentimento ariis- tico em quem os fez, como por exemplo a onda do mar Ao norte do Porto que disputa a primasia á celebre Onda de Courbet. Os nossos agradecimentos ainda ás casas Biel & C" e Guedes de Oliveira do Porto, ás Papelarias Guedes & Saraiva de Lisboa e Borges de Coimbra, que muito graciosamente puseram á nossa disposição as suas valiosas photographias. Ao meu illustre amigo, o Sr. Joaquim de Vasconcellos, que consentiu em facultar-nos, da sua enorme collecção de documentos da arte decorativa peninsular, collecção única e de um valor incomparável, todas as illustrações dos seus dois artigos; e a Annibal Fernandes Thomás, o biblio- philo cujo saber iguala a mais inexcedivel modéstia, o qual nos forneceu as gravuras e liihographias, algumas d'ellas raríssimas, com que foi possivel illustrar, de uma forma quasi inteiramente inédita e de excepcional valor artistico, o artigo sobre musica do Sr. Ernesto Vieira. XVI Advertência preliminar Aos artistas, Srs. António Augusto Gonçalves, Roque Gameiro, Luciano Freire e Ezequiel Pereira, a mais especial gratidão pela offerta dos encantadores desenhos que para nós quiseram exe- cutar e que sobremaneira enriquecem o presente volume. E a mesma dedicamos aos nossos amigos que, das varias provincias do reino, nos enviaram photographias interessantissimas, muitas d'ellas também propositadamente tiradas para este volume. Um tal conjuncto de elementos representa um inapreciável concerto de sympathias pelo nosso trabalho. E já agora applau- do-me pela solução achada para o organizar, porque graças a ella julgo ter conseguido dar, do nosso país e das nossas gentes, talvez a mais sincera, senão a melhor e mais significativa expressão es- theiica, embora incompleta, como não pôde deixar de ser. António Arroyo. ciwCrSííTí o PAÍS PORTUGUÊS o SOLO, O CLIMA E A PAISAGEM Minho. — A primeira impressão esthetica que eu recebi em plena natureza foi a de uma festa pagã. No i.® de Maio, vae já de quarenta para cincoenta annos, todo o baixo Minho, de Caminha até ao Porto, festejava as Maias, o Maio moço. A primavera fora naquelle anno excepcio- nalmente doce. E as searas, ao longo da estrada real que toca em Barcellos e Vianna, ondulavam como um mar de verdura sob o carinho da viração e do sol radioso. A vaga era baixa, largamente rythmada. Um ceu sem mancha e uma alegria indi- zivel nas cousas, nos animaes e nas gentes. Flores e giestas por toda a parte, engalanando as casas, as diligencias, as carroças, os carros de bois, coroando as boieiras e o rapazio, communi- cando ás cantigas e danças alegres uma harmonia luminosa de cores ricas ^. » Chamamos a attenção do leitor para a matéria exposta na Advertência preliminar do presente volume, concernente á divisão do país em quatro zonas para o estudo da sua paisagem. 3 A festa das Maias deu umas bellas paginas ao Sr. Rocha Peixoto, no seu vol. A Terra Portuguesa, 1897. 2 O país português Esse mesmo aspecto do campo minhoto, mas numa estação mais avançada, descreve- o D. António da Costa, No Minho, quando percorre a região do Lima. Que formosíssimo lanço de terreno por onde vamos nesta margem direita. Este parallelogrammo extenso e largo, que se interpõe entre nós e o rio, de searas tão vastas, tão louras e tão ondulantes pela viração, bem se pode dizer um oceano de ouro. As searas são agora intermeadas de arvores verdejantissimas, porem dis- persas, o que lhes dá um aspecto formoso de desalinho. As arvores do nosso lado direito, recebendo os reflexos do sol, projectam-se para o lado esquerdo sobre o oceano de ouro que vae entre nós e o Lima, e fícam ali como estam- padas com todo o phantastico dos seus troncos e ramagens. Comprehendi então como essa impressão se fixara fundamente no meu espirito, caracterizando o campo minhoto em toda essa zona do litoral que com- prehende as baixas dos rios Minho, Lima, Cavado, Ave e Leça, apesar das man- chas incolores, anodynas que, sobretudo entre o Porto e Famalicão, ladeiam a linha férrea de onde a onde, e mais se notam nos pontos em que o schisto interrompe as terras de granito. Esta zona, que é uma das mais visitadas do reino pela proxi- midade em que está de Braga, de Vizella e Guimarães, fatigando a vista pelo cruzamento de incidentes de um solo movimentado e rude, valles acanhados e divisórias de propriedades minúsculas, indispõe em geral contra o Minho o habitante das terras do Sul^ habituado á propriedade extensa, sem limites apparentes, do Ri- batejo e do Alemtejo, e não o convida a visitar as encantadoras paragens do rio Minho, do Lima, do Cavado e do Tâmega. No campo de Vianna, diz-nos Ramalho Ortigão, a verdura da vegetação suavisa a luz; e a agua doce do rio, serpentado e lento, poetisa a natureza como nas regiões dos lagos. o LEÇA EM ALFEVA o solo, o clima e a paisagem 3 N'esta quadra do anno principalmente, na occasiâo das colheitas, quando as ceifeiras, de mangas arregaçaças, atravessam os campos, carregadas de feixes de cannas maduras ; quando o milho começa a aloirar asneiras, e ao longo das planicies ou por traz dos outeiros, nos pontos onde alvejam casas ou muros de quintas, se ouve a cantiga das esfolhadas ; o aspecto do campo ainda virente, inundado de luz, tem o que quer que seja de uma apotheose bucólica, de um idyllio rural, por entre cujas estrophes o rio alastra mansamente a pacificação da agua. A natureza parece uma larga festa em toda a bacia do Uma, fechada ao Sul pelo biombo de montanhas que principia de leste em Lindoso, na fron- teira hispanholn, e termina a oeste em Faro d'Anha, sobre o porto de Vianna < . Apesar de baixa, essa região do norte tem comtudo um caracter diverso da zona entre Vouga e Tejo; a luz é ali menos quente, mas mais hilariante; o aspecto geral menos suave, um pouco acido, relativamente ao d'est'outra zona, lhe chama alguém. A ditfe- rença de latitude e de natureza do solo bastarão por certo para explicar taes diiferenças, ainda quando a vegetação seja a mesma. A alegria especial d'essa região, que se mantém por vezes até em montanhas algo elevadas, como em breve veremos, transfor- ma-se comtudo em outras serranias minhotas, numa verdadeira contemplação extática, solemne. E é ainda um homem do sul, ainda D. António da Costa, que no-lo faz sentir. Seguindo a estrada que de Vianna leva aos Arcos de Valle de Vez, parallelamente ao Lima, abandonava o rio chegando á villa : e tomando á esquerda, subia ao alto da serra do Extremo, fron- teira da Galliza. E sempre subimos. Vae reabrindo o arvoredo da estrada, reabrindo, reabre de todo, e vemos então, cada vez mais abaixo e cada vez aiargando-se mais, a planície que dei- xáramos, convertida n*um immenso valle que toma uma infinidade de formas diversamente accidentadas. Estamos finalmente no alto da serra do Extremo. Apeamo-nos no piná- culo. Nos limites fronteiros, serras altas, um cortinado cinzento separando-nos do mundo... Farpas, i vol. Os sublinhados são nossos. o país português Em redor de nós as penedias nuas, adornadas da sua mesma aspereza, e esta nudez e esta aspereza tornando ainda mais solemne a vista que se des- fructa. Em baixo planícies, nas planicies taboleiros de esmeralda. Dos dois grandes lados vão subindo thronos de arvoredo, thronos de degraus sem conto. Pelo meio de toda aquella extensão, quadros parciaes. No centro de uma planicie esverdinhadamente amarella, um arvoredo escuro tão compacto que o diríamos uma ilha. Bosques, searas. Mais ao longe dois montes deixando ver para alem d'elles um accidentado de verdes claros, por tal forma, que parece uma cidade phantastica nos recortados da casaria. O sol na força do esplendor abrilhan* tando tudo aquillo. Não é a Cruz Alta defrontando com a magestade de sele bispados, nem o Bom Jesus onde parece que a vida está saltando de contente. Doeste pináculo do Extremo, como de uma tribuna onde nos achamos extasiados, não se ouve uma voz, não se vê uma creatura. É, no silencio da solidão, a natureza a con- templar-se a si mesma. Mas, como vemos, até no alto do Bom Jesus a alegria da re- gião minhota se revela na sua plenitude. Entretanto, o viajante que queira desde logo, e quasi á mesma altitude do pináculo do Extremo, sentir essa nota característica do Minho, como já deve ter visitado as encantadoras casas da Renascença que se encon- tram em Vianna (typos italiano, manuelino e flamengo), toma o trem descendente de Caminha para o Porto e, passado o tunnel do Tamel que mede proximamente um kilometro, desce em Ca- rapeços, aonde mandou estar uma carruagem de Barcellos. E, através de campos floridos, de uma vegetação luxuriante, faz-se conduzir ao alto da montanha. D'ahi abraça para norte as aguas do Neiva, para sul as do Cavado, valles extensissimos em que a mesma nota jovial e forte se mantém até ás mais distantes cumiadas. Sob a incidência do mesmo sol radioso, o contraste com as alturas do Extremo é de uma violência que impressiona, sobretudo por se produzir a tão curta distancia e em terrenos de sua natureza idênticos. Na mesma carruagem, para que mudar? faz-se conduzir a Braga, desde que o amor pelas ruinas históricas o não leve a ver as do palácio do Conde de Barcellos, sitas na villa d'esse nome e na margem direita do Cavado. Braga, onde com justiça costumam visitar-se, alem da sua cathedral e outros edifícios menores, os Santuários do Bom Jesus e do Sameiro e a ponte do Bico, offerece todavia um passeio muito o solOy O clima e a paisagem 5 mais bello, raro até, se me afigura: o da estrada de Chaves, na encosta esquerda do Cavado. Ha uma ou duas dúzias de annos seguia-se por ella quando se ia para o Gcrez. Hoje, com fim de evitar um pequeno trajecto a cavallo na descida da montanha, abandonou-se porem essa e toma-se a estrada directa por Terras de Bouro, assente na encosta fronteira, a da margem direita. A ditferença esthetica entre estas duas vias de communicação é capital e deriva da differença de ahura a que cilas passam sobre o leito do rio. o CAVADO NA PONTE DO BICO O Cavado, A estrada por Bouro é linda, sem comtudo se destacar do caracter dominante na região. De Braga desce ao Cavado, que atravessa sobre uma bella ponte de pedra e depois, subindo a pouca altura, lá segue suavemente até ás Caldas do Gerez, sem nos commover por forma estranha. Diverso é o as- pecto da estrada ainda não terminada de Braga a Chaves por Salamonde e Ruivães. Parte da capital do Minho, na direcção do Bom Jesus ; mas a poucos kilometros toma á esquerda do santuá- rio e começa a trepar pela montanha acima, convertendo-se numa verdadeira varanda sobre os extensos valles do Cavado, de um lado, do Geraz, do outro. O panorama que se goza em todo o trajecto até ás alturas de Vieira é um deslumbramento ; porque a estrada passa muitas vezes a mais de Soo metros de altura do rio, e as encostas da serra são suaves, todas cobertas de vegeta- 5 O pais português ção e animadas pela nota branca dos casaes e infinitos incidentes do solo granítico. Passei ahi numa manhã de abril em que, du- zentos metros abaixo da estrada, um mar de névoa branca como neve enchia todo o valle até perder de vista. Illuminada de raspão pelo sol nascente, destacavam-se em grisalha tenuissima as faces dos rolos de névoa que ficavam na sombra; e esse mar incom- parável parecia ondular allucinado, em busca de regiões fan- tásticas. O Gerei é sem duvida alguma, de todas as serras portugue- sas, a mais interessante pela flora, pela fauna, pelo pittoresco das ^^^^ I HHP^j 1 1^ ^lí** " Íl^^ " jT^" ^^^^'^^^^'^^ ,, * ^ SUBINDO PARA O GEREZ suas ribeiras e dos seus panoramas, pela qualidade das suas aguas, tanto medicinaes como potáveis; e é também a que offerece ao touriste maiores facilidades de accesso e de habitação. Alem de que, pela proximidade da estrada da Geira e da povoação do Suajo, elle offerece ainda assunto valioso e inédito a archeologos, ethno- logos e linguistas. Entretanto, o espaço faltar-nos-ia se quiséssemos falar largamente da maravilhosa serra, para dar uma ideia assas completa do seu valor. Como porem ella seja umas das mais co- nhecidas do país, e ainda devamos occupar-nos das suas nascen- tes termo-mineraes, julgamos-nos absolvidos da lacuna que abrimos neste ponto, não prolongando a sua descrição. Mas não são estes apenas os aspectos grandiosos que no Minho se podem recommendar ao viajante. Regressando-se a Braga, impõe-se o passeio a Guimarães pela Falperra. o solo, o clima e a paisagem ^ Se porem seguirmos a linha férrea do Minho e a da Trofa a Guimarães, no intuito de visitar Vizella, não esquecer que, entre esta, Guimarães e as Taipas, pontos ha de onde se gozam pano- ramas absolutamente raros, graças á especial ondulação das terras através de zonas muito extensas. De Batoucos, por exemplo, a vista estende-se até ao mar da Povoa de Varziíp, na distancia de uns quarenta kilometros, tangencialmente ás cristas de uma serie de pequenas ondulações do terreno, que gradualmente descem EM VIZELLA até ao Oceano, succedendo-se numa alternação pittorescamente rythmada de linhas de campos, arvoredos e brumas tenuissimas, salpicadas de vidraças de casaes infinitamente pequenas, onde o sol põe manchas de variegadas cores que se attenuam quanto mais mergulham na atmosphera luminosa e irisada pelas brisas salgadas do largo. No Berço da Monarchia, se não temos igrejas como a Sé de Braga e a encantadora capellinha de S. João do Souto, temos com- tudo vários templos a visitar, principalmente a Senhora da Oli- veira e o seu valioso Thesouro. E logo após urge aproveitar o tempo em passeio até Fermil, nas margens do Tâmega, seguindo a estrada que passa em Fafe e para o rio desce, tocando na Gan- darella e atravessando uma zona inexcedivel em vigor de vege- tação. Ou então, logo após Fafe, bifurcando á esquerda, tomar 8 O pais português pela estrada que vae atravessar o Tâmega perto do Cavez e passar a cavalleiro de Ribeira de Pena, numa região de uma belleza des- lumbrante, para se encontrar em Villa Pouca de Aguiar com uma outra estrada, a de Villa Real a Chaves. O Minho, que encantava D. António da Costa e ainda hoje encanta Ramalho Ortigão, ainda mais profundamente commovia Eça de Queiroz; tornava-o mystico, contemplativo, penetrava-o de .^^:í^''l9mÁ A ENTRADA DA QUINTA DO MOSTEIRO doce religiosidade. Notável a seguinte descrição de uma vivenda do baixo Minho, que tenho razões para suppor ser a mesma que O. Martins visitara e algures descreve com aquelle enfado que ás vezes o atacava, vivenda que fica distante do Porto uns lo a 12 kilometros. Aqui, em torno do pateo (onde a agua da fonte todavia corre dos pés da cruz) são solidas tulhas para o grão, fofos eidos em que o gado medra, capoei- ras abarrotadas de capões e de perus reverendos. Adeante é a horta viçosa, cheirosa, succulenta, bastante a fartar as panellas todas de uma aldeia, mais enfeitada que um jardim, com ruas que as tiras de morangal orlam e per- fumam, e as latadas ensombram, copadas de parra densa. Depois a eira de gra- nito, limpa e alisada, rijamente construída para longos séculos de colheitas, com o seu espigueiro ao lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os pardaes voam dentro como n'um pedaço de céo. E por íim, ondulando ricamente até o soloy O clima e a paisagem ás collinas macias, os campos de milho e de centeio, o vinhedo baixo, os olivacs, os relvados, o linho sobre os regatos, o mato florido para os gados. . . S. Fran- cisco de Assis e S. Bruno abominariam este retiro de frades e fugiriam d'elle, escandalisados, como de um peccado vivo. Não houve necessidade de alterar esta vivenda, quando de religiosa passou a secular. Estava já sabiamente preparada para a profanidade ; — e a vida que n'ella então se começou a viver, não foi differente da do velho convento, apenas mais bella, porque, livre das contradições do Espiritual e do Temporal, a sua harmonia se tornou perfeita. E, tal como é, deslisa com in- comparável doçura. De madru- gada os gallos cantam, a quinta acorda, os cães de fila são acor- rentados, a moça vae mungír as vaccas, o pegureiro atira o seu cajado ao hombro, a íiia dos jornaleiros mette-se ás terras — e o trabalho principia, esse trabalho que em Portugal pa- rece a mais segura das alegrias e a festa sempre incansável, porque é todo feito a cantar. As vozes vêem, altas e desgar- radas, no íino silencio, d'alem, d*entre os trigos, ou do campo em sacha, onde alvejam as ca- misas de linho crú, e os lenços de longas franjas vermelhejam mais que papoulas. E não ha n*este labor nem dureza, nem arranque. Todo elle é feito com a mansidão com que o pão amadurece ao sol. O arado mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cae por si, amorosamente, no seio attrahente da foice. A agua sabe onde o torrão tem sede, e corre para lá gralhando e refulgindo. Ceres n'estes sítios bemditos permanece verdadeiramente, como no Lacio, a Deusa da Terra, que tudo propicia e soccorre. Ella reforça o braço do lavrador, toma refrescante o seu suor, e da alma lhe limpa todo o cuidado escuro. Por isso os que a servem, manteem uma serenidade risonha na tarefa mais dura. Essa era a ditosa feição da vida antiga. Se estes meíos-dias são um pouco materiaes, breve a tarde trará a porção de poesia de que necessita o Espirito. Em todo o ceu se apagou a refulgencia NA MATTA DO MOSTEIRO IO o país português d*ouro, o esplendor arrogante que se não deixa fitar e quasi repelle; agora apaziguado e tratavel, elle derrama uma doçura, uma pacificação que penetra na alma, a toma também pacifica e doce, e cria esse momento raro em que ceu e alma fraternisam e se entendem. Os arvoredos repousam n'uma immobilidade de contemplação, que é intelligente. No piar velado e curto dos pássaros ha um recolhimento e consciência do ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos pastos, cançada e farta, e vae ainda beberar ao tanque, onde o gotejar da agua sob a cruz é mais preguiçoso. Toca o sino a Ave-Marias. Em todos os casaes se está murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retar- dado, pesado de matto, geme pela sombra da azinhaga. E tudo é tão calmo e simples e terno que, em qualquer banco de pedra em que me sente, fico enlevado, sentindo a pene- trante bondade das coisas, e tão em harmonia com ella, que não ha n*esta alma, toda encrustada das lamas do mundo, pensamento que não pudesse contar a um santo . . . Verdadeiramente estas tardes santificam. O mundo recua para muito longe, para além dos pinhaes e das collinas, como uma miséria esquecida : — e estamos então real- mente na felicidade de um convento, sem regras e sem abbade^ feito só da religiosidade natural que nos envolve, tão própria á oração que não tem palavras, e que é por isso a mais bem comprehendida por Deus i . E os novos, os impressionistas e realistas, sentem também o caracter transcendente, esthetico da terra minhota, embora nelles a commoção se revele diversa da dos primeiros, numa expressão de jovial religiosidade pagã, presa á região que lhe inspira as formas plásticas das suas divindades. Um sopro de pantheismo litterario de uma religiosidade cheia de pureza e de evocações frementes ás coisas naturaes, levou-nos, como peregrinos da Mãe- J 1^ • ^ -^ 9í^' A COZINHEIRA DA LAVCURA I Cartas de Fradique Mendes. o solOf o clima e a paisagem I I Fecunda, ventre e tumulo das Formas, a «receber o baptismo da Terra», para os campos, estirados á beira das searas, sob a umbella pacifica dos grandes plátanos, rumorosos de petizada aérea, hypnotisando-nos com o murmúrio de colmeia que vinha do largo, em haustos bafejados de átomos dispersos como se algum braço de Deus bucólico, de olhos verde-mar e barbas da côr do linho, andasse a espalhar, n'um gesto rythmíco de semeador, as calmas confidencias dos caules e das raizes. Sob esse ulular amoroso de caricia bracejante, no hálito do aroma thuríbular que vinha da sagração ritual dos óleos e do beijo tenuissimo dos pólens, dizia-me o meu amigo, n'um segredo, como deante do mysterio in- violável de um sacrário : — Ouve a Natureza a amamentar os filhos ! . . . > o TÂMEGA EM AMARANTE Trà8-08-Monte8. — Pelo Gerez, Serra da Cabreira e Tâmega, o Minho toca em Trás-os-Montes, região de aspecto algo diffe- rente da parte baixa minhota, já pela altitude geral, já pela ausên- cia de brisas marítimas e da grande humidade ali reinante, causas estas de influencia considerável na vegetação e em todas as formas da vida. É a província de Traz-os-Montes uma das mais pittorescas de Portugal, pelo interessante contraste de cordilheiras altivolas e de valles risonhos. Situada no extremo norte do país, é limitada a nascente e a sul pelo rio Douro, que lhe forma doestas duas bandas como que os dois lados de um caixilho ; a norte contém a raia gallega ; e visinha a poente com a provincía do Minho. I João Barreira, Gouaches. 12 O pais português Montanhosa, alpestre, revestida de vegetação de grande fuste na encosta das serranias, é também cortada em certas regiões do centro e norte por lon- gos cerros escalvados. Os rios serpeiam quasi sempre apertados no fundo de desfiladeiros; pelas rampas, até alturas inacessiveis, erguem-se socalcos a prumo, grandes muralhas graniticas entremeadas de terra arável, onde por vezes se agrupa um risonho souto, e onde fragas soltas, giganteas, se manieem a meia encosta em prodigioso equilibrio. O país vinhateiro, ao sul, é notavelmente accidentado, e desce até ao Douro em escalões de pedra solta que seguram as fileiras de cepas, e de um tão mo- vimentado aspecto bucólico na época das vindimas. VIDAGO — NA MONTANHA Quando um valle se alarga pelo afastamento das montanhas, e é irrigado por um ribeiro, a variedade vegetal dos coloridos, a frescura das hortas e a curiosa quadricula das culturas, fazem um alegre e repousante contraste com a face severa da montanha, de arborisação escura ou de rocha parda i . De Montalegre, terra de fundas pastagens e de gados de grande nomeada, por Chaves, as antigas Aquae Jlaviae, direito a Bra- gança no extremo norte do país, vae o touriste admirar a antiga cidadella, a villa gothica edificada no alto do monte em cuja encosta a cidade desce até á chan onde se alarga. João Barreira, in Pátria Portuguesa. o solo, o clima e a paisagem i3 E lá encontrará ainda quasi intacta a sua cinta de muralhas, em lanços successivos ligados por bastiões, a românica Casa da Gamara, a Torre de menagem com as suas lindas janelas gothi- cas, o Pelourinho, a Porca da villa e varias casas de habitação, de primitivas formas gothicas. De caminho para Mirandella, VILLA REAL — LEVADA DO AGUEIRINHO pisando o solo schistoso e levemente ondulado, quando os altos e copados castanheiros se projectam nobremente sobre o fundo luminoso do ceu poente, sente-se uma impressão nova e de facto impressionante. A natureza adquire ahi uma nobreza e serenidade que até então não haviamos encontrado; esses aspectos de paisagem divergem do resto do país. Para baixar á zona do litoral offerecem-se dois caminhos. O primeiro, que acabo de indicar, leva-nos a Mirandella, docemente recostada num espraiamento da margem esquerda do Tua, e 14 O pais português seguindo a meia encosta, através de uma zona de penedias e ravinas atormentadamente trágicas, põe-nos lá em baixo, na mar- gem do Douro. O segundo conduz-nos á região do Marão e a Villa Real, uma das terras mais estranha e grandemente bellas de todo o país. Villa Real está construida a cavalleiro do Corgo, outro affluente do Douro, num planalto que circunda a funda ravina, de altissi- mas e abruptas encostas graní- ticas, em que o rio se despenha, apertado. O panorama que do cimo das arribas se apossa de nós é de facto maravilhoso. Valles successivos, cerros ele- vadissimos cobertos da mais lu- xuriante vegetação, succedem-se e entrecruzam-se até ao extremo do horizonte. Esse planalto em que a villa assenta é mais propriamente uma faixa de terreno nivelado, encostada á montanha e não muito larga. Num percurso de uma boa légua, em meio de arvores de todos os géneros, I li ÉMl Mi^Bifl 111 c^i*valhos, salgueiros, castanhei- li*^^^*'^^^^™í^-''^?4 ros, e de um terreno feracis- EM MONCORVO simo, segue linda a estrada até Matheus, nobre vivenda do sé- culo XVII, talvez a mais importante casa portuguesa como edifício, e sem duvida uma das mais nobilitadas do nosso país. Todos conhecem a celebre edição dos Lusiadas do Morgado de Matheus. Ha ainda um terceiro caminho a seguir. Mas esse é só para gentes de cavallo, exige bom calção e corpo para sacrifício. E ir a cavallo de Bragança por Vimioso, o interessante jazigo dos ala- bastros; d'ahi a Miranda do Douro, onde o especial dialecto não é o menor attractivo da viagem, e, pela lombada superior do Sabor^ visitar Moncorvo, os ricos jazigos de minério ferroso. Freixo de Espada-á-Cinta e a sua igreja manuelina, precipitando-se fínal- o solo, o clima e a paisagem i5 mente pela rude encosta duriense até á Barca d' Alva, fronteira do país. MONCORVO — RIBEDU DA VILLARIÇ O Douro. — Não parar em Barca de Alva, porventura a cova de que mais justamente se pode dizer que no anno tem nove meses de inverno e três de inferno. «Barca de Alva, diz Guerra Junqueiro, é demasiado trágico para mim. A paisagem é dura, escalvada, uma paisagem biblica em que o Deus que ali está bem é Jehová. O rochedo é só osso. Scenario para um profeta ou para um bandido. Ezequiel ou o Cura de Santa Cruz '». Por isso o viajante que ahi chega só tem de fazer uma cousa: tomar o comboio descendente para o Porto que, sempre a meia encosta, lhe permitte admirar tranquillamente o nosso mais bello rio e um dos mais bel los do mundo, sendo até para estimar que o desleixado atraso em que elle permanece nos permitta contem- plá-lo em perfeito estado de pureza e virgindade. Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, n'uma esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capellinha muito caiada entre um laranjal maduro. Pelo rio, onde a agoa turva e tarda nem se quebrava coptra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para I Nos Serões. i6 O pais português alem, outros socalcos, d 'um verde pallido de rezeda, com oliveiras apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância do azul i. Tendo descido numa estação a meio da linha férrea, o grande artista que assim dizia, contem- pla o rio maravilhoso. E o encantamento persiste, a natureza anima-se, toma para elle novos aspectos ridentes. O rio defronte descia, pre- guiçoso e como adormentado sob a calma já pesada de maio, abraçando, sem um sussurro, uma larga ilhota de pedra que rebrilhava. Para além a serra crescia em corcovas doces, cora uma funda prega onde se aninhava, bem junta e esque- cida do mundo, uma villasinha clara. O espaço immenso re- pousava n'um immenso silen- cio. N^aquellas solidões de monte e penedia os pardaes, revoando no telhado, pareciam aves consideráveis . . . Mais tarde, toda a região envolvente o com- move e absorve profun- damente. Subindo das margens do rio, a contemplação do artista abraça toda a serra, que já não tem a aspereza da Barca de Alva e mais se confunde até com a zona dos campos de entre Douro e Minho. EM MIRANDA DO DOURO ' Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras. o solo, o clima e a paisagem 17 E cm breve os nossos males esqueceram ante a incomparável belleza d*aquella serra bemdita ! Com que brilho e inspiração copiosa a compozera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, n'este seu Portugal bem-amado ! A grandeza egualava a graça. Para os valles, poderosamente ca- vados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, de um verde tão moço que eram como um musgo macio onde appetecia cahir e rolar. Dos pen- dores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo o DOURO — PERTO DE AR^GOS amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Atravez dos muros seculares, que susteem as terras liados pelas heras, rompiam grossas raizes colleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam Rores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a solida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol ; outras, vestidas de lichen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas ; e, d'entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo ama- chucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a agua sussur- rante, a agua fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, d'entre as patas da égua... ; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibra- vam e faiscavam das alturas aos barrancos ; e muita fonte, posta á beira de ve* i8 O pais português redas, jorrava por uma bica, beneficamenie, á espera dos homens e dos gados. . . Todo um cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjaes rescendentes. Caminhos de lages soltas circumdavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando : — ou mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, n*uma penumbra de repouso e fres- cura. Trepávamos então alguma ruasinha de aldeia, dez ou doze casebres, su- midos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa DOURO — EM PORTO MANSO dos pinheiraes, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas. . . Frescos ramos roçavam os nossos hombros com familiaridade e carinho. Por traz das sebes, carregadas d*amoras, as macieiras estendidas offereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros de uma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro ! Ramos de macieira, obrigado ! Aqui vimos, aqui vimos ! E sempre comtigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bemdita entre as serras ! Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos áquella avenida de faias, que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade. o solOy O clima e a paisagem 19 Sob a janella vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Uma eira, velha e mal alisada dominava o valle, d'onde já subia tenuemente a névoa d'algum fundo ribeira Toda a esquina do casarão d'esse lado se encravava em laranjal. E d'uma fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e ruti- lante fio de agua. Tormes dormia no esplendor da manhã santa ». Não vá imaginar, quem ler estas paginas tão larga e nobre mente sentidas, que só o artista raro e raramente consciente é que assim attinge a suprema espiritualização na formula symbolica em que nos transmitte a sua commoção esthetica, suggerida por uma região tão afastada dos convencionalismos mundanos em matéria de viagens de recreio. O próprio habitante indígena de pé descalço e consciência nuUa, vi-o eu manifestar-se identicamente perante essa natureza de um encanto tão penetrante e elevado. Era ao cair da tarde, um pouco a montante do sitio excepcio- nalmente bello de Entre-os-Rios, esse alargamento produzido pelo encontro dos dois valles, o do Tâmega com o do Douro, e pela fusão de quanto de mais pittoresco e suave poderia encontrar-se em ambos elles. Baixava docemente o dia e a calma do ar e das en- costas banhadas no pualho dourado do poente era solemne, extática. E da encosta fronteira á minha levantou-se uma voz dourada também, lenta e muito aguda, que assim cantava: ^ndéiníCno ' Hmr-:iJ'J )\T^ uySUIU-vi yy^ôu. Stm\ SkòieA. ^ u^^iamHilA, d^di^ &^ l A ultima nota afastara-se docemente, num decrescendo lento, percorrendo o valle longo e calmo até ás ultimas quebradas. De I Todos estes extractos provêem de A Cidade e as Serras. 20 O pais português longe, de muito longe, respondeu-lhe então uma outra voz mais viva e travessa, em movimento também mais sacudido : jffl/efrc til nimim ijnjLiiJ-jf4 i/miím». 0le-. 1  ^^"^ -^ ^^*lr^ 'TTt' o MONDEGO NA REGIÃO GRANÍTICA Apesar de nascido na serra rude e inhospita, e até quando atravessa a região alpestre do seu curso superior, o Mondego con- serva em grande parte o caracter idyllico tão conhecido no seu curso inferior, mercê da abertura do valle que não tem a estrei- teza de outros valles das regiões graníticas. E é por isto sem duvida que, para muitos, o verdadeiro rio da serra é o Zêzere, que desce de escantilhão por penedias bravias, desde a origem até á foz. O Ze\ere é o verdadeiro rio da serra da Estrella, como terei occasião de mostrar quando lhe descrever as nascentes, guardadas, como sentinellas gígan- teas de um mundo de monstros mysteriosos, pelos dois cântaros. Nascentes dignas de um rio como o Danúbio, e como o Zêzere o seria infallivelmente, se Augusto Gil, in Serões. 3o O pais português o Tejo, com perfídia castelhana, o não cortasse de meio a meio, em princípios da carreira ! A Serra da Estrella. — Assim diz Emygdio Navarro no livro atrás citado. Para elle remettemos o leitor que queira informar-se acerca do melhor ponto de accesso á Serra da Estrella, porque ESTRELLA — A CASA DO FRAGAO uma excursão por taes sitios exige estudo e preparação especial, que não apenas a informação de um guia de viagens ordinárias. E, entretanto, suppomo-nos no cimo da sua esplanada, em com- panhia do guia Navarro e de Oliveira Martins. Este explicará primeiramente : Por essas eminências, tapetadas de relva no esiio e de neves no inverno, nem as villas, nem as arvores se atrevem a subir : só o pastor nómada as ha- bita. Do alto do seu throno de rochas vè gradualmente ir nascendo a vida pelas encostas : primeiro o zimbro, rasteiro e roido pelo gado, circumda os altos nús; logo apparecem os piornos, as urzes brancas, os carvalhos ; depois, já a meia altura da encosta, os castanheiros, as lavouras, e os enxames das villas; afínal, na extrema baixa, o lançol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas em fios de brilhantes, que o sol faceia ao espelhar-se no labyrintho dos canaes ». I O. Martins, Historia de Portugal, vol. i. o solo, o clima e a paisagem 3i Synthese de artista e de economista com saúde delicada e hábitos da capital, a que se contrapõe a truculência trasmontana de Emygdío Navarro, nascida em região de frio e serras, e não de planuras e clima temperado. Navarro visita a Serra por suggestão e na companhia do Dr. Sousa Martins, que a conhecia a palmos e que, como se sabe, foi o fundador do Sanatório ali exis- tente. A alegria e enthusiasmo ^ ' transparece nas suas chronicas com uma exuberância que faz perdoar algumas imperfeições e faltas de gosto. Acolá, ali em baixo, a curta distan- cia, está a cidade da Covilhã , mais alem está a villa do Fundão ; a nordeste está a cidade da Guarda, a cidade mais alta da Europa, a irooo metros; ao norte, inclinando accentuadamente para o occi- dente, estão Gouveia, Moimenta, Ceia, S. Romão e todas as povoações do valle do Mondego. Com poucas passadas, abrange-se n*um relance a posição d'estas differentes povoações, aliás tão distan- ciadas umas áss outras. Mas nenhuma d'ellas se divisa ; os contrafortes da serra escondem essas povoações, e o terreno, que se vê, é alem d'ellas. Ainda assim, a perspectiva é magnifica. O nascer e o pôr do sol são ali de uma inexcedivcl magnificência. PASTOR DO F0LG08INH0 E principalmente o nascer do sol é de aspectos phantasticos, e motivo de impressões extraordinárias. A luz doura as cumiadas da serra quando nos po- voados mal se esfumam as trevas da noite. Sente-se despertar a vida da natu- reza em meio do somno do homem. As mais das vezes, a luz côa-se por brumas tenuíssimas que rapidamente se adelgaçam até de todo se evaporarem, ou que descaem e se concentram sobre os logares inferiores, formando uma superfíce alvacenta, que se prolonga até onde alcança a vista. Parece então que temos debaixo dos pés um mar, de largas e suaves ondulações e reflexos iriados, em que sobresaem os picos e cabeços mais salientes, como navios baloiçados em preguiçosa calmaria, ou cetáceos adormecidos á flor da agua, que ali tivessem ido aquecer o dorso escuro e viscoso ! Algumas vezes, quasi sempre a horas adiantadas do dia, esse mar tranquillo transforma-se enfi oceano revolto. As brumas esbranquiçadas ennegrecem com 32 o país português a electricidade, que n'ellas se accumula. Em cima, um ceu puríssimo, uma atmos- phera plácida. Em baixo, uma trovoada medonha. Os trovões estoiram com fúria brava, que faz estremecer os flancos da serrania, e as chispas rasirejam em zig-zags de serpentes, como se os quizessem queimar com o seu hálito de fogo. Espectáculo soberbo! As corcovas e depressões da serra, com os seus covões profundos, os seus poios encastellados, as suas penedias capríchosas, as suas ravinas escarpadas, A LAGOA DO PAXAO as suas geleiras frigidas, e as suas pradarias de esmeralda, abrangem -se d'ali, simultaneamente, em breves relances. Ao fundo, muito ao fundo, verdejam uns pequeninos valles, dourados pelos reflexos do sol, e que são as veigas largas e fertilissimas que abastecem o povoado. As gargantas medonhas da serra abrem sobre morros, que se amaciam na 3irecção d*esses campos, golfando abundan- tissimas aguas, que os fertilisam, e que também alimentam numerosas fabrícas; e a grande esplanada ergue-se como um ubere, enorme, monstruoso, em posi- ção invertida, com a sua coroa quasi permanente de brancos nimbos, como o ubere de uma boa vacca leiteira se mostra coroado de brancos pêlos ! O terra, alma mater ! Na esplanada da serra o silencio é muito pronunciado. O ambiente parece ter uma solemnidade esmagadora; e, apesar da maior rarefacção do ar tor- nar menos transmissíveis as ondas sonoras, ouve se muito distinctamente o ruido de passos e de vozes a larga distancia, como se fora próximo. Re- gistada esta ultima observação, eis-nos o caminho, na breve descida para os cântaros. i o solo, o clima e a paisaf^em 33 o CÂNTARO MAGRO Depois de descrever a nascente do Zêzere, as ge- leiras e as lagoas, e as duas «sentinelas», que lhes vi- giam os primeiros passos, o Cântaro magico e o Cân- taro gordo y sob a impressão agitante do grandioso dra- ma que se desenrola nas encostas atormentadas da Serra, Navarro conta-nos como a torrente jMesce e se precipita contra o Tejo, ini- migo vindo de terras de Espanha, pesadelo de fronteiriço habi- tuado a espreitar, do alto da torre de menagem da cidadella bri- gantina, a invasão das hostes contrarias. Os primeiros filetes de agua que para norte e leste escorrem do rebordo da grande esplanada da torre são também as primeiras nas- centes do Zêzere. Este é o verda- deiro rio da serra da Estrella e o mais favorecido de aguas. O Tejo sae-lhe ao encontro em Constança, e só o vence porque a natureza do terreno o obriga a misturar-se com cUe. Na arremettida, a braveza her- minia leva de baixo a pujança cas- telhana. Braveza herminia é uma redundância, porque o adjectivo herminio ou hermenho já de si quer dizer bravo, áspero, selvagem ; e d*ahi vem chamar-se á cordilheira da serra da Estrella os montes her- minioSf como quem diz os montes bravios por excellencia. Passe a re- dundância com este salvo-condu- cto. O Zêzere, quando se entumece impetuoso, escorre com raivoso fragor por cima de penedias e cas- catas, corta o Tejo de lado a lado com fúria invencivel, e este só pode passar adeante galgando por 3 A GARGANTA DOS CÂNTAROS 34 O pais português cima do seu inimigo, como se fora sobre um açude ! O rio esbarra contra os terrenos alemtejanos, que lhe fazem frente, e é então, e só então, que se dá por subjugado, não sem protestar por um largo espaço, com a côr mais azulada das suas aguas, contra a perfídia, que o assalta em começo da sua carreira, e a oppressao, que o esmaga na sua patriótica autonomia. As geleiras, que raro desapparecem da região dos cântaros^ são o principal elemento das suas nascentes. A LAGOA COMPRIDA Das alturas do Sabugal, de onde para norte desce o Côa a ajuntar-se ao Douro, desce também para SO. o Zêzere a con- fundir-se com o Tejo, atravessando a região alpestre e pittoresca do valle que separa a Estrella da Gardunha. Abrigada dos ventos do mar por essas duas linhas de serra, existe ahi uma das mais férteis e interessantes regiões do pais — o districto de Castello Branco. Descendo da Estrella, encontra-se a estação de Unhaes da Serra, a i:32o metros de altitude; logo em seguida, a cidade da Covilhã, a 770, e atravessando o Zêzere, com a linha férrea da Beira Baixa, passa-se no Fundão, que lhe fica fronteiro na aba norte da Gardunha. Do lado de alem, a linha férrea vae sempre descendo na vertente da Serra, toca na sede do districto, já em região mais baixa, e acompanha o Tejo na margem direita, a partir de Villa Velha de Rodam. A variedade dos terrenos que se atravessam, granitos ao norte, calcareos a sul, e de permeio zonas enormes de terrenos archaicos; a vegetação formada por oliveiras, azinhos, sobros, castanheiros, carvalhos e pinheiros; a forte quantidade de chuva o solo, o clima e a paisagem 35 que envolve toda a região; e a accidentação frequentíssima e por vezes violenta do terreno convertem esta parte extrema da nossa primeira zona num rico manancial de assuntos de paisagem. E uma região brilhantissima mas que participa um pouco dos caracteres da segunda zona, a dos calcareos. Toda esta primeira zona se caracteriza, como vimos, por uma extraordinária variedade de aspectos, procedentes da natureza do o TEJO NAS PORTAS DE RODAM solo, da sua excepcional e imprevista accidentação, da diversi- dade de ventos reinantes e resultante diversidade climática, da riqueza de vegetação arbórea e do aspecto generoso que os granitos communicam aos terrenos. Mas, chegados á foz do Zê- zere, é que vemos que nos ficou para trás a zona dos terrenos baixos das bacias do Vouga e do Mondego, que, juntas ás do Tejo e Sado, completam a segunda zona principal do nosso sys- tema de exposição. Agora desapparece a paisagem grandiosa e trágica, os terrenos graniticos com as suas enormes escarpas a pique, o denticulado das suas serranias, os seus valles apertados, os rios torrenciaes; entramos na região idyllica do calcareo, das ondulações suaves, das aguas lentas, valles dilatados e terras baixas. A vida suaviza-se. Voltemos portanto um pouco para trás. 36 O pais português Aveiro. — Galgado o Douro por sobre a ponte de ferro, numa altura superior a 6o metros da superfície do rio, e contemplado por ultima vez o panorama da bacia que se estende de Campanhã ao Areinho e a serie dos contrafortes que, em escalão ascen- dente, se perdem ao longe, para NE., o comboio enfia pelo tunnel da Serra do Pilar, mas deixa-nos ainda ver de relance o amphi- theatro imponente e pittoresco do velho Porto em quasi toda a OVAR — o PAUL DO CARREGAL extensão. Toma agua em Gaia e desce vertiginosamente até a borda do mar, atravessando campos, vinhedos, moitas e pinhaes. Após Espinho, interna-se um pouco para as terras e voa, que o chão é plano; corta a baixa de Esgueira, de lés-a-lés, passa alem do Vouga, e pára na estação de Aveiro. Quem não viu a cidade e a zona que a rodeia, e quer experimentar uma sensação de pro- funda belleza e de vida intensa e diversa da que vira até ahi, e de que ninguém poderá suppor a existência num país como o nosso, faz bem em não continuar a viagem. A região de Aveiro é uma pequena Hollanda em pleno clima e luz occidentaes. E eu creio que a maioria dos portugueses ignoram o que essa zona baixa, conquistada lentamente ao mar, encerra em si de riquezas valiosas e de aspectos estheticos inten- o solo, o clima e a paisagem 3? sãmente differenciados. Essa zona é producto do trabalho do mar, que forma as dunas, e do trabalho do homem, que as apro- veita. A ria é um polypo collossal que se divide em infinitos braços e penetra pelo interior das terras, desde Ovar até aos Palheiros de Mira, em 40 kilometros da costa, e transversalmente numa largueza máxima de 10 kilometros. As dunas transformaram-se a sul nos campos da Gafanha, dignos de estudo como exemplo methodico da posse das terras baixas pelo homem da montanha, e formação de um typo espe- cial de propriedade. A ria é o laboratório chimico dos adubos das EU ÍLHAVO, NA POKTA 8E. DA RIA respectivas lavouras, o molliço, e é ao mesmo tempo uma admi- rável via de communicação e transportes. Como aspecto, pro- vavelmente pela extensa superfície de evaporação de centos de hectares de agua salgada, toda esta região se distingue do norte do país pela luz irisada que a banha e de momento a momento muda de tom. Da ria, essa atmosphera caminha para o interior das terras, communicando á paisagem aspectos absolutamente differenciados. Essa paizagem deliciosa e original, indecisa entre o mar e a terra, e que nos enche de vivo prazer^ quando a dominamos desde os altos de Angeja á raiz das montanhas, attrae-nos como a sombra da manzanilla, cheia de fres- cura e veneno. Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos ho- mens I. I Oliveira Martins, loc, cit. 38 O pais português Martins, falando de Angeja, deveria citar-nos ainda o sitio da Ponte da Rata, porque aqui mais ainda se nota a fusão dos ele- mentos que elle aponta, pelo incremento que a maior distancia á costa necessariamente lhes communica. A atmosphera da ria, alem de tudo o mais, parece commu- nicar, como nenhuma outra, a todos os seres e objectos que nella mergulham uma tal graça e distincção de aspectos e movimentos que, por vezes, julgamo-nos ahi transportados a uma região ideal. NA MA DE AVEIRO E quero crer que o seja. Sentimo-lo quando por deante de nós desliza um dos muitos barcos molliceiros, com a proa erguida em curva e pittorescamente ornamentada a cores vivas. Ou quando graciosamente envolta no seu chalé, como uma estatueta de Ta- nagra, passa saudando-nos delicadamente uma tricana de Aveiro, irmã das de Coimbra e ainda das de Vianna, que Ramalho Or- tigão considera as mulheres mais lindas de Portugal por serem, diz elle, as mais bem educadas, e talvez por não as ter compa- rado ás da ria aveirense. Ha ahi o quer que é de grego, nos rythmos por que se rege e nobilita a vida; e d'ahi virá porventura a illusão, que muitos teem, de uma colónia helénica origem da actual povoação e das suas gentes. Mas furtemo-nos ao encantamento e avancemos até Coimbra, onde teremos de fazer novo esforço, maior talvez, para continuar o solo, o clima e a paisagem 3 o nesta peregrinação esthetica, tão esgotante para quem profunda- mente sente a belleza da terra. Eis-nos em cheio na segunda zona principal, caracterizada, como apontamos na nossa Advertência preliminar por : — terras baixas, rochas calcareas, choupos e salgueiros, luz dourada e jo- vial, clima temperado, calma ondulação do solo, aspectos que se succedem sem contrastes nem imprevistos violentos, vegetação variada e intensa, solo feracissimo. o HOKDBC.O EM PENACOVA Coimbra. — Estamos em plena região do baixo Mondego, que, lindamente posto em socego, ahi repousa da corrida através dos granitos beirões. O valle alarga-se voluptuosamente e as aguas preguiçosas, desapparecendo muitas vezes da vista das lindas tri- canas, escoam-se de mansinho através dos areaes que assoreiam o rio. O panorama é d'aquelles que nunca esquecem. Desde Camões, que todos os poetas portugueses o teem cantado, fasci- nados pela doçura incomparável dos seus aspectos, pela ondula- ção graciosa e senhoril das terras e montanhas marginaes. Até Fialho de Almeida, tão violento por vezes nos rythmos e côr da sua forte prosa, se deixou vencer pelas seducções do valle encantado. Em torno á mole Universitária, a cavalleiro na corôa da montanha, a cidade corre por todas as quebradas e vertentes, vendo-se, de cima, ruas, quintaes, jardins e torres. Desigual, cheio de bossas, o Mondego, como uma cobra na areia, espreguiça a sua trança d 'agua morta, desde a Portella até ás franças do Choupal, e por toda a margem os choupos afusam-se, os casarões das quintas amadornam, e vêem -se os salgueiros chorando os tradícionaes amores 40 O pais português de Pedro e Ignez. Para alem do talweg, na outra margem, ergue-se gradual- mente um amphitheatro de colinas, onde no primeiro plano as vinhas e pinhaes servem de fundo ás manchas claras dos casaes e dos conventos ; depois, tre- pando sempre, mais sobre o longe, serras azuladas esfumam-se em vagos ténues d'aguarella, de uma côr incorpórea que faz contraste com os planos nitidos verdes, bem postos, dos pomares e jardins rentes do rio. Por toda essa grande vista circular, os episoc^ios são tantos, tão decorativamente lançados no sentido duma cegueira das linhas principaes, que os deslumbramentos da vista ape- nas logram fixar, por qui, por lem, manchas avulso — lá para a direita, perdi- das num céo cruel de calma, as massas do Choupal, da Caudelaria e escola o MONDEGO EM COIMBRA regional de S. Martinho; apóz, os picos do cemitério, na abrupta escarpa, e casarias dum bairro entre cyprestes e terras cultivadas; apóz, circumior- nando sempre o olhar sobre a direita, campos de vinha, olivaes, pinhaes, zonas de sueco — e depois as massas verdes do Jardim Botânico, e o Seminário, as Ursulinas e o Paço do Bispo — e cada vez mais altos e distantes, planos de serrania, cabellugens de mattas, o céo côr de aço, os infinitamente longes, mal tocados, — grandeza, largueza, ares de Portugal, sorrindo paternalmente á vida rústica ! Todos os sítios consagrados pela emoção dos milhares de adolescentes que ahi passaram, de cabellos ao vento, de noite ou de dia, com a guitarra ou com livros, sosinhos ou em bandos, nalguma dessas divinas horas em que a alma, afinada pela dor, communga o religiosismo amargo da natura : todos os sitios clássicos de Coimbra, a Lapa dos Esteios, o Penedo da Saudade, Santo António dos Olivaes, Santa Cruz, a Estrada da Beira, a Ponte, o Chou- pal — ai ! todos elles, verdade, são calorosamente dignos da reputação que lhes fizeram, reputação que o tempo nobilifica, e de que não é possível evitar o solo, o clima e a paisagem 41 jamais o encanto absorvente. Esse encanto por certo vem da harmonia das formas, das harmonias da côr, da candidez esparsa, do repouso e dos vem também de feitiçaria das sensi- accidentes idylicos naturaes, mas bilidades poéticas, ideaes, que ali pulsaram, da quantidade de belleza physica, de generosidade d'alma, de crença ingénua, d'imberbe ca- valheirismo, que durante séculos ondearam por ali as plumas dos seus gorros e os sons da sua voz — murmúrios que as payzagens reti- veram, corrigindo-se por estas re- miniscências nobres ou formozas, e reenviando ao tourisíe, de memo- ria, as impressões do seu deslum- bramento. Por que não é já myste- rio que uma payzagem seja, como nós, sensivel á lisonja. Quantas ve- zes, sol posto, já a serra da Louzã mal curvejava no céo baço, no Pe- nedo da Saudade, sosinho não vim eu, simples estranho, já cynico, á quintessência de todas essas ances- traes fascinações. A natureza e a vida animal téem ali uma quebreira languida que se presta ao rythmo das falas, á molleza das ideias e á desinvolução do sonhar senti- mental. No Choupal, que é uma floresta nova de folhas muito verdes, ru- mores de noras, braços de rio pas- sando pontes, lavadeiras, rouxinoes e alagadios tufados de herva tenra ; no Choupal a esbelteza gracil de certos macissos de ailantos, chou- pos, freixos, plátanos, eucaliptos, zebrados de sol, pelas clareiras, es- guios e ondulosos como ephebos, com verdes raros, frigerantes nebli- nas, vagas formas poéticas, a suggestão recebida assemelha-se muito á que nos toca, vendo sair das aulas, em chusmas, á Porta Férrea, todo esse doirado enxa- me de rapaziada buliçosa. A mesma descuidosa complacência, a mesma prima- veril fínura nos meneios, o mesmo grito de corações rindo ao viver. De sorte que, indissoluto o laço de harmonia, a mocidade escolar é para assim dizer, no seu bu- licio, como que a projecção da natureza idylica que a circunda : uma penetra a outra, solidarias, a pensante e a sonhante ; donde não é paradoxo dizer que as NO CHOUPAL 42 o pais português suggestões artísticas são nesta terra como que uma florescência do solo e um oxigénio do ar, e colhel-as não custa, bastará quando muito olhar em tomo >. o MONDEGO E A ESTRADA DA BEIRA Numa tal atmosphera, a canção torna-se doce e carinhosa, per- dendo comtudo a profundeza que a caracteriza nas vertentes do gra- nito: a Dor desappareceu com as asperezas da região anterior; a saudade é até expressa com galantaria e graça, entre sorrisos e boas maneiras. ' i r^M j-^ ^ • i \ u'\ iiu^x ^ ^ b' id-àf&.yu^tf vtíi úm-ic^i^^Q' U-dfiÃí uSitSC^ ^^ ^^ ij i ■"• ' Í¥Í^ «( (y íL .<í«í» í"*^ *<^^'''*-^,6'-&i-^^i«Âí»'wú, Vj Tjll]j^ Jljf^^''llTij I : ^H*» «I Õ' ^.C£l^,n itMd eH(.i«M.,JK5 (e A«M'^^HMC£(. ■1 -"-^ i Tj , j "^ij f-rJiij^^ a » Fialho de Almeida, A Esquina. o solo, o clima e a paisagem ^3 As danças populares apparecem rythmadas de uma forma absolutamente diversa da primeira zona. Deixaram de ouvir-se as chulas, passamos a ouvir as danças de roda. E estas são balanceadas e de movimento moderado, em contraposição com a viveza e persistência rythmica elementar das primeiras. Pare- cem todas geradas em estilo rocaille, curvas arredondadas e gra- ciosas, arte de bom tom, jovialidade comedida e amável. 'j:;j-?n uj.^iu»j^hijrJ i ij Tudo isto se contém na natureza envolvente, independente da poesia a que a musica nos apparece ligada. Ahi, o que domina, o que traduz a commoção difFerenciada é a melodia, como expres- são immediata que é dos estados de alma. A estada em Coimbra comprehende necessariamente a visita á importante serie dos seus monumentos, museus e sitios celebres, aos conventos de Santa Clara, Cellas e São Marcos. Mas ahi ha o precioso Roteiro Illustrado do Viajante em Coimbra^ muito bem illustrado, e para lá remetto o leitor, com a obrigação de o adquirir e estudar. Estremadura. — Eu não sei porque, em logar de começar logo após Coimbra para abranger todo o resto da nossa segunda zona de paizagem, quasi a sua totalidade, a provincia da Estremadura, centro do país, não ha de comprehender o triangulozinho que nos occupou até agora e onde Aveiro e a cidade universitária ficaram separadas das outras terras d'essa zona e ligadas ao Douro apenas na carta chorographica. Cousas antigas que provavelmente já nin- guém sabe explicar, nem talvez valha a pena saber. Mas é um facto que nos encontramos dentro de outra provincia, embora não notássemos na paisagem diflferença a motivá-la. Thomar está situado nas margens do Nabão, a 7 kilometros da estação de Payalvo, linha do Porto a Lisboa, e do lado opposto 44 O pais português ao mar. Esse pequeno trajecto faz-se por estrada ordinária, aliás pouco interessante. As margens do Nabão, conservando o RIO NABÃO inteiramente o caracter da região do Vouga e Mondego, são porem encantadoras. Mas o que em Thomar se antepõe a tudo é a serie o RIO ALMONDA dos seus monumentos religiosos, das épocas românica, gothica e renascença (diversos periodos), que pertenceram á ordem dos o solo, o clima e a paisagem 45 Templários e mais tarde á dos Freires de Christo. Essa serie, excepcional e bastante bem conservada, comprehende exemplares notáveis, alguns d'elles únicos na arte de Portugal. Continuando na linha para os lados de Lisboa, deixamos á nossa direita uma zona extremamente pittoresca. Em primeiro logar toda a região de Torres Novas e do Rio Almonda, con- 1 mL j^â"' ' "^.^ ^*^ ' \. f r^ra k ^ 1 i o ALVIELLA EM PERNES fluente do Tejo; e, logo abaixo, a do Rio Alviella, o confluente que fornece a agua á capital e cujas quedas de Pernes são inte- ressantissimas. Comprehendidos entre as ultimas vertentes do Zê- zere a N.E. e a Serra dos Candieiros a poente, todos esses ter- renos, embora se encontrem já no valle do Tejo e sejam em parte de recente formação, sentem ainda a proximidade do solo movimentado dos seus limites extremos. Estabelecem por isso mesmo a transição entre as nossas i.* e 2.* zona de paisagem, tendo comtudo a caracteristica vegetação d'esta ultima. a() o pais português Na mesma linha férrea, e um pouco antes de Payalvo, encon- tra-sc o ramal de Alfarellos, que nos leva á linha da Figueira a Lisboa, por Leiria, S. Martinho do Porto, Caldas da Rainha^ Torres Vedras e Mafra. Ksta região, pouco afastada do litoral, c digna de uma prolongada visita. Km I^iria, edificada á beira do Liz, que por vezes a inunda, existem as ruinas do castello gothico de El-Rei D. Dinis, mais tarde aumentado por D. João I, e que foi o monumento civil mais importante d'essas épocas em Portugal. Do alto do castello, a vista abrange um panorama extensíssimo e cuja belleza mereceu a \\\;'x\ de Queiroz uma pagina encantadora, simples Estudo de capnpo, rapidamente esboçado, mas que apesar d'isso tem o valor de um quadro de mestre : Km rovlrt da Ponte, a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o rio vem silo collinas baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama verde Miegru dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão o$ cusaes, que dâo ilquelles locares melancólicos uma feição mais viva e hu- mana — com as suas ule^res paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para O lado do niar« para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de $ali;ueiivs pallidos, estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiríoi larjívx ftícundo, com o aspecto de aguas abundantes, cheio de luz. Ao po da l\>nte^ uma rampa desce para a alameda (macadamisada), que se estende um pouco a beira do rio centre dois renques de velhos choupos). É um lo^ar rxNX^lhivUx coberto de ar\*ores antÍ4;as. Chamam-lhe a Alameda Velha. A tarvie descahia muito límpida ; o alto cêo tinha uma pallida côr azul ; o Ar estAVA immo\ eU Naquelle tempo, o rio ia muito vazio ; pedaços de areia reluzi A ai em sècco ; e a A):ua baixa arrasta va-se com um marulho brando, toda cnm^.uiA vio n\ar dos seixos, DxUis x-íivCAS* ^Kirdâdas por uma raparica, appareceram então pelo caminho KvkNÀ> q«;e vio outrx> IavÍo vio rto^ defronte da alameda^ corre junto de um sil- XAdv^: Cí*»trArAm nv> riv^ vieMíij^ir, e estendendo o pescoço pelado da canga, Nrb A;'ii de '.cxe^ scn> nnviv>: a esrNAÇos erj:uiam a cabeça bondosa, olhavam em re\w ovv^.i A |v*ss:v,\ tran^^vU.IuiAde dos senes tartos — c tios de agua, babados, K;í:o„v>s a U.^ ;vnx::,*n^ '.hes dos C3inios do focinho. Ovv:^\ A inv>.;'iACÍv^ do SvX a acua perdiA a sua claridade espelhada» esten- x^A^"^^ sí AS N.^íV^^^AS vív« Arcv-^s du TVM^te. Do lado das colI:aas ia subindo um c^c;v«>^^;.Io cvr\:r:':.Xv*v\ < as r.uxens cv^r de sancu::>eji c còr de larania que A;*;;"., 'ic;* v, v* CA.cc t^ií.Ar.x so^rc v>s ^.adc^ do rrar* ur::a decoração muito rica >. ^:x:V ,l*»:,r*,v o solo, o clima e a paisagem aj De Leiria, para se verem os mosteiros de Alcobaça e da Batalha, as Caldas da Rainha e a lagoa de Óbidos, segue-se a estrada ordinária, que, sobranceira á faixa da linha férrea, per- mitte em certos pontos abranger com a vista as extensas terras que, em suave declive, descem até ao mar. Essa estrada, como todas as que atravessam a região, é uma paisagem continua e dificilmente se encontrarão outras que se lhe comparem. Ramalho Ortigão, referindo-se a uma d^ellas, confessa-o também : A estrada a S. Martinho e a Alcobaça é simplesmente maravilhosa de pai- zagem ; e nada vi jamais para lhe antepor como tranquilla, risonha e pacifica expressão da natureza rústica e da vida rural. Na grande planicie, em tomo dos pingues campos de Alfazeirao, a pequena bahia de S. Martinho do Porto parece embeber-se e penetrar na poética doçura do solo, com a voluptuosi- dade de um beijo aquático dado á campina pelo oceano. Para o lado opposto do caminho até á cordilheira que vem de Cintra, e cujo perfil violáceo se esbate ao longe nas transparências do céo, é o largo e majestoso valle, sal- picado de casaes alvejantes, entre as vastas searas ondulosas e os densos bosques de pinheiros sobre consecutivos e suaves cômoros virentes de vege- tação brava, cobertos de fetos, de giestas e d*urze, desabrochando á beira da estrada em flores que se não vêem ao longe bebidas pela grande massa verde- negra, e são as estrellas douradas do tojo, os turbantes azues das alcachofras, e as pontas prateadas das moitas de trovisco, sobre que caem em regaçadas do vallado os cachos das madre silvas >. Cintra. — Para quem parte de Leiria, duas estações de verão se lhe offerecem proximamente a igual distancia: Caldas da Rai- nha e Cintra. Deixemos porem a primeira para quando nos occu- parmos das praias e estancias d'aguas ; tomemos a linha de Lisboa e, mudando de comboio no Cacem, sigamos para Cintra, onde iremos encontrar a temperatura mais idealmente fresca e conso- ladora. Assente num massiço de granito que, em época relativa- mente moderna, irrompeu do terreno cretacio envolvente, a villa deve á natureza especial do seu solo a vegetação maravilhosa que veste toda a montanha e as aguas preciosas que surgem por toda a parte. Alem do paço real, que é um dos mais interessantes e sugges- tivos edifícios do país, Cintra conta nas suas encostas uma longa serie de magnifícas quintas, muitas das quaes dignas de serem Farpas, vol. i. 48 O pais português visitadas. O facto que porem a torna mais notável é a grande diversidade dos seus panoramas e pequenas paisagens. De qual- quer elevação a que se suba, avista-se sempre a vasta campina, que se estende no sopé da montanha, limitada a poente pelo mar e a nascente por uma cadeia de cerros pouco elevados. Para norte o horizonte é illimitado. E nesse chão extensissimo que fica OLHANDO DO CASTELLO DOS MOUROS Mafra, lá ao longe ; mais perto, Collares ; á esquerda, as Azenhas do Mar; e depois um rosário de outras povoações menores. Mas esse panorama, pela sua enorme extensão, nem dá paisagem nem geralmente chega a ter cor; á distancia que fica, e afora certa época do anno, o aspecto d'essas terras é pardacento. O encanto para o pintor reside propriamente nos mil incidentes que nos sur- prehendem a qualquer volta do caminho dentro da povoação e nos terrenos montanhosos que a envolvem, a pequena paisagem local emfim. Assim o sente também Eça de Queiroz, quando nos des- creve Cintra num dos seus romances. A descrição apparece o solo, o clima e a paisagem 49 entrecortada pelo dialogo travado durante um passeio através da villa ' . Primeiro, um aspecto assaz frequente das encostas : Parara diante da grade d*onde se domina o valle. E d*ali olhava, enleva- damente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se vêem os cimos re- dondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo áquella distancia, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o inte- ressava, branquejando, afogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares. . . Depois, um pequeno lanço de estrada que fica de memoria desde a primeira vez que se visita Cintra, porque nos serviu de refugio ás horas de calor e também porque, na transição rápida da luz viva para a luz coada através da folhagem, elle se nos desenhou rapidamente á vista com harmoniosa distribuição de um quadro pictural: Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre dois velhos muros co- bertos d*hera, assombreada por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam um toldo de folhagem aberto á luz como uma renda : no chão tremiam man- chas de sol : e na frescura e no silencio, uma agua que se não via ia fugindo e cantando. Eça sente vivamente todos estes aspectos successivos, tem a visão aguda do impressionista que rapidamente fixa, na man- cha, os movimentos mais subtis, pela opposição e gradação dos valores. Chegados aos Sitiaes, só então é que o panorama da baixa campina, agora toda verdejante, no começo da primavera, im- pressiona um dos excursionistas, que é artista. Ainda assim é so- bretudo o eflfeito da luz na amplitude do ceu puríssimo que fere a sensibilidade hyperesthetica do observador. Mais tarde, em plena e desolada charneca alemtejana, iremos encontrar a mesma nota idealizante e pantheista, fixada por Fialho de Almeida. Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadra- Os Maias, vol. i. 5o O pais português dos verdes-claros e verde-escuros.. . . Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e além, n'uma massa de arvoredo, branquejava um casal : e a cada passo, n'aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos reve- lava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as hervas. O mar ficava ao fundo, n'uma linha unida, esbatida na tenuidade diííusa da bruma azulada : e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte^ tendo apenas, lá no alto, um farraposinho de névoa, que ficara alli esquecido, e que dormia enovellado e suspenso na luz. . . O passeio termina quando, erguendo os olhos, se lhes de- para a chapada da Serra, que, desde os Sitiaes, sobe até á cumiada em que assenta a Pena, A impressão é de profundo assombro. '••■«.V' ..-#'-*' No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravi- lhoso, de uma composição quasi phan- tastica, como a illustração de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e ver- dejando, todo salpicado de botões ama- rellos; ao fundo, o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma mura- lha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d'essa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno res- plendor do dia, destacando vigorosa- mente num relevo nitido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da A PENA serra, toda côr de violeta escura, co- roada pelo Castello da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro. . . A commoção mais extraordinária que, acerca de Cintra, se encontra expressa em todas as literaturas é porventura a que Byron eternizou na Peregrinação de Child Harold. Ella attinge até uma excepcional acuidade, graças ao contraste violento em que nos apparece, relativamente aos versos anteriores onde o as- pecto de Lisboa e o caracter dos seus habitantes são apresenta- o solo, o clima e a paisagem 5 I dos com cores pouco amáveis para nós. O genial poeta confes- sa-se ofFuscado pelas maravilhas que o cercam de todos os lados^ desde o sopé da montanha ás cumiadas e, num impeto do amargo enthusiasmo, exclama: O' natureza, para que desperdiças os teus thesouros com tal gente ? . . . Os artistas não são, porem, os únicos que ahi experimentam tão superiores impressões estheticas. Os homens de sciencia affir- mam-se igualmente commovidos perante a superior belleza do sitio. Em i88ò, por occasião do Congresso de Anthropologia e Archeologia prehistorica, os seus membros fizeram a excursão de Lisboa a Cintra, por Cascaes, e eis como um d'elles refere as impressões ahi recebidas » : Ao meio dia. . . partimos de Cascaes para Cintra. Durante muito tempo a estrada sobe sempre, ladeada de tabaibos e piteiras gigantes, através de uma região árida, seca, quasi nada cultivada. Mas, ao chegar a Cintra, o aspecto do solo muda de todo; reapparece a verdura e, de repente, ergue-se na nossa frente uma elevada montanha, coberta de vegetação deslumbrante, da qual emergem de onde a onde enormes rochedos de granito acinzentado, que o palácio real da Pena domina lá do alto. Percorremos de carruagem os primeiros contrafortes da serra. De cami- nho, fui eu examinando os blocos de granito que cobrem o solo por toda a parte, tanto mais dignos de estudo quanto é certo serem de origem relativa- mente recente e pertencerem á época terciária. A primeira vista dir-se-hia que esta accumulação desordenada de penedos procede de um violento cataclismo ; mas não é assim : as formas extravagantes, as varias posições que elles tomam explicam-se simplesmente pela acção dos agentes athmosphericos. Chegados a meio da encosta, deixamos a carruagem e percorremos a pé uma serie de jardins onde os arbustos e as flores attingem dimensões que eu nunca vira em parle alguma : as hortênsias azues e côr de rosa formam verda- deiras moitas ; os héliotropos, as fuchslas são do tamanho de arvores. Entra- mos em seguida no parque real e, durante cerca de duas horas, e sempre subindo, envolve-nos uma esplendida vegetação. As arvores mais raras cres- cem com extraordinário vigor. Aqui surgem grupos de Araucária imbricata, excelsa e brasiliensis de porte gigantesco, Eucalyptus enormes, pinheiros de todas as espécies ; alem os Leucodendrons, cujas folhas brilham ao sol como se fossem de metal ; logo adiante uma verdadeira mata de japoneiras de alguns metros de altura ; e, por toda a parte, aguas correndo ou despenhando -se de muito alto, que atravessamos em pontes do mais pittoresco aspecto. As encos- tas tomam-se Íngremes e, antes de chegarmos á Pena, montamos nos burros... para mais commodamente terminarmos a nossa excursão. I Cotteau, Le préhistorique en Europe, 1889. 52 o pais português Ha pouco tempo ainda, tive occasião de realizar a excursão de Lisboa a Cintra na companhia do illustre musico e dramaturgo allemão Dr. Richard Strauss, durante a serie de concertos de or- chestra que dirigiu em Lisboa. E julgo interessante aproximar, da impressão esthetica que encontrei nos Maias de Queiroz, a do artista germânico que habita uma grande parte do anno na região dos Alpes bavaros. Havia chovido no dia anterior e, em Cintra, a vegetação tinha um aspecto viçoso que eu nunca lhe conhecera; para mais, uma absoluta serenidade na atmosphera. Subimos á Pena pelas duas horas da tarde. E, como o Dr. Strauss desde Lisboa não se cansara de ver «um jardim» em cada ponto do trajecto, eu prevenira-o de que ia achar-se mergulhado na mais luxuriante vegetação ; que até ahi nada lhe podia dar ideia do que fosse a ve- getação da Pena. E, já agora, trancreverei para aqui a des- crição que então publiquei acerca d'esse passeio. Fomos pela estrada do syndi- cato. O automóvel trepava as ver- tentes da serra como que possuído de sentimentos heróicos; parecia que nos arrebatava da terra aos al- tos cimos. E a j)Ouco e pouco ia-nos envolvendo a mais densa e variada floresta: todas as espécies dos cli- mas temperados e da zona tórrida, todas as flores., todas as cambiantes de luz na mais rica das polychro- mias. E a mais inefável serenidade penetrava a alma maravilhada do artista, que, de encantamento em encantamento, parecia dobrar ao peso da suprema ventura. Dêmos a volia inteira ao parque, contemplámos a extensa planura e o mar, do alto castello, e descemos pelo caminho dos lagos. Quando ahi chega- A PENA VISTA DOS LAGOS o solo, o clima e a paisagem 53 mos, e chegámos já bastante tarde (porque não havia arrancar o grande artista do sitio em que parava para mais uma vez se extasiar), voltou-se elle para nós e disse-nos : — Hoje é o dia mais feliz de toda a minha vida. Conheço a Itália, a Sicília, a Grécia, o Egypto, e nunca vi nada, nada que valha a Pena. É a cousa mais bella que tenho visto e só me acompanha um pesar, não ter aqui, ao pé de mim, minha mulher, a minha companheira. E logo adeante, erguendo a estranha cabeça para o castello : — Este é o verdadeiro jardim de Klingsor; e lá no alto está o Castello do Santo Graal. A CAMINHO DO TEJO Nesta evocação do Parsifal de Wagner, Richard Strauss achava-se de facto em perfeita communidade esthetica com esse outro grande artista que foi Eça de Queiroz. O que mais uma vez banalmente demonstra que — les beaux esprits se rencontrent. O Tejo e Lisboa. — Ha indubitavelmente tres rios notáveis em Portugal : o Douro, o Mondego e o Tejo. O primeiro reune em si uma longa serie de variados e, por vezes, tremendos panoramas num percurso relativamente curto; desde a sua entrada em Por- tugal, pela alcantilada garganta que vimos em Miranda, até ao espraiamento idylico do Freixo, Campanhã e Areinho, os aspec- tos sempre intensos da paisagem succedem-se como no desenro- 5^ O pais português lar de uma viagem de sonho. O segundo, em contraste absoluto com esse, desde que entra nas terras do calcareo, só ahi também adquire igual, se não maior intensidade na nota que o caracteriza — a de inexcedivel doçura, alliada á graça mais carinhosa. Estes dois rios, pela natureza e dimensões dos seus valles, prestam-se pois admiravelmente á paisagem de arte ; ao passo que o Tejo, na parte mais importante do percurso, desde a barra até Santarém, ou tal- vez ainda mais para cima, parece escapar-lhe pela sua vastidão. O curso pittoresco do Tejo, que tem o seu ponto culminante nas Portas de Rodam, termina com a região montanhosa, ex- tremo S. da nossa primeira zona da paisagem. Quem lançar os olhos para a carta geológica do i volume, encontra esse facto justi- ficado no espraiamento formado por terrenos de sedimento mais ou menos antigo, em redor de Thomar e Abrantes. Até ahi, ser- vindo-nos da expressão de um ironista de Lisboa que se ignorava e descrevia o Douro, é o Tejo um rio de provinda, e é ahi que passa a ser um i^io de capital e a dar-nos, quando muito, impres- sões rápidas, em massa. No Tejo inferior tudo é luz e mancha — o traço não basta para fixar a sua majestade e grandeza. Vejamos porem as paginas descritivas que d'elle nos tem dado os nossos escritores em vários momentos do dia, desde o romper da aurora até ao pôr do sol: Um dia, ao amanhecer partiu para Santa Apolónia A madru- gada rompia. A cidade estava silenciosa, os candieíros apagavam-se. As vezes uma carroça passava rolando, abalando a calçada ; as ruas pareciam-lhe inter- mináveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas ; n*uma ou n'outra rua uma voz aguda já apregoava os jornaes ; e os moços dos theatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes. Quando chegou a Santa Apolónia a claridade do sol alaranjava o ar por detraz dos montes da Outra-Banda ; o rio estendia-se, immovel, riscado de correntes de còr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava, vagarosa e branca >. Esta notável grisalha, cuja lingtta nova já impressionou um subtil espirito *, dá-nos a impressão, a mancha luminosa de uma madrugada fria no Tejo. Duas pinceladas, duas faixas de um cin- 1 Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro. 2 Bruno, Á geração nova. o solOy O clima e a paisagem 55 zento pallido, horizontaes, e eis o quadro — o rio na sua vastidão completa. E os que empregam outras formas de arte, quando começam pelo pormenor da linha, rapidamente o abandonam, por insuíficiencia ou incapacidade expressiva. o TEJO E3C TANCOS No clarear de uma manha de setembro que paizagem aquella, vista do alto da montanha ! A barra, o cabo, o oceano ; a Arrábida ao sul ; ao norte Cintra. O sol rompendo na orla do nascente, em braza, sem vibração de luz a principio, agora jogando as primeiras frechas ás cumiadas de Palmella, ferindo as ondinhas verde-claras do Tejo. A sul, escuro o céo ; no remoto occidente, ainda mal desvanecidas as estrellas ; na aragem, apenas sentida, o sopro indizível e virgi- nal da madrugada ; os gallos da aurora soltando a voz crystallina pelos casaes perdidos entre as hortas e pomares. O Jamor, nas voltas sinuosas, denun- ciando-se no trepido murmúrio, atravez da névoa opalina condensada sobre o valle. Ao altear do sol, refrescando o norte limpido, dezenas e dezenas de moinhos agrupados ou disseminados pelas cristas da serra, girando as suas aspas brancas e produzindo-nos a visão de que se movia toda aquella gran- diosa e deslumbrante paizagem. Agora foram-se os moinhos, que tocavam de sabor alpino e agreste o ondulado e maravilhoso quadro. As fabricas deram cabo d*elles e deram-nos peor pão e mais caro ' ! I Bulhão Pato, Memorias iii. 56 O pais português Tanta vida, tamanha vastidão deslumbram e só se sentem movimentos, manchas, cores, luz e sons. Os objectos apontam-se apenas para nos orientarem, mas sem grande valor funccional ou expressivo. Para se abranger o Tejo, o afastamento necessário annulla o pormenor pittoresco. E se assim é do lado de Lisboa, também não deixa de o ser da margem esquerda, e tanto com relação ao rio, como ao quadro que lhe forma a margem. A ondulação suave das linhas, attenuada pela gran- de distancia focal necessária para se abranger integral- mente o panorama de Lis- boa, faz com que, da outra banda, a cidade se estenda, valha sobretudo horizontal- mente e como massa, que não pelo pittoresco do por- menor em altura. E será talvez por isso que Eça de Queiroz no-la faz ver «aque- cendo a sua velhice ao soa- lheiro, cansada de proesas e mares» >. Da ondulosa colina (a Ata- laia, em frente de Lisboa) em que se alevanta o santuário, o olhar, correndo sobre os campos, hor- tejos, vinhas, matto e pinhaes de rama curta, íluctua, embriagado da côr, vindo topar a norte a expansão que o Tejo faz, chamada mar de palha ^ em cujo fundo, além, num recorte de montes, Lisboa desenrola o seu panorama esfumaçado. É uma coisa de sonho romanesco, essa admirável grisalha da ca- saria polyedríca, comprimindo-se, tamanha, nos valles e gargantas, trepando ás cavalitas dos outeiros, molhando os pés nos cães, cantando pelas bôccas dos sinos, ou nos meios cansaços da faina, ennovelando a tumultuosa respiração pela guela das empanachadas chaminés ! Eli PLENO TEJO > Contos, o solo, o clima e a paisagem As primeiras obliquidades do sol, pendendo em cataractas d*oiro para a barra, magia não sei qual toca de apotheose o panorama da cidade e seus con- tornos, que a própria gente rústica a cada passo lança os olhos, mordida dessa melancólica seducçao. Na agua do rio, azul lavado, com barcos de aza vermelha, e uma facha de espelho reflectindo a casaria dos cães de ponta a ponta, claridades de verão plaqueam lagos, onde gaivotas singram, entre as arripiadas tranças da corrente ; limpido o ceu, mui alto, com absurdos d'ideia artezoando a cúpula infínita, deixa o espírito oífegar á coca de problemas — uma poeira paira, rolando pó- lens, espectralisando a luz, idealizando, recuando, revelando planos, valores, puindo na foz do rio a fornalha solar que incende a barra, e escorre n'agua listrões de oiro sangrento. Apezar da distancia e das três léguas de mar que nos separa, a cidade inda assim campeia enorme, e a intumescência da maré parece que a traz a nós, crescendo da agua, como um panno de fundo no reverso do qual alguém se agita para alem d'agua, um silencio magnifico, e como que a espectação hypnotica dum grande sonho de fumista. È esse silencio que, com a luz phan- tastica do poente, relevando e socovando faces na casaria acavalada pelos montes, parece tomar a cidade maior, a sombra delia mais diaphana, e mais estranha a sua poesia evocativa. Com a inclinação do sol, arde em ala o poente, e o corredor da barra é como um grande foco de labaredas escarlates, fulvas, brancas, acharoadas de cereja e rosa e madre-perola, donde se côa, em feixe divergente, um turbilhão de poeira luminosa, que trespassa as formas, e apaga as linhas rigidas, fazendo de tudo quanto doira, silhuetas. A noite vem, serena, forte e limpida, dos cerros, que os corvos enchem dos seus gritos viris, curvando voos De roda o matto cheira á rezina das plantas veraniças ; ondas de mosquitos zumbem de raspão ; e o immenso fundo da cidade, do Tejo e das montanhas, passa de vagar por mil cambiantes, emmurchece de cor, sínistrisa-se de fumaradas, laivos, onde fios de vidraças chamejam de sangue e fogo ainda, como feridas i Dir-se-hia um quadro de Turner, como o Por do sol no gran canale de Vene:{a, ou The Fighting temeraire, qualquer d'elles ca- racterizado por uma agua tranquilla e vasta sobre que pousa e se reflecte um ceu de fogo, uma fornalha ardente com toda a serie de tons que as chammas possam tomar, em que o quadro envol- vente não tem palor^ ou não existe. Da outra banda do Tejo prolonga-se ainda por algum tempo a segunda zona esthetica do nosso systema. E, logo em frente de Lisboa, temos o sitio que, para muitos, é o mais pittoresco de > Fialho de Almeida, A Esquina. 58 O pais português Portugal — a região de que a Serra da Arrábida é o centro e está comprehendida entre as bacias do Tejo e Sado. Subamos ao ponto mais alto de Almada e olhemos de lá, de onde os olhos se desafogam correndo desde o Castello de Pal- mella até Nossa Senhora do Cabo. Quadro enorme que abraça todo o cimo ondulado da serra da Arrábida : pomares, vinhedos, vastíssimos tratos de pin- heiral, que se perdem nos longes das planuras que vão morrer nas faldas da OLHANDO PARA A OUTRA BANDA montanha divisória do Sado e Tejo. O esmalte dos casaes, aldeolas, logarejos, moinhos de vento, campeando de entre massiços de verdura ; a ampla bahia do Alfeite, tudo ou no referver ao dia ou no descair da tarde, com as frechas ho- rizontaes do sol ponente, tem variedade, expressão e viveza como em poucas partes se encontram. A tarde era de verão, serena e calmosa ; mas arejada por um mareiro do oceano salgadio e fresco. As copas frias do espadeiro, da talia, do boal, vinhos d'este torrão celebrados já por Gil Vicente e Camões, accendiam até a alma de um velho que lá estava » Ou então, subamos ao topo da própria serrania, com Oli- veira Martins, que nos leva lá e se compraz em ter ahi uma I Bulhão Pato, artigos dispersos. o soloy O clima e a paisagem 59 visão semelhante á que nos descreveu na esplanada da Es- trella: A nossos pés descem as anfracluosidades da serra vestidas de espessas mattas, as giestas douradas, as bagas carmineas dos medronhos, o rosmaninho, a alfazema, misturando todos os seus aromas inebriantes. Sobranceiros a Pal- mella, vemos-lhe os muros ameiados; Setúbal desenha-se no valle aberto n'um jardim de laranjaes ; no fundo qaebram-se as ondas contra as rochas do Cabo ; e para o lado opposto as collinas da fidalga Azeitão ondulam por so- bre o espesso tapete de pinhaes que vae morrer no Tejo. Erguendo a vista, divisamos além do mar a pon- ta de S. Vicente ao sul; para leste, Évora de um lado, as campinas do Riba-Tejo do outro; para norte Lisboa em amphitheatro sobre a sua bahia; alem d*ella Cintra e os montes da Estremadura cista- gana, — a qual até ao Mondego forma a primeira zona estreme- nha «... E, com Martins ainda, atravessemos o Tejo um pou- co mais acima, em frente de Santarém, e teremos uma ideia completa d'essa formo- sa zona portuguesa que co- , NO RIBATEJO meçou um pouco para lá de Aveiro. Elle mesmo se encarrega de no-la fazer ver: O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do país. O ar temperado pelas brisas do mar a flora é variada, reunindo o pinheiro bravo e o manso, a vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e o centeio. Desde os campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria e Alcobaça vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo ; e, iranspondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á ideia o typo d'essas raças du Africa setentrional, lybios ou mouros A cavallo, de pampilho ao hombro, Historia de Portugal, i. 6o O pais português grossos sapatos ferrados, gorro vermelho na cabeça, o ribatejctno, pastoreando os rebanhos de touros nas campinas húmidas e vicejantes, é como um beduíno do Nilo. A vasta planicie matizada de povoações e bosques de choupos, de salgueiros e de álamos, contornada ao longe pelas cumiadas das serras, tem o caracter das paizagens do Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo esqueleto giganteo do Atlas i. A paisagem doesta região impressiona os estrangeiros em vir- tude da vegetação que lhe fixa o caracter. «Uma bella e larga NO RIBATEJO estrada, ladeada de choupos altos», assim é designada a que seguiram até Mugem os excursionistas do Congresso de Archeo- logia em 1880 '. E sempre o choupo a arvore que mais caracter imprime na paisagem da região. Alemtejo. — Entre a zona mais suave e graciosa e a zona mais alegre e mexida do país, estende-sc por uma enorme planicie a mais triste e menos bemfadada de todas, o Alemtejo. Não falo das cidades, nem de algumas villas, poucas na realidade, em que a vida é farta e larga. Falo do geral da província e sobretudo das enormes extensões em que só se encontram azinhos, sobros e algumas oliveiras, as estevas de flores tristes e timidas, trigo e > Loc. cit. Nesta transcrição tenho em vista apenas a nota da paisagem portuguesa ahi contida, independentemente da analogia de caracter achado por Martins com a paisagem do Nilo, que para mim é absolutamente incom- prehensivel. Os que lá foram é que poderão julgar e dizer de sua justiça. 2 Cotteau, loc, cit. o soloy O clima e a paisagem 6i calor africano no verão, enormes enxurradas e, por vezes, neve no inverno, e uma população dispersa, rala. Toda a parte baixa do Alemtejo, emfim. E, como insignificante seja a parte monta- nhosa da provincia', apenas um pequeno canto no seu extremo norte junto da fronteira espanhola e a linha meridional de serras que, de nascente a poente, a separam do Algarve, pode dizer-se ARREDORES DE SANTARÉM — ESTRADA DE ALMEIRIM que a monotonia da planura álemtejana domina em toda a nossa terceira zona esthetica. Évora e Beja são cidades dignas da visita dos que se occupam de cousas de arte e archeologia, a primeira principalmente. A grande cultura vae invadindo a provincia, de norte a sul; a população cresce, lentamente; os meios de transporte e as condições de vida vão melhorando. Mas, em virtude da sua grande extensão e da natureza do seu solo, por vezes apparentemente árido, essa provincia, que necessariamente se ha de converter num celleiro collossal, está por emquanto muito longe da situação a que deve aspirar. E comtudo o Alemtejo tem um aspecto, uma feição esthetica muito sua e muito interessante que, por uma extrema simplicidade de linhas, escapa á grande maioria. Artistas notáveis demons- traram a sua existência, indo ahi buscar o thema de commoção 62 o pais português para as suas obras: D. João da Gamara e Fialho de Almeida, entre outros. D'essa terra, apparentemente ingrata c cruel, nasce como em qualquer outra o symbolo artístico; ella tem o seu folklore regional, não raras vezes penetrado de sentimento doce, posto que melancólico. Mas, até agora, só sei de almas habituadas á dor que se sin- tam bem dentro da suggestão esthetica ahi possível. As almas ale- gres nada teem que ver em taes sítios. Faltam-lhes as cores, a gente, o bulício, sons, vivaci- dade, alegria emfim. D. João da Gamara conhe- ceu muito profundamente a terra alemtejana e a sua vida própria. São exemplo d'isso a sua comedia Os Velhos e o dra- ma, ou melhor a estranha tra- gedia A Triste Viuvinha, Elle até na charneca deserta se sen- tia muito bem: NO ALTO DA SERRA DE S. PAULO Sahi de manhã, e o dia todo deixei-me andar perdido por montes e valles, a beber o sol, a ouvir as abelhas, a ver o vôo das pegas entre as urzes e o ros- maninho, o alecrim e as murtas, e toda aquella verdura, ainda mais alegrada, de espaço a espaço, pelos medronheiros em moita. Mas a Semana Santa fora cedo n'aquelle anno, e rainhas da charneca eram então as estevas, todas em flor ainda. As herdades pareciam um grande mar branco e verde, que um sopro perfumado fazia mover docemente. Nos sobreiros cantavam os irigueirões, repelindo sempre a mesma can- tiga, e uma poupa trinava nas suas duas notas, que se ouvem de tão longe. Ás vezes as pegas cortavam-me adeante o caminho, e dois corvos, lá muito alto, passavam crocitando, de viagem. E nem uma voz humana, nem um signal de homem n'aquella charneca immensa ! Já vinha anoitecendo e eu era longe de casa. Demorei-me a ver desappa- recer o sol detraz da serra que divide as aguas do Mira e do Sado. Aquietavam -se os rumores da charneca. Passaram uns sopros mais frios e as folhas das arvores estremeceram. Um algarvão passou cantando, e dois noitibós puzeram-se na minha frente a saltitar pelo caminho, dando voos curtos quando eu me approximava. o solo, o clima e a paisagem 53 N'uma clareira do azinhal o rosmaninho crescia mais denso. Já sobre elle as abelhas haviam deixado de zumbir e, á bocca da noite, com o sereno que o humedecia, embalsamava o ar mais intensamente. Fugira o sol. As papoulas das estevas começaram a enrolar-se. Já luziam muito brancas, muito frias, no céo, as primeiras estrellas. Um rouxinol poz-se a cantar para os lados do rio. Mas o rouxinol da charneca não canta como o dos salgueiraes do Tejo c do Mondego; é mais triste, menos variado o seu canto '. NO ALEMTEJO Nessas duas peças que citei encontram-se por vezes trechos de um symbolismo profundo. Assim, passando-se ambas ellas em terras de trigo, o moinho converte-se no leitmoiiv de que todos os outros themas são como que mero desenvolvimento. Nas situa- ções alegres — aque cousas bonitas dizem as camarinhas!» Na situação tragicamente dolorosa da Triste Viuvinha, ella ouve — «Aquelle moinho a uivar, que tristeza!» Fialho de Almeida, nas paginas que conheço, dá-nos do Alem- tejo aspectos de grande aspereza, trágicos. Quer no Idfllio triste ^ de que transcrevo em seguida a descrição da região mon- tanhosa da provincia, mas sobretudo nos Ceifeiros ^, pagina notá- vel pela nota de ansiedade crescente que se apossa dos pobres trabalhadores do campo, no tempo da ceifa dos trigos, sob um > Estes excerptos pertencem todos á Pátria Portuguesa, 1906. 2 In O Pais das Uvas. 3 In i4 Esquina. ^A O pais português calor de enlouquecer, torturante, asphyxiante, sente-se a alma do artista revoltada contra um espectáculo cruel, que communica á sua commoção esthetica uma acuidade e vibração excepcionaes. Descortinado das cristas, o panorama era grave, concentrado, aus- tero de rythmo. Uma natureza carnuda, pouco fecunda, brutal de perfil, mos- trava as mamellas viris, n'este vasto socego de virgindade dormente que nenhum desejo espicaçava ainda. De roda, valles cobertos de tojo, piorneiras, scillas e troviscos, sem caminhos, sem pássaros, sem florações : collinas ásperas fazendo uma espécie de galope d'ondas, por quarenta léguas de raio, té aos limites do céO; e lá longe, marcando os quartéis generaes das herdades, cazalitos brancos com medas de palha á bocca das arribanas grandes e agudas como obeliscos — lá longe, entre azinheiras nodosas, que tinham o ar de monumentos fúnebres, contemporâneos dos dolmens. Grandes sobreiras estacavam por toda a banda, com physionomias lúgubres, contorcendo as pernadas n'uma musculatura furiosa e vermelha. A baixo d'es- tes sinistros colossos, não tinha exuberancias nem mimos a primavera. Húmidas penumbras estagnavam á flor da terra : reles camilhas de musgos, fulvas, verde - negras, côr de sangue pisado, cobriam o chão tortuoso, por cujos rasgões rom- pia a ossatura das rochas, com esqualidezes de hombros furando os andrajos d' um pedinte. Em face, nenhuma nesga de horisonte sequer adivinhada por entre dois cabeços mais brancos. Estevaes por toda a parte, urze pouca. . . só os medronheiros protestavam cem o seu verde vivo, contra as sombrias gam- mas do matagal. E um silencio 1 Por ali não voavam cotovias. Algum passarito do matto, d 'estes trepadores cinzentos, ágeis, pequeninos, que esvoaçam em espiral nos troncos dos carrascos, receosos da própria palpitação das suas azas, ou o cacarejar traiçoeiro das viboras, cujos sobresaltos guardam o frenesi ma- cabro de pequenos espíritos malfazejos da charneca. Entretanto o conto termina por uma verdadeira paisagem de alta e calma belleza: Era em começos de junho. No céo nem a mais leve sombra : profundezas de anil palpitavam n'uma suavidade bonançosa : o sol ia subindo, e apenas o griffo, d'azas abertas, quazi immovel no azul, dir-se-hia uma grande traça roendo o manto de Nossa Senhora. Ainda alguns bois colhiam a dente, com mimo, as herbagens razas do solo. Eu vivi muito tempo na parte mais inclemente e inhospita do baixo Alemtejo. Mas ainda ahi vi que o homem tem sempre meio de lutar contra a má sorte. Quem canta, seus males espanta. O povo tem razão quando assim diz. Num dos meus passeios pela charneca tive, uma vez, ensejo de ouvir a deliciosa canção o solo, o clima e a paisagem 55 que abaixo transcrevo e que parecia erguer-se das entranhas d'aquella terra infeliz, na mais intima identificação com a natu- reza, e como que fazendo corpo commum com ella. Julgando que essa era a nota mais sinceramente reveladora da tristeza da região e dos seus habitantes, procurei defini-la no modesto conto, que sou forçado a citar para exemplificação da minha theoria, e pode intitular-se — A alma da charneca. O calor era atroz. Partimos por volta da uma hora da tarde ; assim o exigia o serviço. Os cavallos caminhavam resignadamente, meio entorpecidos ou con- gestionados pelo sol implacável. Ao longo do caminho uma immobilidade e silencio profundos, só quebrados de onde a onde pelo crepitar dos ramos de esteva^ como de lenha mettida ao forno. Aves, cães, homens, todos evitam o sol áquella hora ; os próprios insectos parecem reservá-la para a sua sesta diurna. Sempre a passo e através de uma região monótona, onde não ha fontes, nem pedras, nem cal, nem gente ; onde o solo rijo, argiloso, deixa passar as aguas das chuvas sem as reter, em enxurradas collossaes que devastam c não fecun- dam ; onde faltam portanto as alegrias descuidadas e communicativas das ter- ras minhotas, de onde eu ia, e o imprevisto constante do generoso solo granítico. Apenas de quando em quando algumas azinheiras fundindo-se na monotonia envolvente. E eu ia pensando que nem sempre aquella terra assim fora, erma, pobre e melancólica. Contam que em tempos passados havia sido rica e alegre ; que a agricultura prosperava ahi, graças aos trabalhos da mourama. Vieram depois as guerras ; e os mouros abalaram com o seu saber e os seus segredos de fazer cousas. Hoje^ a charneca parece absorta^ ou esquecida das alegrias festivas d 'es- ses tempos. Como corpo sem alma. De repente, muito ao longe, por trás de um casal, de um monte, como lá dizem, ergueu-se uma melopeia lenta e suave, verdadeira canção de steppe, de um desenho levem ante ondulado e de uma harmonia como que horizontal. í fj'nii:?rv,., , , ij j 1 túc^^ia, — ^^-^eact.^ Í0UUMA. -^^ ^CU.^4Ío l As ultimas notas, num esbatimento prolongado e doce, perderam se quando descíamos para o leito seco da ribeira. Do lado fronteiro prolongava-se o este- val. Mas esse canto gerado em sítios de desolação acompanhou-nos ainda por 5 66 O pais português largo tempo. A alma da charneca, alma de moura encantada, infiltrava-nos, em seducções de arte^ toda a sua tristeza e saudade das alegrias perdidas. Algarve. — A viagem ao Algarve, que consiitue a 4.* zona do nosso sysiema, eftectua-se hoje de duas formas: a marítima, pelos vapores da carreira de cabotagem entre Lisboa e os portos d'essa provincia extrema; a terrestre, pelo caminho de ferro. o GUADIANA EM MERTOLA O Guadiana. — Antes de construido o caminho de ferro pro- priamente do Algarve, o viajante ia só até Beja, no troço alemte- jano; ahi tomava a estrada ordinária até Mertola, assente em amphitheatro, na margem direita do Guadiana, e descia o rio em pequenos vapores, de Pomarão até á Foz. Oliveira Martins, no livro que tenho citado, fala d'essa viagem em termos de quem ainda conserva vivo o horror da impressão recebida. Para elle, na chegada a Villa Real, experimentava-se a sensação «de quem entra de um sertão em um jardim ; de quem deixa uma escura gruta por uma luminosa planicie». Ao silencio e impassibilidade o solo, o d ima e a paisagem g/-^ alemtejana, succede o constante movimento, a fala, o cantar de uma população como os gregos das ilhas (sic). Para Bulhão Pato, caçador romântico que nunca teve medo nem a chuvas, nem a sol, nem a terreno de cabras, a viagem no pino do verão foi uma delicia que terminou por uma caçada e por uma pescaria no Pulo do lobo^ queda de agua e limite extremo da navegação do Guadiana. Elle descreve-nos todos esses sitios sob a persistente e enthusiastica commoção de uma alma de artista num corpo tão habituado a bons como a maus tratos ', e que não pensa em assustar-se com elles. A viagem por caminho de ferro, ainda que se passasse de dia, nada teria de interessante. Planuras sem incidentes desde Pinhal Novo até Beja, o mesmo de Beja até Garvão. O mesmo solo in- caracterrsco na subida da montanha divisória das aguas do Sado e do Mira até ao Valdisca, que se atravessa em tunnel. E a des- cida até Santa Clara de Sabóia, na vertente sul, nem por isso é mais pittoresca. São os cerros que nos descreveu Fialho de Al- meida. A partir do valle do Mira nova subida, a da Serra do Caldei- rão por S. Marcos até á Portella dos Termos, de onde definiti- vamente se desce para o mar. Em Tunes bifurcação : para poente, por Silves até Portimão e, brevemente, até Lagos; para sul até Faro e, logo para nascente, por Faro, Olhão e Tavira, até Villa Real de Santo António, na raia fronteiriça e foz do Guadiana. Nesta ultima forma, o tourisie raro poderá experimentar a sensação de contraste que tanto commoveu Oliveira Martins á passagem de uma provincia para outra, no extremo leste do país. Monchique. — Mas tem-na, e muito maior até, se quiser lançar mão dos velhos processos de viajar por montes e valles. Quem de Odemira, encantador oásis á beira do rio Mira e a meio cami- nho entre o mar e Santa Clara de Sabóia, ou ainda doesta ultima povoação, se metter á terrível serra da Mesquita e, a cavallo, bem entendido, que não ha outra forma de o fazer, subir em di- recção á Foya, cujo solo é o mais português que existe, chega ao alto da serra e experimenta uma das mais extraordinárias e com- plexas sensações estheticas que podem imaginar-se. Da cumiada I Paisagens, 1871. 68 O pais português granítica de Foya, e de Monchique, que lhe fica logo por baixo, á sombra de um extenso bosque de castanheiros, olhando para sul, lá do alto de quasi mil metros, abraçará toda a região, cor- tada de infinitos pormenores de paisagem, que em leque se inclina docemente para o mar num raio de vinte kilometros, e compre- hende Portimão, Lagos e outras terras ainda. O panorama mara- vilhoso apparece-lhe delineado com a nitidez dos climas africanos. E elle dirá, com Martins e outros, que toda a natureza canta, mer- gulhada numa luz de apotheose, que parece cantar, também ella. MONCHIQUE Toda a região da serra se presta ao estudo do paisagista, sendo que, ás vezes, o faz desanimar pelos excessos da vegetação, como no valle dos Pisões succede. Esses excessos dão-se tanto na quan- tidade das plantas como na dureza dos tons, provenientes de um solo fecundissffno e de um clima muito ardente. Além d'isso, após os granitos encravados em carbónicos do alto da Serra de Monchique, de um e de outro lado da baixa onde assenta a linha férrea, valle que separa aquella serra da do Cal- deirão, diversas faixas de calcareo vêem tornar ainda mais rica e variada a vegetação da provincia. E, finalmente, como graças ao seu clima, as arvores das zonas quentes ali possam viver ao ar livre, ao castanheiro, oliveira e amendoeira, ás varias espécies das zonas temperadas, aos massiços de figueiras e alfarrobeiras dominantes na região de menor altitude, vem ajuntar-se a pal- meira do esparto, para mais característico tornar ainda o fácies especialíssimo da paisagem local. o solo, o clima e a paisagem 69 Conheço poucas can- ções algarvias e nenhuma d'essas é notável pelo de- senho melódico e muito menos pela profundeza da commoção que encerra. São canções alegres, viva- mente rythmadas, por ve- zes irónicas ou de um impudor brutalmente rea- lista. Tudo porem me EM LOULÉ leva a crer que esse país, de gente muito mexida e cantadeira, onde tudo canta e ri espontaneamente, não precisa de canções mais dramáticas do que TrAnnica, ti'Annica, Ti'Annica de Loulé, A quem deixaria ella A barra do cachiné ? Gente feliz, não ha duvida. É para notar que o Al- garve não seja para nós um centro de attracção, que não o visitemos como deviamos, não o aproveitemos no sentido do clima excepcionalmente re- gular e seco do seus invernos encantadores, das excellentes condições de alguns dos seus portos — Lagos, por exemplo; fínalmente, da sua paisagem, que só agora começa a ser explorada pelos artistas pin- tores. Nas duas serras que a limitam a norte, essa pro- víncia oíferece largo campo de estudo e observação pic- tural. A LUZ NO ALGARVE 70 O pais português Mas consignando o facto e em virtude d'elle mesmo, é que também lamento o pouco conhecimento que os nossos escritores tiveram d'essa terra, para nos poderem dizer o que ella lhes fez sentir. Sobretudo o que eu desejo obter é a impressão do escritor que não nasceu ahi e que, vindo de fora da provincia, está por isso mesmo disposto para receber impressões muito mais intensas do que as gentes da terra, indifferen- tes ao que vêem todos os dias. Conta-se que Flau- bert, esse grande artista tão sensivel á forma, ten- do nascido e vivido em Rouen, a maravilhosa ci- dade gothica, só muito tarde, e por a isso o leva- rem, é que começou a per- ceber o valor dos excepcio- naes thesouros de arte ahi accumulados. Para os da terra, as obras de arte passam des- percebidas, a commoção esthetica não chega a pro- duzir-se. Por isso recor- ro novamente a Bulhão Pato, que assim nos descreve Uma alvorada no Algarve: As estrellas no Algarve parecem maiores do que nas outras províncias de Portugal. O azul do firmamento é, como o do mar Mediterrâneo e do ceo da Itália, quasi azul ferrete. Fim de agosto. Aragem branda e tépida. As figueiras nodosas, de folhas verde-negras, avergam os ramos para o chão aplanado pela mão solicita do la- vrador, ramos carregados de figo pincre, quer dizer, propicio para se apanhar e dispol-o nos almanchares — esteiras onde se passam os frutos. A abundância e variedade dos figos é enorme; todos deliciosos no aroma e no sabor. As felosas, verde-oiro, atravessaram o mar acudindo ás agudes — formigas grandes com azas — e aos figos. Assim que assomam os primeiros alvores no horisonte, revoam aos milhares pelos braços do figueiral. MONCHIQUE — o PARAÍSO o soloy O clima e a paisagem n j A gula sae-lhes cara, que os rapazitos já lhes teem armado as esparrellas onde caem aos centos. Quando o sol descobre, os pequenos lá vão n*um vozear triumphal, devo- rando figos e celebrando a victoria. E a vida descuidada e alegre, em plena natureza, sem a me- nor preoccupação dolorosa, na absoluta confiança paradisiaca ! E terminando aqui a minha longa jornada, embora mais tarde deva referir-me ás especiaes condições climatéricas da provincia, principalmente das suas praias, e olhando para trás, para o caminho percorrido que me apparece docemente illuminado neste entardecer em que escrevo, lembro-me das palavras com que Eça de Queiroz fecha A Illustre Casa de Ramires: «E Padre Sueiro... recolheu á Torre vagarosamente, no si- lencio e doçura da tarde, rezando as suas Ave-Marias, e pedindo a paz de Deus para todos os homens, para campos e casaes ador- mecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras». António Arroyo. o POVO PORTUGUÊS ESDE O velho chronista, para quem o povo português era, «de seu natural, terno e amavioso», até Eça de Quei- roz, que na Ulustre Casa de Ramires formulou, quanto a mim, a expressão perfeita da mais elevada porção da gens portuguesa, muitos escritores teem procurado definir-lhe a Índole e todos os portugueses teem, a tal respeito, emittido opiniões decisivas. Como, porem, nenhum homem illustre resista á critica do seu criado de quarto e como, vistos de perto, todos os seres humanos nos surprehendam mais pelos defeitos que teem e nos incommo- dam, do que pelas suas qualidades superiores, muitas vezes inca- pazes de nos impressionarem immediatamente, certo é que, na maioria dos casos, essas apreciações reflectem apenas a resultante do sentimento pessoal do escritor e das acções sobre elle exerci- das pelo meio, e raro a impressão de um juizo critico assente em dados scientificamente determinados. Ferraz de Macedo (1845-1907) ', procurando definir o ///?o normal português que pudesse servir de base á remodelação da nossa legislação criminal, produziu um trabalho de synthese so- > Bosquejos de Anthropologia criminal , 1900. HA O povo português bremaneira precipitado, generalizou sobre bases que não compor- tavam uma tal extensão e deixou de ver factos que, em parte, inutilizavam a sua obra. Elle julga demonstrável a opinião de estar o português em período regressivo. E assenta esta affirma- tiva na alteração que, em virtude de cruzamentos effectuados em cinco séculos de communicações maritimas, sofFreu a physiologia correcta do povo que combatia e vencia os romanos e que levava a cabo as viagens e gloriosas façanhas do século xv. Em seu entender, a valentia, sobriedade e energia dos primitivos portugueses achar-se-hiam hoje enfra- quecidas pela mistura com outras raças. Para Ferraz de Macedo o portu- guês é dotado de uma genesia vio- lenta e proliferante, acompanhada de solicitações alcoólicas accidentaes (síc), que lhe esgotam os órgãos visceraes, thoracicos, medullares e encephalicos; o português gosta pronunciadamente de anecdotas de fundo erótico; é muito intelligente, mas tem pouca iniciativa individual, tenacidade e persistên- cia; instável na observação e pesquisa como na opinião for- mulada, mas imitador primoroso; é um impulsivo bom, fatalista e resignado com a pobreza, incauto e imprevi- dente, aggressivo na controvérsia (por ignorante), brioso, franco e leal, poucas vezes poltrão ou traiçoeiro; amante das suas tradições gloriosas, dotado de patriotismo vibrante, que muitos confundem com a jactância dos soberbos e dos altaneiros desva- necidos. Esta synthese, em parte applicavel a todo o povo português, afigura-se-me também em parte influenciada pelo modo de ser de certas camadas inferiores da agglomeração lisbonense, aliás pouco numerosas. Devemos lembrar-nos que Ferraz de Macedo foi um perseguido, que a imprensa o contrariou nos seus trabalhos anthro- pometricos, que até quis impedi-los, factos estes que o predis- poriam contra o meio em que viveu. D'ahi viria o exagero na generalização de certos modos de ser inferiores, lançando-os á conta do país inteiro. o CANJIRÃO DE CHAVES o povo português n 5 Eu vejo o povo português como tendo estacionado e não como tendo regressado; elle apparece-me hoje como o fora nas duas épocas gloriosas citadas por Ferraz de Macedo. Após as ultimas campanhas de Africa, quando perguntava aos officiaes como se conduzira o nosso soldado, elles respondiam-me sem discordância: caqui na mão, sempre fiel, dócil e caminhando para a frente». Devo dizer comtudo que a confiança nos chefes, que taes factos denunciam no soldado português, tem a sua razão de existência na forma por que o nosso official, contrariamente ao que noutras nações acontece, se conduz em campanha. Desde que se entra no sertão, a vida das tropas é uma só para chefes e praças de pret; um só o rancho e, quando se chega a uma nas- cente de agua, máxima consolação nos climas tropicaes, bebe-se por ordem hierarchica, mas de baixo para cima. Factos idênticos se deram com a Légion portugaise que, de 1807 a 181 3, fez parte dos exércitos de Napoleão e se bateu na Allemanha e na Rússia. Mr. P. Boppe ', lançando mão apenas de documentos autênticos e officiaes existentes em França, demonstra que os nossos se houveram como verdadeiras tropas rfV/i/e, com valentia e coragem brilhantes. Assim succedeu em Wagram e Smolensko, onde os batalhões portugueses se cobriram de gloria. Na funesta e inevitável retirada da Rússia, os nossos soldados e officiaes souberam morrer como as melhores tropas francesas. E a indisciplina que então se obser\'ara entre os solda- dos portugueses, em tempo de guarnição que nunca em campanha, só deve ser attribuida á bondade e fraqueza de certos chefes ; quando estes se chamavam Gomes Freire, Sarmento e Cândido Xavier, e ainda Pacheco, o alferes assassinado por um miserável que todavia soube morrer com coragem, a disciplina era completa. Alem de que nunca o bom humor desamparou os nossos conterrâneos, nunca a guitarra e a canção portuguesa deixaram de se ouvir nos intervallos tranquillos d'esses agitados seis annos. Na IntroducçSo geographica^ ao volume i doeste livro, o Dr. Silva Telles, quando trata dos Movimentos da população portu- guesa, affirma o seguinte : «É importante a nossa natalidade media. Encontramo-nos porem a meia escala no ponto de vista da mor- Légion portugaise (1807-181 3), par le commandant P. Boppe, 1897. 76 O povo português talidade e a nossa emigração masculina é considerável. Pois, apesar doestas razões, a percentagem de crescimento é superior á das principaes nações latinas. Se analysassemos a mortalidade por idades, a conclusão a que chegaríamos sería a confirmação do que temos dito. A população portuguesa é vigorosa, mas fal- tam-lhe neste momento institui- ções sociaes que favoreçam o seu a^escimentoit . O próprio gosto pelas anec- dotas eróticas que aponta Ferraz ^ ^^^C^^^ .^ÊÊÊ ^^ Macedo não denuncia o esta- ^r^ ^P^^^l^ ^^^B <^ionamento da vida portuguesa ■ ^L^^ ^tj^ ^B^ ^^ pleno século xvi, quando B^^Bpl ^iH^Hfit ainda em França eram moda na l^^^B ^^^^^K^^ corte da rainha de Navarra, como ^^^^H ^^^^^^^Kí^ na Florença do século xv e de y- ^^A .^k^^^^^^&^A Boccacio o haviam sido tam- bém ? . . . E este estacionamento parece concordar ainda com uma outra face do caracter português, que se encontra em Ferraz de Macedo e que causas históricas expli- carão. O povo português, segundo o nosso anthropologista, não tem typo physionomico, nem dyna- mico determinado; cada indivi- duo é uma singularidade; costu- mes, hábitos, aspirações, Índoles, vicios, virtudes, são variadíssi- mas nas coUectividades e teem múltiplas origens ethnicas (sic). Não deverá comtudo entre nós attribuir-se esse estado, que de resto é commum a todos os povos civilizados como o próprio Macedo reconhece, de preferencia á crise de 1 580-1640, ao dominio absorvente durante três séculos da inquisição, do jesui- tismo e de todas as outras milicias catholicas, que nos impe- diram de progredir, e finalmente á anarchia romântica que, DA SERRA DA ESTRELLA o povo português 77 desde i834, nos invadiu e não se preoccupou com a educação civica do nosso povo ? . . . A falta de imaginativa constructiva, usando da formula de José Sampaio (Bruno) num dos seus livros, não se resumirá em grande parte na falta de educação, a originalidade correspondendo a um novo ou maior agrupamento de factos ou elementos? Ou terá de ser attribuida a simplicidade e pureza ethnologica, que, contra a opinião de Macedo, parece hoje acceite por todos sem discre- pância, á elevada percentagem de dolicocephalia na nação portuguesa, gente poética e musical, mas não criadora de organismos e symbolos plásticos, como alguns querem? Facto é que a nossa simpleza in- lellectual vae desde o criado de ser- vir que executa bem uma primeira ordem e mal uma segunda, quando ambas lhe forem dadas ao mesmo tempo, até ás pessoas que se teem por cultas, mas a quem repugnam os aspectos complexos e só pedem narrações curtas, em poucas pala- vras, feitas de uma maneira suc- cinta, schematica, com prejuizo dos factos e da sua relacionação com outros, a que muitas vezes os prendem as mais intimas affinidades. Para explicar os factos de ordem criminal Ferraz de Macedo recorre a influencias mesologicas — excesso de tolerância, invoca- das pelos tratadistas especiaes, neste momento também. POTE Dl VILLAR DE NANTES (CHAVES) O Sr. Dr. Alfredo Luis Lopes, no seu Estudo estatístico da criminalidade em Portugal nos annos de i8gi a i8g5 ', nota que, parallelamente ao que succede em quasi todos os outros paises, se deu entre nós no referido periodo uma notável diminuição dos grandes crimes, e um também notável aumento de crimes > Lisboa, 1897 n^ O povo português menores, com um abaixamento sensível da idade dos criminosos. Evidentemente estes resultados carecem de ser verificados e con- firmados para grupos de annos posteriores e isso tanto mais quanto devemos reflectir em que esse periodo de 1891 a iSgS cor- responde a uma época agitadíssima entre nós, a uma dupla crise económica e social. Entretanto d'ahi devemos também concluir pelo aggravamento, tornado mais sensível numa tal época, da nossa falta de instituições educativas destinadas propriamente ao povo. A estatística comparada dá a Portugal a seguinte situação na escala do crime de homicídio, considerado dentro do periodo de um anno e em relação a cada 100:000 habitantes ': Segundo uns, o homicídio nos Estados Unidos da America, está para a Espanha, Itália, Áustria e França, nas relações de 2, 4, 5 e 9 respectivamente, e de 20 para a Inglaterra, Escócia e Allemanha. Neste caso, a Portugal corresponderia a relação de 7, entre a Áustria e a França ; isto é, nós teríamos uma percentagem sete vezes menor do que os Estados Unidos. Segundo outros, por anno e por cada 100:000 habitantes, cor- respondiam : 8,o5 crimes de homicídio na Itália ; 4,5 em Espanha ; 2,16 na Áustria; 1,9 na Bélgica; 1,46 na França; 0,9 na Irlanda; o,85 na Allemanha; 0,61 na Escócia; 0,4 na Inglaterra. Neste caso Portugal estaria entre a Espanha e a Áustria. É para notar a opinião que, acerca do nosso povo, formula um diplomata allemão que, em 1843, isto é, numa das épocas mais agitadas da Europa central no século passado, visitou Por- tugal em missão de estudo artístico; refiro-me ao conhecido Conde de Raczynski ^. «Geralmente falando, eu não receio dizer que o país é pouco conhecido. . . Byron, no seu Childe Harold, chama aos portugueses «os últimos dos últimos». Os próprios homens de Estado em Portugal deploram com lagrimas nos olhos a des- moralização do povo. . . Quanto a mim, direi que, tendo estudado os portugueses, os considero um povo intellígente, laborioso, mo- derado, de caracter bom, doce e alegre. São fáceis de governar; 1 Estes dados encontram-se no referido Estudo do Dr. Lopes e no relatório que precede as propostas de fazenda do Conselheiro Ressano Garcia, em 1897. 2 Les Arts en Portugal, 28e lettre. o povo português ^q amantes da religião apesar dos muitos padres que teem; amantes do throno apesar de tantos ministros que se succederam em tão pouco tempo, etc». Esta opinião e os dados estatisticos que a precedem confir- mam, na sua summula, as affirmações que anteriormente temos exposto e que nos levam á conclusão final de que ás classes diri- gentes, ás que deviam dar o exemplo que o povo, sempre imi- tador, seria levado a imitar, é que deve ser attribuido o estado de atraso das nossas massas populares. Com bons chefes, dirigido pelos grandes caracteres da nossa historia, o povo português foi sempre grande. De mais, nos movimentos de maior effer- vescencia politica, o nosso povo apparece-nos penetrado de um sentimento de justiça e de uma moderação dignos de serem admirados. Basta recordar como se effectuou a transição da d\ - nastia afonsina para a joanina e o movimento de 1640; como decorreu a época das guerras libe- raes e das suas consequências mais próximas. a bilha de thomar O civismo do povo português tem-se ultima- mente affirmado com mais intensidade, por exemplo, na recepção dos vários congressos, já no de archeologia em 1880 e recente- mente no de medicina e no telegrapho-postal ; por toda a parte os sábios estrangeiros são acolhidos com singular deferência e attenções de todo o género. Mas acima de todas essas, devemos citar a recepção feita em igoS a Mr. Loubet, presidente da Republica Francesa. «Toda Lisboa estava na rua, diz um visi- tante estrangeiro, e não exagero avaliando a multidão em mais de 400:000 pessoas, das quaes 100:000 das provincias. Todos manifestaram o seu enthusiasmo, mas em attitude digna, sem atropelamentos, sem grosseria» '. Note-se que esta impressão contrasta de um modo notável com a que o mesmo autor havia recebido em Madrid, dias antes. E, apesar d'isso, já muito poucos em Portugal a conservam na memoria. í Jean Bernard, La vie de Paris, igoS. 8o O povo português Os aspectos geraes do povo, como succede em todas as nações, apresentam-se evidentemente alterados em pro- porções ao longo do país, conforme as condições naturaes das diversas regiões. Entretanto pouco é o que, nesta ordem de ideias, se pode affirmar hoje ' ] de uma forma categórica e docu- mentada. Oliveira Martins, na sua His- toria de Portugal, vol. i, quis dar-nos um quadro distributivo do caracter do povo português, definindo com precisão as suas alterações sob a influencia do solo, altitude, clima, vegetação e den- sidade da população. Fê-lo porem de uma maneira incompleta, dei- xando-se ainda influenciar pelos regionalismos, conforme lhe eram ou não sympathicos. O minhoto, para elle, é pa- ciente, laborioso, tenaz, persis- tente e ingénuo, mas obtuso, des- tituido de elevação de espirito; é um ser preso á terra, como um enxame de formigas que a sugam. O clima húmido, variável, a ve- getação rasteira, a fertilidade da terra e o vinho acido que ella pro- duz, explicam o seu caracter, iden- tificado finalmente ao dos bretões e flamengos ! O trasmontano, vivo, ágil e robusto ; espirito elevado, concor- dante com a fixidez e nobreza da paisagem local. O beirão occidental, menos vivo que o trasmontano, mas ro- busto, hercúleo, de face animal. E o representante dos antigos bandidos da região, «anachronico representante de uma indepen- dência de outra idade». O alemtejano do norte, vivendo num solo e vegetação seme- lhante ao trasmontano, tem o olhar vivo, gesto livre, porte nobre e seguro; é brioso, folgazão, hospitaleiro e communicativo. DA SKRRA DA E8TRELLA o povo português g j O alemtisjano do sul deixa-se influenciar pela paisagem so- lemne, o occidental pelas emanações pantanosas que o convertem numa população enfermiça, miserável. O algarvio, sol africano, primavera constante, é um andaluz, ou um grego do Archipelago. Vivo, falador, can- tador, um agitado constante, de uma agitação infantil, encanta- dora. Martins, que nesta classificação adoptou em parte as sentenças populares, formuladas nos apodos reveladores das hostilidades provinciaes, esqueceu-se comtudo de caracterizar outras regiões do país; não se refere a alguns t}^pos acerca dos quaes o povo formulou de ha muito a expressão synthetica, e que porventura lhe deveriam merecer especial attenção. Refiro-me em primeiro logar aos dois typos populares que mais influencia tiveram e teem na nossa vida nacional : o lisboeta, a quem o homem do Porto chama alfacinha, e o tripeiro; nem tão pouco se occupa do saloio, que é porventura o que o povo melhor caracteriza, ao brague:^, etc, etc. Ramalho Ortigão faz-nos um interessante parallelo do minhoto e do transmontano : A gente é aífavel, hospitaleira, carinhosa, e a mais pacifica do mundo. Um bacharel meu amigo, que exerceu aqui (em Vianna do Castello), durante um anno, o logar dè substituto do delegado do Ministério Publico, contou-me que no anno em que elle serviu se não fizeram audiências, porque não houve crimes na comarca. «É o povo de Vianna — diz Frei Luis de Sousa na Vida do Arcebispo — dotado de um particular zelo do bem da sua republica : e no que toca ao com- mum, ainda que uns com outros andem desavindos, logo são unidos e confor- mes : e onde sentem ser necessário sabem não perdoar diligencia^ nem traba- lho, nem despesa». A seguir, por meio de uma frase bem feita, o biographo do arcebispo dá a entender que os de Vianna são desconfiados : Acautelam-sey diz elle, sem o darem a entender, Emquanto a desconfiados, devem sel-o os viannenses, como todos os mi- nhotos. É esse o defeito característico que mais os distingue dos seus vizinhos trasmontanos. Quem bate a uma porta no Minho tem a certeza de ouvir, noventa vezes sobre cem, as seguintes perguntas : — Quem está ahif, . . quem é o senhor? quem procura ?. . . que lhe quer?, . . Quem bate a uma porta em Traz os Montes tem iguaes probabilidades de ouvir uma única resposta : — Entre quem é, O minhoto é humilde, resignado, soffredor ; por isso, timorato e precavido. O transmontano é resistente e arrebatado; por isso, é aberto 6 82 o povo português e decisivo. Cada um tem os defeitos das suas virtudes e as boas qualidades dos seus defeitos i. D. António da Costa merece também citar-se quando se refere ás povoações do Minho, e especialmente á mulher minhota. Depois de no-la descrever nas suas festas, nas feiras, nas esfolhadas, cantando ao desafio, ataviada com todas as riquezas MULHERES DB TIANKA DO CASTELLO de OS setés ouros e todo o pittoresco dos seus trajes % passa a estudá-la como utilidade. Porque, diz, «n'esta província, ao con- trario do que em toda a parte succede, a mulher é que toma verdadeiramente o logar do homem e o homem não passa de accessorioB. 1 As Farpas, vol. i. Igualmente a citação de pag. 84. 2 No ultimo fasciculo da Portugália (tomo n, fase. 4) vem publicado um largo estudo sobre As FiligrannaSy pelo Sr. Rocha Peixoto, do qual nos foi ce- dido graciosamente o croquis aqui inserto. o povo português 83 No Minho, poderá ainda o trabalho das artes e officios pertencer ao homem. Os campos pertencem á mulher. Os homens lá emigram para o Brasil, Alemtej o, Lisboa, Porto, Hespanha i ; á minhota, quasi exclusivamente, é que está incumbido o trabalho da provin- cia. . . As próprias crianças são já criadas desde a mais tenra idade para a lida que as espera... Assim é que se vae educando aquella incomparável mulher do nosso Minho. Alem de commover o espectáculo de a vermos nos campos, não commove menos o encontrarmo-la pelas estradas, duplicando a sua actividade e o seu ganho, pois que sendo já um trabalho a conducção dos carros, a transportação de instrumentos agrários, a carregação á cabeça de fardos pesadissimos, vae conjuntamente fiando ou cosendo para não perder o tempo. . . Não menos impressiona o vê-las nos mercados, todas senhoras da sua missão, activas, conversando com seriedade e acerto, como quem possue o conhecimento da vida e a experiência dos negócios. . . M^~^^\ Notemos como é que, sendo Oliveira Martins mais economista do que historiador e artista, este aspecto da vida minhota lhe pôde escapar, e sobretudo que elle não se refira ao facto da mulher minhota ser geral- mente mais robusta do que o homem da região. Quanto a mim, o exemplo que cita D. António da Costa impõe-se ao estudo de todos os que se interessam pelo futuro de Portugal. De facto, dentro da nossa socie- dade, a minhota é por emquanto a única mu- lher que conseguiu igualar-se ao homem. Num delicioso paradoxo, que em seguida transcrevo. Ramalho Ortigão symboliza-nos o estremenho das Caldas da Rainha, o habitante da nossa se- gunda zona de paisagem, em que a doçura da atmosphera e da terra parecem effectivamente influenciar a formação do caracter regional de uma maneira inilludivel, como de resto succede na região do litoral minhoto. Adeante veremos a confirmação pela estatistica. POTE DAS CALDAS DA RAINHA I É nos districtos de Braga e Vianna do Castello que a relação do numero de mulheres para o dos homens é maior, 121,1 no primeiro, 128,4 1^0 segundo distrícto. 84 O povo português Detalhe que seria iníquo omittír: na cadeia das Caldas ha apenas dois presos. Aí!irmam-me que são sempre os mesmos: dois honestos e assíduos funccionarios, devidamente gratificados para fingir de criminosos e se conser- varem ás grades do cárcere, com o fim de fazer ver aos povos que os ferros de El-Rei se não fizeram para as moscas, e que — ainda ha juizes. . . nas Cal- das. Quando algum doestes cavalheiros pede licença para se ausentar por alguns dias da masmorra, deixa um amigo incumbido de o substituir no seu cargo. Se não se tomassem tão serias e rigorosas medidas, a cadeia passaria, segundo todas as probabilidades, pelo desgosto de ficar deshabitada, tal é a pertinaz velhacaria com que os scelerados aqui se recusam á obsequiosa perpetração de qualquer espécie de crime ! CAMPINOS DO RIBATEJO Esta região de paisagem baixa e doce prolonga-se ainda para alem do Tejo. A população ribatejana impressiona comtudo de uma maneira sui generis o observador-artista. O fallecido archeologo de Gand, Adolf de Ceuleneer, que es- teve em Portugal por occasião da sessão lisbonense do Congresso Internacional de Anthropologia e Archeologia Prehistoricas (1880), a propósito da excursão a Mugem, refere-se * ao cortejo que I Bulletin de PAcadémie d*Archéologie de Belgique, 2èm« pariíe, xiii, An- vcrs 1882. o povo português g 5 acompanhou os excursionistas desde a ponte de Santarém até ao logar das escavações, e acerca dos cavalleiros ribatejanos com seus pampilhos na mão, á laia de lança, acrescenta: Examinando esta população robusta e tão seductoramente original de aspecto, reconhecemos que todos quantos haviam tratado o povo português de raça degenerada e abastardada o conheciam apenas por um exame superfi- cial de qualquer cidade importante, e que jamais haviam percorrido o campo português. Julgaram Portugal de leve, da mesma maneira que em tempos idos Edmond About falou da Grécia, num pamphleto tristemente celebre. Fialho de Almeida descreve-nos, numa soberba pagina, a vida d'essa bella região do Tejo em Vallada, onde o homem é, a um tempo, lavrador, pastor de grandes rebanhos e marinheiro ' : Emíim, a barca. Oh Deus, como é bonito ! e como eu gostaria de ser um barqueiro sardento, hercúleo, ruivo-oiro-poente assim descalço, espécie de girasol lacustre de alguma heróica flora acorrentada ás mythologias da infância doeste rio ! Ter uma barca assim em pão de bico, nos poios revirada como as gôndolas, chata de fundo, o almagre da vela á luz morrente, e toda a vida cantando, rio abaixo, a bailada de Ophelia, com o pampilho ribatejano, que na terra guia o touro — na a(;ua servindo de remo, haste da vida, movida sob a stria de aço do meu musculo I Leziria plena e rio pleno, agua e verdura, sal- gueiros por toda a parte — bemaventurados os que choram I — mergulhando os cabellos verdes na corrente. Lentamente, a barca vem acostando a margem do portinho. . . Toda a campina que atravessamos é na realidade uma positiva maravilha, e tem-se a turgente sensação d'um vale do Nilo, d'uma terra da promissão vascular, pondo á bocca do homem a teta da abundância, como a dizer-lhe, bebe ! De todas as partes folhas de ceara vão té aos engastes do ceu, n'um raio extensíssimo, e em marés incessantes de verdura, tendo por espuma espi- gas bemfazejas. Nas pastagens tufantes, cuja erva gorda impa chorume, mana- das de cavallos e bois correm á solta, sob as pedradas e a lança do gaúcho local, de calção azul e sapato d'espora, matacões e barrete verde ou rubro, plantado esculturalmente n'uma sella mourisca, com seu xairel de pelle de ca- bra. Tocam chocalhos, os grandes cães rabões ladram ás rezes, e o grito em ói ! dos maioraes, muito alongado, põe na charneca o quer que seja de um queixume guttural, sem pátria, monossyllabado da primeira lingua do universo. I In Gatos, n.** 27, de 4 de julho de 1891. Aproximar doesta apreciação a que transcrevemos, de O. Martins, no anterior estudo, concernente a esta mesma região ribatejana. 86 O povo português Onde a onde, casas^ raro arvoredo, a não ser na margem dos rios e das riguei- ras, e doçuras de ceu, climas benignos, monotonias de luz á flor do trigo-verde, verde. — De sorte que o verdadeiro habitante e suzerano doesta zona, não é tal- vez o homem, mas o cavallo e o boi selvagem, elle quem manda e decreta a civilização das populações que lhe interrompem o deserto, quem faz o carac- ter do homem . . . Até hoje, os únicos factos da vida social portuguesa que as estatísticas definem de uma maneira assaz precisa são os refe- rentes á distribuição do crime e da expansão migratória das varias zonas. Depois que o Banco de Portugal reuniu em si o movimento económico e finan- ceiro do país, deve elle ter esta- tísticas que nos elucidem sobre as respectivas questões. Mas essas não são do domínio pu- blico, não são conhecidas. Conforme nos ensina o citado Estudo do Dr. Alfredo Lopes, os peores dístrictos, quanto á nata- lidade dos criminosos, são nos homens: Bragança, Évora, Beja, Braga e Lisboa; nas mulheres: Bragança, Aveiro, Vílla Real, Braga e Porto. Os melhores, nos homens: Vianna, Leiria, Coimbra e Vílla Real; nas mulheres: San- tarém, Leiria, Faro e Portalegre. A distribuição do homicídio faz-se em ordem descendente na seguinte serie: Bragança, Beja, Évora, Viseu, Villa Real, Guarda. De uma maneira geral, pode dízer-se que, aparte as grandes agglomerações de Lisboa e Porto, onde naturalmente o terreno a isso se presta mais do que qualquer outro ponto do país, é nas zonas altas e ásperas que o crime violento apparece mais fre- quentemente. Nas zonas baixas e doces é elle muito mais raro. Correlativamente, nas zonas altas habita o português de raça mais DA SERRA DA ESTRELLA o povo português g^ pura e forte; nas zonas baixas o português influenciado pelas migrações de via marítima. Um dos factos estatísticos que, ha annos ainda, diziam cor- roborar a affirmação de Martins acerca do minhoto, provinha das nossas emigrações e suas proveniências provinciaes. Passava em julgado que só o minhoto é que devia emigrar, e que de facto mais emigrava, porque lhe faltavam as qualidades moraes de nobreza e distincção de caracter que tomam o homem incom- patível com certos mesteres inferiores. Que o minhoto a tudo se sujeita. E assim se explicava também o desprestigio que sobre o nome de português pesa em alguns paises estrangeiros. Entretanto, a estatística revela que, desde 1866, a emigração se foi estendendo aos distríctos de Villa Real, Aveiro, Viseu, Lis- boa, e mais recentemente aos de Coimbra, Bragança e Guarda, sem falar nos das ilhas dos Açores, onde a emigração é um facto constante desde muito tempo. Note-se que distríctos ha em que a emigração é insignificante: Castello Branco, Santarém, Porta- legre, Évora, Beja e Faro ^ O que, a meu ver, estas opiniões demonstram, entre outras cousas, e apesar da gloria que Portugal não pode deixar de íer como colonizadora do Brasil, é que as condições em que se faz essa colonização ou emigração não satisfazem ás necessidades sociaes hodiernas. Os nossos Governos teem, fatalmente, de pre- parar o colono para um estado superior das regiões aonde elle se dirige; as escolas de colonização, as de expansão commercial e mercantil devem ser organizadas neste sentido. O português é de seu natural aventureiro e confiante; emigra de qualquer forma: só, com mulher e filhos, para onde lhe indiquem as pes- soas que elle respeita. Da parte doestas está também o dever de o esclarecer e preparar para o seu novo destino. Á caracterização differencial tão definida, embora incompleta, que Oliveira Martins algo fantasiosamente via nas nossas varias províncias, devo eu ainda oppor a minha experiência de annos, em contacto com as populações de quasi todo o país, tendo de aproveitar a sua actividade productora no sentido de obter o « Ver o quadro xxxiy do relatório do Conselheiro Ressano Garcia, atrás citado. 88 o povo português maior trabalho possível, em agrupamentos que exigiam a impo- sição de uma forte disciplina, num género de producção por assim dizer sempre a mesma por toda a parte, e portanto nas melhores condições para apreciar as differenças que pudesse haver de terra para terra. Exerci a minha profissão de engenheiro civil fazendo estudos de campo e construcções em varias provincias do país: — no alto Minho e na sua região mais baixa, no Douro, na Beira Alta e na Beira Baixa, nos campos do Mondego, no baixo Alem- tejo, etc. Em todas essas terras encontrei o mesmo fundo de caracter no povo português: a docilidade, a bondade, grande poder de trabalho, alegria, resignação, lealdade e sobriedade. As diíFerenças de uma para outra região não me parece que affectassem esse fundo: eram superficiaes, ou affectavam apenas um certo numero de sentimentos muito geraes, revelando-se ainda nas maneiras exteriores. Alem d'isso, achei sempre uma grande malleabilidade de adaptação em todo o homem português, com excepção do habitante do baixo Alemtejo; o que attribuo ao ex- cessivo e prolongado isolamento em que este vive do resto do país, á minima densidade da população local, menos de dezaseis habitantes por kilometro quadrado, excepção de facto muito no- tável em toda a parte ; e finalmente á excepcional dureza da vida regional e á inferior capacidade do solo na adaptação ás varias culturas, que o torna, por isso mesmo, menos apto á colonização por gentes vindas das outras provincias. Nessas construcções e estudos em que andei, ouvi muitas ve- zes a opinião de estrangeiros, acerca do nosso trabalhador, con- firmar o que deixo dito. Elle revela porem uma inferioridade a que não vejo alludir entre nós e que carece de ser seriamente estudada e corrigida. Porque se o nosso operário é um imitador precioso, como affirma com razão Ferraz de Macedo, não devemos comtudo deixar de lhe notar uma lentidão inconsciente da qual, apesar do grande poder de trabalho que acima apontei, resulta necessariamente uma producção muito limitada em quantidade e um preço de mão de obra muito elevado. Será isto, porem, um facto incorrigível ? Penso que não, e que nos encontramos aqui em frente de um caso que rudemente exige a criação de instituições educativas, o povo português 8 O a que, em parte, allude o Dr. Silva Telles. Essa lentidão é o que mais impressiona o estrangeiro que nos visita e observa a nossa vida nacional; e é também o que mais confirma a ideia que teem do nosso atraso os que investigam as causas dos factos sociaes. Os irmãos Goncourt, tendo visitado a Itália em 1867, escre- vem no seu Diário, vol. 111, o seguinte : «A inferioridade da raça italiana que, durante tanto tempo, eu havia procurado definir, achei-a hoje : é que ella não tem ner- vos. Denuncia-se isso numa cousa bem pequena: em não ter a menor sombra de impaciência pela lentidão com que tudo aqui se faz». Tomando d'esta nota apenas o que ahi ha de aproveitável, vemos que a situação actual do nosso país relativamente aos grandes centros de producção se assemelha bastante ao que, na Itália de ha quarenta annos, se passava relativamente á França de então. Ao passo que a Itália dormia num estado de semi-inconscien- cia, a França era então a segunda nação industrial, ainda mar- chava muito á frente da civilização mundial. Era o país das grandes empresas e das grandes construcções, dos Lesseps e dos Haussman. Em Paris, dizem-me as pessoas d'esse tempo, sentia-se um movimento, um poder e exuberância de vida, uma riqueza e uma alegria incomparáveis, de que nada hoje pode dar ideia. A febre d^essas grandes empresas, o moderno espirito dos gran- des negócios e da grande industria ahi fora gerado e prosperara. Era, emfim, o aspecto inteiro da vida moderna que os Goncourt contrapunham ao antigo modo de ser persistente em Itália e que os leva a affirmar, com ingénua pedantaria, ca inferioridade da raça italiana». E, entretanto, a Itália da Renascença é hoje uma grande nação moderna. Transformou se, porque quis educar-se. E, perdendo a lentidão que tanto lhe censuraram, passou a affirmar novamente a antiga superioridade da sua raça. Porque não succederá outro tanto entre nós, que demos o o melhor do nosso sangue e do nosso esforço para essa mesma obra da Renascença ? Até nesse Alemtejo, a mais lenta das nossas províncias, não se vê desde já que a colonização trazida pela cultura extensiva 90 O povo português acarretará finalmente comsigo a riqueza, o aumento de população, as alegrias da vida e a febre na producção — a vida moderna, emfim? Nessas syntheses, que citei, das características differenciaes da alma popular portuguesa, nada se encontra relativo á sua capacidade esthetica, tanto receptiva como productora. E comtudo, quer-me parecer que se pode dividir o país em duas zonas quanto aos diver- timentos de que o povo gosta, sendo o Vouga a linha divisó- ria*, linha que, se attentamos bem, pôde Já encontrar-se, posto que algo indecisa, em manifestações de outras or- dens. Facto é que, do Vouga para o norte, o país prefere as romarias, as illuminações á maneira do Minho, de que, durante um certo tempo. Santo Thyrso foi o logar mais notável; as procissões, a meu ver, são ahi muito mais importantes do que os cyrios do sul, bastando para isso lembrar, por exemplo, os enormes andores da Trofa, cons- trucções de grande altura, todos de papeis dourados, creio, com aspecto do quer que é de oriental; e, finalmente, a repre- sentação dos autos religiosos, o do Menino Deus e outros, a que ainda hoje se assiste nas aldeias do norte, estabelece um desta- que profundo com os espectáculos habituaes da parte meridional do país. Do Vouga para o sul o primeiro divertimento popular é incon- testavelmente a corrida de touros, a qual nunca pôde aclimar-se no Porto e em Lisboa chama á praça multidões enormes ; e ainda, muito mais do que no norte, a feira popular com toda a serie de espectáculos que lhes andam annexos. UMA QUARTA DO RIBATEJO (Estylizaçáo erudita da casa Leitão & Irmáo) o povo português 91 o CANJIRÃO DE U8B0A Já procurei definir a Canção em algumas provincias do país, estabelecendo-a com caracter diíFerencial nas quatro zonas fixadas na Advertência preliminar. O nosso cancioneiro musical, não menos rico do que o poético, como irmãos gémeos que são um do outro, está, salvo casos excepcionaes, por colligir scientificamente, isto é, segundo um methodo e systema que garan- tam a autenticidade da melodia, do seu r) thmo, da sua escala e até da sua harmonia. Geral- mente a colheita é influenciada por mil causas diversas que, difficultando a audição justa, im- pedem a notação perfeita. Não devemos, com- tudo, admirar-nos de que tal succeda entre nós quando é certo que em França, não ha muito tempo ainda, o cancioneiro estava por colleccionar K Esta é a razão por que as nossas mais bellas canções são geralmente desconhecidas do publico culto e do estrangeiro. E pode dizer-se que até agora só logrou ser conhecido o romântico Fado^ de proveniência e caracter tão infe- rior, pendant meridional do talvez ainda mais romântico Noivado do Sepulcro, essa espécie de fado do norte, acompanhado a violão e não a guitarra como o do sul. O Noivado e a Canção do Marujo afigu- ram-se-me as mais dramáticas das nossas cantigas populares. A nossa canção é quasi exclusi- vamente amorosa. A canção satyrica, não muito abundante, é por vezes mais pittoresca do que profunda. A canção politica e patriótica quasi não existe na memoria do povo; entre nós, ella foi producto de um dado momento histórico e passou sem deixar vestí- gios. Não podia tão pouco ter apparecido em Portugal o canto coral ou orpheonico que suppõe um estado social homogéneo % PRATO DO SÉCULO XVII > Ed. Schuré, Histoire du lied, ou la Chanson populaire en AUemagne, Nouvelle édition, 1903. 2 Combaríeu, La musique y ses lois, son évolution, 1907. 92 o povo português e não a anarchia doce em que vivemos, numa ignorância muito accentuada da vida civica das nações mais avançadas. E agora é que principalmente nos apparece o português temo e amavioso de que mais acima falei, o português que, na frase popular, tem sempre quartos para alugar no coração, e contra cujos excessos Ferraz de Macedo clamava no deserto. Eu não conheço mais profundas expressões de amor do que as da poesia popular portuguesa. Dante inventou : Tanto gentile e tanto onesta pare La donna mia quando ella altrui saiu ta, Ch' ogni língua divien tremando muta E glí occhi non ardíscon di guardare. Mas esta ideia do temor que impede de levantar os olhos para a mulher amada, definiu-a com a máxima intensidade o nosso povo: Quando te encontro na rua, Baixo os olhos num momento : Olho pr'á terra que pisas, E com isso me contento ». Alongaria extraordinariamente este trabalho se quisesse citar casos admiráveis de fantasia popular portuguesa, como estes por exemplo : Aqui tens meu coração, Se o quiseres matar podes. Olha que estás dentro d*elle E, se o matas, também morres. Quando eu era pequenino E que minha mãe me embalava, PVa me calar me dizia Que para ti me criava. Mandei fazer um relógio Das pernas de um caranguejo, Para contar os minutos Do tempo que te não vejo. PRATO DO 8FCUL0 XVII i Pedro Fernandes Thomás, Canções Populares da Beira, com uma intro- ducção por J. Leite de Vasconcellos, Figueira 1896. o povo português 93 De um extremo ao outro do país, a poesia amorosa parece brotar da terra, como o seu producto mais geral e mais variado em expressão. As canções religiosas, bemditos, ladainhas, etc, são por vezes interessantes, de um sentimento ingénuo e festivo, de uma luz muito pura, em nada parecido com o do povo nosso irmão, em que a musica chega a attingir expressões quasi tremendas. A poesia eleva-se, em alguns casos, ao mais profundo sym- bolismo: No ventre da Virgem Santa Encarnou divina graça ; Entrou e saiu por ella Como o sol pela vidraça. A imaginação poética do nosso povo tem uma vitali- dade rara que se estende a todos os nossos poetas cultos ; todos elles produzem bellas series de versos, absoluta- mente com o mesmo sabor e poder da nobre fantasia do nosso folklore, faculdade esta que, sem ter a importân- cia que attingiria no dominio musical, é todavia digna de citar-se como feição nacionalista de ordem superior. Tinta vermelha e doirada Com que Deus fez dMmproviso Ha séculos a alvorada E ha meses o teu sorriso. Guerra Junqueiro, Caria á minha Ji lha. o POTE DE COIMBRA Quem dá ais, ó rouxinol, Lá para as bandas do mar? . É o meu amor que na cova Leva as noites a chorar ! . . . Ó meu amor, dorme, dorme Na areia fina do mar Que em antes da estrella d*alva Comtigo me irei deitar ! . . . Guerra Junqueiro, nos Simples. 94 O povo português Ouvi atrás de um vallado Uma grila a rir, a rir ; Andava um grilo enxofrado Com outro grilo a discutir. D. João da Gamara. Ha bons dez annos uns estudantes em Coimbra, hoje todos elles poetas consagrados, achavam-se reunidos, e resolveram im- provizar quadras. Eis algumas d'ellas: Amas a Nosso Senhor Que morreu por toda a gente, E a mim não me tens amor Que morro por ti somente. Com amores m^amofino, Tenho um amor cada mês : É este o triste destino De um coração português. Marias da minha aldeia, Todas vós sabeis urdir De um certo linho uma teia Onde todos vão cair 1 Raparigas tomae tento Cachopas não vos fieis, Cantigas leva-as o vento Cartas de amor, são papeis. Augusto Gil. Por ti perdi o socego, E dizes pVa te deixar ! Dize ás aguas do Mondego Que não corram para o mar. Lopes Vieira, Cantae-me as vossas cantigas Junto ao rio a murmurar. . . Mas baixinho, raparigas. •• Deixae-o também cantar. Teixeira de Paschoaes Seja-me ainda permittido citar de Augusto Gil quatro dísticos da maior e mais rara belleza em que o amor é symbolizado de uma forma absolutamente inédita: Boca talhada em milagrosas linhas A luz augmenta com o seu falar. Esta manhã um bando d'andorinhas la-se embora, atravessava o mar. Chegou-lhes ás alturas, pela aragem. Um adeus claro que ella lhes dissera, — E suspenderam todas a viagem. Julgando que voltara a primavera. . . o povo português 95 As formas do namoro em Portugal são variadas, mas hoje já menos nume- rosas do que em outros tempos. Eu creio ter conhecido o uhimo homem que, no Porto, ainda namorou de lenço na mão. Camillo fala d'esta forma nos Mfs- terios de Fafe. Era uma espécie de systema telegraphico para grandes dis- tancias, com uma asa só, o braço direito descrevendo vários meneios e tocando nas varias visceras e órgãos do corpo que podiam ter voto na Tnateria: os olhos, a boca, raras vezes a cabeça, o coração sempre, etc. Hoje, nas cidades e num certo nu- mero de camadas sociaes, domina o namoro da janela para a rua, que os espanhoes também teem e a que dão o nome de pelar la papa. A gamma percorrida pela alma terna e amaviosa do portu- guês é infinita e nenhum povo o excede em variedades de aspec- tos, profundeza de commoção e belleza dos symbolos de arte. Também se pode dizer que Portugal é um dos paises onde persiste com mais intensidade o flagello do seductor, elevado quasi á categoria de um heroe nacional. O portu- guês julga de seu dever trazer dentro do peito, até aos setenta annos pelo menos, um vulcão ! . . . Assim dizia Eça de Queiroz que eram os extinctos e terriveis românticos. Mas o beau ténebreux da França de i83o ainda vive em Portugal. E eu encontrei a prova d'isso nos nossos recolhimentos de regeneração de mu- lheres. Dizia-me uma senhora allemã, directora de um d'esses institutos, ao norte do Mondego, que aqui não succedia como no seu país. Cá, as mulheres entram com uma inscrição provi- sória; e ao cabo de uns tantos dias, reconhe- cem-se as que podem aproveitar com o regime q6 o povo português educativo da casa e as que serão rebeldes a esse regime. Estas ultimas são afastadas, despedidas. Ficam apenas as outras que, ao cabo de pouco tempo, se convertem em creaturas obedientes e de caracter agradável e brando. Na Allemanha não succede assim; as internadas chegam por vezes a espancar as madres directoras dos estabelecimentos. Está-se a ver que as despedidas em Portugal são as que se prostituiram por temperamento próprio, as vesanicas, as desti- nadas, não á maison de reforme^ mas sim ao manicomio; ao passo que as outras, as internadas, são as victimas da allucinação momentânea dos sentidos e da seducção, que não perde um mo- mento, que está quasi erigida em dever nacional. Eça de Queiroz encarnou esta feição do erotismo indigena no typo do portuguesi- nho valente. E evidente que uma tal aberração não pode existir, não existe na Allemanha. E por isso também as casas de regeneração de lá tão differentes são das de cá. Já atrás falei das nossas danças no que respeita ao rythmo. Devo porem ainda dizer que, como forma, ellas se reduzem a poucos casos, dos quaes o principal e mais abundante é o da dança da roda, geral em todo o país. Ainda assim esta forma verifica-se mais em plano; são cruzamentos de linhas que se effectuam sem attitudes especiaes. Das danças portuguesas, aquella em que as attitudes começam a ser esculturaes é o Vira^ sem duvida a mais graciosa de todas e já hoje muito introduzida na sociedade ele- gante. Entretanto estamos ainda longe das attitudes e graças da Ta- rantella^ bem como do drama, ou melhor da tragedia que tradu- zem os meneios das Danças espanholas. Não vem para aqui falar das artes decorativas do nosso folk- lore, porque alguém mais autorizado do que eu o faz, noutro estudo especialmente destinado a essa face do génio popular por- tuguês. Julguei porem necessário illustrar o presente artigo com alguns vasos de louça popular, colhidos em pontos afastados entre si, formas de uma elegância inexcedivel. E ajunto-lhes dois pratos da nossa cerâmica do século xvii, com assuntos amorosos, sendo um d'elles o coração alado, que voa e entra por toda a parte e o povo português g j parece pairar nos ares. De entre as expressões do nosso folklore, desejaria ainda inserir aquellas que logo após as da cerâmica, formas solidas, perfeitas, absolutas, mais impressão nos dão da fantasia estructural : os nossos barcos de navegação fluvial, alguns d'elles notáveis até pela decoração ornamental, como seja o que apparece na nossa gravura da ria de Aveiro (estudo anterior), e cujos perfis tão bem se casam, cada um d'elles, com a physiono- mia do seu rio. Até mais parecem um elemento necessário á pai- sagem. Tudo isto serviria para completar o conjunto de expressões estheticas que, até hoje, o povo português encontrou para as ne- cessidades da sua vida social. Falta-nos porem o espaço para tão extenso programma. Por isso mesmo, na presente publicação, se procurou definir em estudos especiaes, dedicados a regiões varias da ethnographia, os differentes aspectos da obra artistica do nosso povo. E por isso também foi eliminado do presente estudo tudo quanto, nas nossas superstições populares, se pode relacionar com certas pra- ticas e factos criminosos. Este povo português, que tão mal apreciado tem sido por nacionaes e estrangeiros a ponto de o darem por moribundo, revela todavia hoje energias latentes que, como vimos, se prendem ás épocas mais gloriosas da sua historia, que são da mesma na- tureza das que então geraram as grandes figuras da nossa civili- zação anterior ao século xvii e da sua expansão. É certo que a plêiade de homens notáveis que apareceram em Portugal desde a fundação da monarchia até i58o nem sem- pre teve successores da mesma estatura. Toda a dynastia afon- sina e parte da joanina, essas almas mysticas e sublimes de Santo António e do Condestavel Santo, os cérebros organizadores de D. Henrique, João II, Afonso de Albuquerque e Pedro Alvares Cabral, a coragem, ousadia e tenacidade consciente, capazes da € maior façanha da humanidade», de Fernão de Magalhães, não se repetiram, não podiam repetir-se em épocas posteriores. Entre- tanto, á obra económica e politica que vae de D. Dinis a D. Fer- nando, contrapõem-se as de Ericeira, Castello Melhor e Pombal e a dos economistas do primeiro quartel do século xix, que só em O. Martins, após sessenta annos de rhetorica dissolvente, encon- tram um ponto de contacto; a Fernão Lopes succede Alexandre q8 o povo portug^uês Herculano, como aos pintores e architectos do século xvi succede um grupo de artistas notáveis do século passado e do actual ; e é também desde o começo do século xix que a nossa litteratura e a nossa arte offerecem um movimento digno de succeder ao dos quinhentistas — com Herculano, Garrett, Camillo, João de Deus, Anthero do Quental, Guilherme Braga, Eça de Queiroz e Soares dos Reis, não falando já nos artistas vivos. A estupenda expansão que a nossa actividade manifestou até i58o havia-nos esgotado e preparado para cair nos braços da In- quisição, dos jesuitas e de todas as ordens monásticas, e sermos uma das suas victimas mais sugadas. E, quando se deu o advento do regime liberal, parece que a violência da transição, atordoando- nos e encontrando-nos sem preparação para esse novo estado, nos entregou sem defesa possivel nas mãos de novos tutores não menos egoistas do que os anteriores. E bem certo que todas as aristocracias são idênticas na sua evolução e historia; inventadas para proteger, guiar e defender, rapidamente se convertem em exploradoras e perseguidoras. Entre nós, diz o Sr. Dr. Adolpho Coelho » , ha um facto que convém estu- dar : a existência de um povo, por cuja educação os governos que se teem suc- cedido desde a revolução chamada liberal quasi nada fizeram até hoje, e que todavia tem boas qualidades, que contrastam por vezes singularmente com as dos chamados dirigentes. O nosso povo encontra-se a um nivel em geral rela- tivamente elevado, se o compararmos com as condições dos povos chamados incultos ; é isso o resultado de um trabalho de educação da parte da geração que precede sobre a que segue r* Raczynski, que nos veio encontrar em principios de uma nova vida politica, como vimos, define nitidamente a situação social do país É digno de observação, no nosso movimento lite- rário e artístico do século xix, o facto de um só d'esses homens I A pedagogia do povo português, in Portugália, tomo i, fase. i. Neste ponto do seu estudo, de que appareceram três artigos na citada revista, propóe-se o sábio professor mostrar «a existência, no povo, de uma pedagogia digna de attenção, ainda que de accordo com os traços fundamentaes da característica psychica» por elle, autor, apresentados. A Índole do nosso artigo é que nos não permitte acompanhá-lo na sua exposição tão nova como profunda; para ella pois remettemos o leitor. o povo português 99 notáveis que citei, Garrett, haver sido politico e grande orador! Nenhum dos outros o foi. E esse mesmo bem maior nos appare- ceria hoje, se a politica e outras seducções mundanas o não ti- vessem attrahido e absorvido. De facto ellas diminuiram-no muito, fazendo-o igual, por vezes, a outros literatos que, muito altamente coUocados na vida parlamentar, pertencem todavia a uma litera- tura que mais convém ignorar ou esquecer. Dado o caracter e a índole do nosso povo, as suas incontestá- veis virtudes e energias latentes, somos pois levados a explicar-lhe o estacionamento actual unicamente pela acção das classes diri- gentes. Acresce ainda que as classes superiores da nossa sociedade, quando se não retraem, absteem-se comtudo de exercer uma acção benéfica sobre o meio social; acompanham essas classes diri- gentes, apparecendo então caracterizadas por uma accentuada anarchia mental. A imagem da parte mais sã da nossa aristocracia hereditária, dá-no-la Eça de Queiroz de uma forma completa e com uma pro- fundeza inigualável na Illustre Casa de Ramires, quando descreve o caracter do protagonista do livro, Gonçalo, descendente de uma illustre casa do norte do país. A summula é perfeita : Aqueile todo do Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Sr. Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando se tila á sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negócios, e sentimentos de muita honra, esses escrúpulos, quasi pueris, não é verdade ?. . . A imaginação, que o leva sempre a exaggerar até á mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento á realidade útil. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar. . . A esperança constante n 'algum milagre, no velho milagre d'Ourique, que sanará todas as diíTiculdades . A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um mendigo. . . Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que um dia se decide e apparece um heroe, que tudo an-asa. . . Até aquella antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha torre, ha mil annos. . . Até agora aqueile arranque para a Africa. . . Assim todo completo com o bem, com o mal, sabem vocês quem elle me lembra ? — Quem?. . . — Portugal. Portugal, sim; mas o Portugal romântico e bohemio como ainda existe no seio da aristocracia do nosso país. 984156A j QQ O povo português O typo criado por Eça tem, a um tempo, as virtudes do norte, as virtudes e os hábitos do sul. Por isso elle encerra, no seu symbolismo, a summula mais completa do fidalgo português, tomando esta palavra na sua melhor e mais alta accepção. O nosso país, para em tudo ser conforme ao retrato que da sua éliie nos faz Eça de Queiroz, supersticioso e fatalista como um mouro, joga constantemente em todas as lotarias possíveis, apregoadas em altos brados a todos os cantos de Lisboa, o que lhe dá um caracter deprimentíssimo aos olhos do estrangeiro. Espera pela sorte gf^ande. Mas também está esperando todos os dias por esse outro milagre no género do velho milagre de Ouri- que, em que um grande politico, um Messias ha de vir «pôr isto a direito». E não se convence de que toda a obra útil pessoal tem de resultar da accumullação de pequenos esforços methodicamente dirigidos; e que toda a obra nacional tem de ser coUectiva; que hoje é a massa penetrada de ideias superiores de civismo e altruísmo que substitue o grande politico dos tempos passados. As classes dirigentes também teem de convencer-se de que é preciso amar o país para poder dirigi-lo no sentido mais útil para todos. A grandeza da Allemanha moderna partiu do movimento ini- ciado no tempo das guerras napoleónicas. Então nasceu a ideia da pátria allemã que, evolucionando gradualmente, produziu em 1870, o actual Império Germânico. A Itália e a Allemanha modernas serão os dois modelos que teremos de seguir para alcançar o nosso levantamento nacional. António Arroyo. í^^^Sv ^^^^^Mj yg^ \^k^ ^ ^^m â^ ^S^f* -^^JKSlQfciSí^." ^^^ aâi^ S PRAIAS E ESTAÇÕES THERMAES PORTUGAL, ESTAÇÃO DE INVERNO UEM quiser utilizar-se das praias portuguesas, das esta- ções thermaes e outras quaesquer estações de hygiene do nosso país, não deve aspirar a ver realizado aqui o que pôde encontrar no estranjeiro. O cosmopolitismo ainda por emquanto não nos invadiu para nos impor os há- bitos e installações grandiosas que, de ha quarenta annos para cá, a França, a Bélgica, a Allemanha, a Suissa e a Inglaterra vão offerecendo ao touriste e ao doente millionario. O contraste entre esses paises e o nosso, neste assunto villegiatura e cura de aguas, é por isso mesmo muito profundo. Mas também elle denuncia-se logo á entrada em Portugal, ás vezes até na gare fronteiriça. Eis como Eça de Queiroz, em A Cidade e as Serras, nos descreve, á entrada pelo Douro, uma estação de caminho des ferro bem nossa. Acabava de atravessar a sonora e eloquente Espanha, como sempre de capa aos hombros e de espada a flanco, e, de repente, sem dar por isso: Acordei envolto n*um largo e doce silencio. Era uma estação muito soce gada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes — e outras rosas em moitas, num jardim, onde um tanquesinho abafado de limos dormia sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pallido, de paletot côr de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o j Q2 Praias e estações iherwaes comboio. Agachada rente á grade da horta, uma velha, deante da sua cesta de ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado seccavam abóboras. Por cima, rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que os meus olhos anda- vam agoados. Este aspecto, que se encontra em qualquer das nossas linhas de penetração — Minho, Douro, Beira Aha e Baixa, Cáceres, EIvas-Badajoz, Villa Real de Santo António e Faro, é bem o de um pais que ainda vive gozando a natureza sem muito a explorar industrialmente. E a vida das nossas praias, e outras estações a que me venho referindo, é também assim geralmente pacata e nada febril. O próprio jogo de azar que, nos sítios do estran- geiro onde se joga, toma proporções de assustar, exige installa- ções deslumbrantes e leva muita gente ao suicidio, esse mesmo, apesar de ser factor indispensável para a manutenção de certos divertimentos obrigatórios em taes estações, não passa entre nós de uma perversidade amena e pouca perturbadora da paz das famílias. A maioria das nossas estações ganha com isso, porque ainda conserva o aspecto dos centros de reunião em que pessoas que se conhecem combinam encontrar-se em tal época do anno. Não quer isto dizer que, como também succede no estrangeiro, algumas d'ellas não se tenham transformado e convertido em grandes centros de villegíatura. Assim succedeu, por exemplo, com a praia da Figueira da Foz após a abertura do caminho de ferro da Beira Alta. Até então ella era apenas uma praia frequentada por famílias de Coimbra e campos do Mondego, poucas de Lisboa e Beira. Mas desde 1882 não é só uma grande parte do país, mas também uma certa porção de terras de Espanha que ahi leva os seus habitantes, por camadas que se succedem em agosto, setem- bro e outubro; três camadas sociaes diversas. Temos porem de começar a nossa enumeração por um dos extremos do país. Seguiremos, para este caso, a ordem já ante- riormente adoptada, começando pela província do Minho. De facto Portugal, como país de extensa costa marítima, conta uma grande quantidade de praias, de um extremo ao outro d'essa linha de costa ; graças ao movimento e natureza do seu solo, pos- sue ínnumeras nascentes de aguas míneraes de todos os géneros, e altitudes, exposições e climas, que lhe tornam possíveis estabe- lecimentos de cura de doenças variadíssimas. E assim é também Praias e estações thermaes 1 o3 que as suas praias podem ser habitadas durante longos meses do anno, geralmente de junho a novembro; que tem estações ther- maes em todos os pontos do seu território; e que pode estabele- cer desde o Sanatório para a cura da tuberculose, nas grandes altitudes, até as estações de verão e de inverno, accessiveis a todas as camadas sociaes e não somente a classes privilegiadas. AS PRAIAS PORTUGUESAS Desde a foz do Minho até á foz do Douro, as praias do mar teem um caracter differente de todo o resto do pais. Está-se na zona dos granitos, terrenos extremamente recortados, onde as pequenas praias se succedem com intervallos muito curtos. En- contram-se neste caso, a partir de Caminha, as praias de Moledo do Minho, Ancora e Vianna do Casiello, ligadas todas entre si pela estrada marginal que da fronteira chega até á sede do dis- tricto e que, para muitos, é a mais bella do alto Minho. Durante muito tempo» — conta-nos D. António da Costa — , vae seguindo por entre verdura, n*uma linha recta e alva ; o mar acompanha-a á direita com a regularidade de que, em vez de ser marginado de areaes, o é ao contrario de vegetação, de maneira que reúne a grandeza e severidade de um mar ao en- canto e doçura de um rio. Entre a estrada e o oceano, em linha parallela, a extensão de veigas, ora verdes, ora louras, e á nossa esquerda uma variedade de quadros successivos ». Na foz do Cavado temos Esposende e não muito longe a Apú- lia. Nas proximidades do Porto, Leça da Palmeira e algumas praiasitas que ficam entre Matozinhos e S. João da Foz. Todas estas teem o caracter familiar a que atrás me refiro, e foi numa d'ellas, Mindello, a sul de Vilia do Conde, que desem- barcaram os 7:5oo Bravos, os companheiros de D. Pedro IV. Devo ainda citar novamente Leça da Palmeira, na foz do Leça, já pelo seu caracter campestre, já por ser a praia preferida pela colónia inglesa do Porto. Mas entre ellas algumas outras se encontram que teem pro- porções consideráveis. Logo a seguir á Apúlia, a Povoa de Var- » No Minho, I04 Praias e estações thermaes ^im que, sem contestação, é a mais frequentada das praias ao norte do Douro, embora exclusivamente pelas provincias conti- guas — Minho e Trás-os-Montes. Já ahi por iSyS ou 1874, nos seus inicios, D. António da Costa assim no-la descreve : Povoação extensa, está atulhada de banhistas. É, de pouco tempo, uma completa invasão : a moda, na província. De manha, praia ; de tarde, passeio no paredão, ou ver as pescarias ; depois o delírio do jogo. No coração da villa, onde se acham os hotéis, os três bote- quins, e as três casas publicas de jogo, difficil é o transito á tardinha e á noite. De agosto a outubro concorrem aqui 22:000 pessoas. A praia fica num dos ex- tremos, praia larga, aberta, excellente K Em contraste com a Povoa, como mais tarde encontraremos as praias da Granja e Espinho, apparece agora, á foz do Ave, a vetusta e aristocrática Villa do Conde, anterior á fundação da monarchia e hoje muito procu- rada pelas familias das cidades do norte. A citar ainda Matosi- nhos, a mais frequentada das praias vizinhas do Porto, e final- mente S. João da Fo:{. Em todas estas praias e arre- dores ha mais ou menos curiosi- dades astisticas a visitar, e a algumas d'ellas já me referi quando tratei do país em gerai. Alem dos edificios de Caminha e Vianna do Castello, devo porem aqui lembrar os que se encontram nas proximidades da Povoa do Varzim e Villa do Conde: as igrejas românicas de Rates e S. Christovam de Rio Mau, as igrejas manuelinas de Villa do Conde e Azurara e outros monumentos menores, o pelourinho da Villa, por exemplo. De Leça da Palmeira, em delicioso pas- VILLA DO CONDE » Loc. cit. Praias e estações thermaes io5 seio, visitam-se facilmente os antigos mosteiros de Leça do Bailio e Aguas Santas, a que já me referi também e que foram respec- tivamente sedes, entre nós, aquelle da ordem militar de S. João, ou do Hospital de Jerusalém, mais tarde chamada de Malta, este da ordem militar e canónica do Santo Sepulcro. Diga-se ainda que, em quasi toda esta parte da costa portu- guesa, ha uma industria local — a das rendas de bilros, feita com linha, e no typo da cha- mada Dentelle torchon. Cen- tros principaes d'este fa- brico: — Vianna, Villa do Conde e, para o sul, Peni- che. De Matozinhos até S. João da Fo:{, mais co- nhecida por A Fo:{, a estra- da marginal segue em pe- quena elevação, de onde se goza o panorama de mar mais delicioso que tenho visto ; a estrada recorda um pouco as digites que ao longo do mar se usa cons- truir nas praias de Flandres e sobre as quaes, mais tar- de, se levantam dezenas de soberbas edificações. Mas, se as casas da nossa estação portu- guesa não se lhes podem comparar, todo o resto é infinitamente superior ao que se encontra nessas paisagens do mar do norte. Ceu, luz, atmosphera maritima de uma intensidade rara, vegetação envolvente, tudo isso se encontra em poucos sitios como nessa successão de pequenas praias, a do molhe de Leixões, a do pare- dão de Carreiros, a de Gondarem, a praia dos Ingleses e a do Ourigo. Ramalho Ortigão, apesar de viver ha muitos annos no sul, não recorda esses sitios sem viva commoção: Sob o ceu radioso, — diz-nos elle — , um vasto mar azul ondula, bate os ro- chedos da costa e inunda-os de espuma. Na atmosphera fresca, picante de sal, palpita o perfume das algas. Ao longe do mar negreja uma extensa linha como NA PRAIA DE MATOZINHOS — O SENHOR DO PADRÃO io6 Praias e estações thermacs a de um formigueiro, de pequenos barcos á pesca do caranguejo. A areia da praia reluz polvilhada do sol. Cantando no ar como a frescura de uma alvorada ouve -se o pregão alegre, vibrante, alongado em toda a largura da pronuncia de uma rapariga minhota : — Merca louça branca ou amarella, merca ? Abro bem a bôcca para me deixar embeber e penetrar da luminosa alegria do arem que parece diluida uma poeira aquática, diaphana, de pérolas liquidas douradas pela luz. O pregão tão caractcrisiico da louça branca ou amarella, que tnntas vezes ouvi em pequeno na estação dos banhos n'este mesmo sitio, iranspor- ta-me em espirito ao tempo passado, e sinto-me como n'um banho ideal de mocidade i. FOZ DO DOURO — PRAIA DO OURIÇO Todas estas praias desde Leça da Palmeira até á Foz, num percurso de 4 kilometros que se prolonga por um outro de igual comprimento até o centro do Porto, não podiam deixar de ser frequentadas principalmente pela população da segunda cidade do reino. A Foz, porem, é mais propriamente um bairro do Porto, já faz parte da cidade e tem uma população fixa. Os forasteiros são ahi relativamente em pequeno numero. Por isso mesmo, a Foz de hoje é muito diversa da que Ra- malho Ortigão nos cita nas seguintes palavras, escritas ha mais de trinta annos: Por uma janella aberta sobre o terraço a luz côr de pérola da madrugada entrava humedecida e salgada pela viração maritima. As banheiras, filhas e moças Farpas, i Praias e estações thermaes 107 da Maria da Luz, armavam as barracas na praia, cantando ao longe em tercei- ras, n'um coro argentino de sopranos, uma barcarola local. Os primeiros pre- gões matutinos dos vendilhões ambulantes penetravam do lado da rua pelas fendas horizontaes das gelosias, que o clarão da manhã pautava luminosa- mente de azul i. Esta é a evocação da Foz, a que se ia de carroção puxado a bois, mais tarde em char-à-bancs e, ainda durante muito tempo, em americanos puxados a mulas. Tudo isso está hoje algo moder- nizado e apressado em velocidades de conducção. O Passeio ale- gre, junto da foz do rio, é um ponto de reunião elegantissimo e de bom gosto indiscutivel. ^-r--*sfc.r.:, .. A VORTE DO PORTO Como disse atnís, estas praias teem um caracter especial: a rocha de granito entra pelo mar e recorta a faixa de areia com formas muito caprichosas. Passada a foz do Douro encontramo- nos porem, desde logo, na zona das dunas, larga superfície de areia, lisa, sem incidentes que lhe rompi.m a uniformidade. Após Arco\ello, pequena praia de recente data, apparecc a Granja, que é a mais aristocrática de todas as do norte e a uma das mais agradáveis de todo o país como temperatura de verão. I Farpas, i. io8 Praias e estações thermaes Graças á vegetação que se encontra por toda a parte e á sua mata, pode dizer-se que na Granja nunca se sente calor. Acresce a esta circunstancia o facto da proximidade do Porto e de uma infini- dade de aldeias, para que nada ali falte como alimentação. Mas, antes de mais nada, é o próprio aspecto da terra que seduz: uma espécie de alameda ou jardim, onde uma multidão de ca- sas de apparencia agradável oppõem irregularmente as cores vivas das suas fachadas ao verde profundo das arvores. A Granja tem os seus apaixonados de Lisboa e até de Espanha; muitas famílias A RIA DE AVEIRO JUNTO DA COSTA NOVA distinctas espanholas a frequentam ha já muitos annos e até algu- mas possuem ahi casa própria; e, de facto, sempre ella tem sido considerada como uma excepcional Estação de verão. A quatro kilometros de distancia, e sempre á beira da linha férrea do Porto a Lisboa, está Espinho, desde sempre rival burguês da Granja, mas muito mais importante como população de banhis- tas. Para o norte do Vouga não ha praia mais frequentada do que esta, nem talvez a Povoa de Varzim a iguale. Um serviço de tvamwãfs põe-na em communicação com o Porto e Aveiro. O mar tem ha annos destruido uma parte da villa; mas a cada bairro que elle destroe succede um novo bairro construído mais para o interior. E parece que o mar é que tem de ceder. Espinho não pode acabar. Cada vez é, pelo contrario, maior. Praias e estações thermaes 109 Retomando-se a linha férrea, se for de noite e não houver bru- ma, olhando para o lado do mar, logo após Estarreja e a 20 ki- lometros de distancia avista-se o bello farol da barra de Aveiro, que fica no extremo da Costa Nova, nome que ahi toma a praia. A duna tem em Aveiro uma importância excepcional, a que me re- feri quando, no meu estudo anterior, citei a região da Gafanha, conquistada completamente ao mar. A Costa Nova fica precisa- mente no extremo poente d'essa região e apenas separada d'ella pelos braços da ria parallelos á linha da costa marítima. A PRAIA DA FIGUEIRA DA FOZ Mas a praia mais importante de toda essa região é a Figueira da Fo\, aonde se chega, quer deixando a linha férrea do Norte na Pampilhosa e tomando a linha que d'ahi segue até o mar, quer deixando-a em Alfarellos e seguindo pelo ramal que bifurca na Amieira, linha de Torres, e entra na Figueira depois de atravessar o Mondego. Por seu valor próprio, como cidade, e pela pequena distancia a que se acha de Coimbra, a Figueira é uma das mais valiosas terras de villegiatura do país. A praia propria- mente dita é lindissima. E, sem ter a grandeza da bahia de Cas- caes, a pequena bahia de Buarcos é comtudo digna de ser citada pelo seu panorama especial. Olhe-se para o lado do norte, do alto do forte de Santa Ca- tarina, construido na foz do Mondego. Á direita, longe, ao fundo. I IO Praias e estações thermaes limita-nos a vista um massiço denso de pinheiros; mas descre- vendo um arco concavo deparamos com a povoação de Buarcos á beiramar, e mais adeante o Cabo Mondego penetrando nas on- das. Em plano inferior, estende-se a praia como um crescente franjado de escuma alvíssima. Inigualável o seu aspecto festivo, de manhã, num dia de sol, quando armadas todas as barracas de lona muito branca, encimadas por pequenas bandeiras vermelhas que o vento agita. NA N AZAREI H Figueira da Foz, cidade, possue o seu theatro; mas no Bairro Novo^ na praia, encontra-se o maior Casino ou Kursal de todo o pais, exceptuando o Colyseu de Lisboa. Após Vieira, ainda assente na duna e no parallelo de Leiria, encontra-se a primeira praia em terreno de arribas, A Na^areth, sitio notável graças ao salto mortal que D. Fuás Roupinho, por obra do mafarrico, ia dando, se a Senhora dos Aiflictos lhe não acode a tempo. O aspecto que a arriba ahi toma é verdadeira- mente formidável. A rocha eleva-se a pique numa enorme altura, algumas dezenas de metros, e creio que nenhuma outra arriba se lhe pode comparar. D. Fuás é que podia realmente gabar-se de ter escapado de boa. S. Martinho do Porto, a mais familiar das praias ao sul do Vouga, dotada de uma temperatura ideal, que faz d'ella uma ver- Praias e estações thermaes 1 1 I dadeira Estação de j^erão, é uma bahia pequeníssima, circular, a que dá accesso um corte vertical nas arribas de mar. Hoje, após assoreamentos seculares, é apenas o resto de uma grande bacia; porventura no futuro, quando se rebaixar a entrada do porto e as dragas escavarem os terrenos interiores, converter-se-ha num collossal porto de abrigo. Do lado do mar protegem-no as arribas, do lado de terra uma cadeia circular de montanhas. E, se nós, em logar de seguirmos a linha de Torres, que o serve, subirmos por um momento ao alto das montanhas onde passa o FAROL DA GUIA, A N. DE CASCAKS a estrada das Caldas até Alcobaça e Leiria, de que Ramalho Ortigão nos deu a descrição inserta no meu primeiro estudo, S. Martinho apparecer-nos-ha apenas como uma bella saphira de um azul profundo engastada no extremo d'essa enorme caldeira circular. Mas retomemos a linha férrea até á Estação de Mafra. Seguindo d'ahi em carruagem, passa-se pelo convento de Mafra, a obra de D. João V, uma enormidade coUossalmente inútil, no- tável pela sua grandeza e perfeita construcção. D'ahi pode ir-se pela Ericeira, villota edificada no alto das arribas, em cujos inter- vallos se encontram excellentes mas pequeninas praias; deixando á direita as Arribas do Mar, a Praia das Maçãs e o pittoresco valle de Collares, subir a Cintra, para depois se tomar a estrada de Cascaes. I 12 Praias e estações thermaes Cascaes é a mais importante das nossas praias de arribas. Ahi se encontra a celebre Boca do Inferno, funda caverna por onde o mar entra com grande estrondo quando está mexido e cujo aspecto é então deveras fantástico, sobretudo observado do alto da estrada contigua. Por ser a residência da corte nos primeiros meses do outomno, pela proximidade em que se acha de Lisboa, a que a liga A BOCA DO INFERNO BM CASCAES O melhor serviço de tramways do país, e pela sua maravilhosa situação sobranceira á bahia que tem o seu nome, esta estação adquire uma importância de facto excepcional entre nós. A margem direita do Tejo, após Lisboa, segue numa linha ondulante até á barra e ahi forma, com o seu prolongamento da costa marítima, o angulo voltado ao sul, em cujo vértice, e fron- teira ao Bugio, em meio da barra, está a Torre de S. Julião. A partir d'ahi, a costa inclina docemente, quasi para noroeste, descrevendo um arco concavo, em sentido portanto contrario ao doesse angulo, e circunscrito á formosa bahia ; como ultima praia Praias e estações thermaes j 1 3 de uma serie que, na sua encosta, de facto se segue sem interru- pção: Carcavellos, Parede, S. João do Estoril, Santo António do Estoril e Mont'Estoril, está Cascaes. Todas essas praias olham pois para sul e acham-se abrigadas dos ventos rijos do norte pela serra de Cintra, circunstancias que lhes dão condições climáticas especiaes de que mais adeante falarei. Elias teem ainda um cara- cter novo entre nós. Residência da corte, do mundo diplomático e das familias nobres do país, Cascaes impõe obrigações também especiaes a algumas d'ellas e é por essas que o cosmopolitismo entra em Portugal. Com effeito, o MontEstoril mais parece uma estação do Medi- terrâneo do que uma praia portuguesa. Entretanto a transforma- ção faz-se lentamente, porque carece de capitães importantes para se terminar. Apesar d'isso, a magnificente bahia continua a ter a sua natu- ral belleza que obra alguma humana será capaz de diminuir. «O sitio, — diz um estrangeiro — , tem uma belleza oriental, com a sua vegetação dos trópicos, as palmeiras, as piteiras gigantes, as camé- lias, e as cristas de olivaes e soutos de sobreiros coroando de verde as colinas que dominam a immensidade azul» '. E note-se que o mesmo autor diz ainda que a conservou para elle, após a festa consagrada da illuminação que ahi costuma ser um deslum- bramento, na opinião até dos mais exigentes. Na margem direita do Tejo as estações balneares succedem-se ate ao Bugio, como um longo rosário de contas: Pedrouços, Al- gés, Dafundo, Cruz Quebrada, Caxias, Paço d'Arcos, Oeiras, outr'ora muito importantes, quando as descreveu Ramalho Orti- gão nas suas Praias de Portugal e não havia ainda a linha férrea do litoral, hoje bastante diminuidas d'essa antiga impor- tância. Na margem esquerda, encontra-se a modesta estação da Trafaria, ao mesmo tempo povoação de pescadores. Bulhão Pato, que habita perto d'ahi, em Caparica, dá-nos uma viva des- crição de uma pesca de sardinha, cheia de pitoresco local. Sol alto ainda, saimos até á praia. Era véspera de Nossa Senhora da Con- ceição, a grande festa annual da terra. Os habitantes é que estavam descoro- I Jcan Bemard, La Vie de Paris, 1905. I j j^ Praias e estações thermaes coados e tristes ; a sardinha, a famosa sardinha da salga, não tinha dado nada ou quasi nada. Mais uns dias de escassez e lá se iam as esperanças. .. o pãa por muito tempo I Mar calmo. Na crista dos médãos, homens, mulheres, rapa- zes, mudos, immoveis, olhos cravados na companha, que lá muito ao largo vinha, regressando. De manhã os alcatrazes, de aza fechada, caindo do alta como raios, picavam a flor das aguas, indicio de grandes negras de sardinha. Pelo cariz do tempo, o lanço devia de ter sido grande. Chegaria a salvamento,, ou rebentaria o saco ? 1 Silencio profundo nos de mar e nos de terra. O silen- cio é signal certo de grande preoccupação de espirito, nos moradores de po- voações marítimas, tão vivos e loquazes. Ao rez do mar grandes grupos moviam-se visivelmente inquietos. Com o sol, que já no ponente batia o areal, aquellas figuras pareciam tomar propor- ções giganteas, cingidas de nimbos de ouro. O sol, as montanhas, o mar, as soberbas e solemnes paizagens, em vez de apoucarem o homem, engrande- cem-no. A beira de agua principiou a correr um torvelino, levantando pyramides de areia. De repente uma lufada súbita correu violenta. Os prodromos do furacão teem rugidos dolorosos como os de leão na entrada da febre. Daria n*uma tem- pestade ? Quantos corações ficaram apavorados em tal momento ! Os barcos aproximaram-se da terra. A multidão silenciosa. A vaga alta como de mar movido ao longe, embora não arrebatada. N'um ai tudo salvo ou tudo perdido! O sacco. . . a montanha de prata, estava a salvamento na praia. Raros olhos ficariam enxutos vendo rebentar a alegria d*aquelle povo ! O sol, disco de fogo, tocava a superfície das aguas, que serenavam, passada a borrasca ephemera, permittindo que olhos humanos se cravassem no seu occaso explendido. Em breve a linha arenosa e )á desmaiada, que segue até o- Cabo, a bahia de Cascaes, os picos de Cintra, os montes e povoações do norte^ o Tejo dormente, desvaneciam-se no breve crepúsculo das tardes de inverno. O pharol do Espichel, girando as suas aspas de fogo intermittentes, parecia abrir sulcos luminosos pelo mar levemente enrugado. Bugio e S. Julião accen- diam-se. As estrellas estremeciam no firmamento limpido. Noite coroada de lumes. A aragem era um alento virginio, e a vaga na praia um suspiro amo- roso. As redes voltaram ao mar. A companha bradou a uma voz : — Avé, Maria puríssima 1 » Repete-se esta scena da nossa vida do litoral de um extremo- ao outro do pais. Entretanto ella toma no Tejo um aspecto di- verso, de uma grandiosidade que não deve passar despercebida. E, recordando o que dissemos acerca da paisagem no nosso grande rio, mais uma vez se verifica que essa grandiosidade lhe vem do- fundo luminoso em que tudo se projecta e nos apparece aumen- tado. Os dramas humildes da existência dos pobres pescadores. » Bulhão Pato, Memorias, m. Praias e estações thermaes ii5 dentro d'esse quadro de uma luz tão perturbadora, attingcm uma intensidade trágica excepcional. Como que se transformam em episódios de uma vida sobrehumana. Note-se ainda que a scena passa-se no inverno. De Cascaes até ao extremo sul do reino, vamos agora encon- trar-nos numa região cujo clima se aproxima notavelmente do do Mediterrâneo: chuvas minimas e temperaturas medias. Por isso mesmo a nossa descrição tem agora de ser curta, para tomar maior incremento na ultima parte doeste trabalho — Portugal, estação de inverno. SETÚBAL— CASTELLO DE S. FILIPE Ao sul de Lisboa, a linda cidade de Setúbal abriga-se por de- trás dos montes de Palmella contra os ventos do norte. A sua praia, na foz do Sado, forma-se ao pé das arribas que, já agora, só nos deixarão, dobrado o Cabo de S. Vicente, para alem de Portimão. EtTectivamente, as melhores praias do Algarve — a da Im\ (Lagos) e a da Rocha (Portimão), ambas ellas encantadoras como paisagem, são também ambas ellas de arribas. Toda a nossa costa, desde a foz do Sado até ao cabo Espi- chel, olha para sul e é extremamente abundante em fauna marí- tima de variadas espécies. Ahi fica Cezimbra, a piscosa, como lhe chamou o nosso épico, suppondo que só lhe analysaria os versos quem soubesse latim. Mas entre ella e a foz do rio, um pouco a ii6 Praias e estações thermaes nascente do Outão, encontra-se a pequena praia de Albarquel, alojada na bahiazinha do mesmo nome e protegida pelas arribas onde assenta um velho forte desmantelado. Ha annos pensou-se em fundar ahi uma estação scientifica, destinada ao estudo de essa rica zona marítima, como preparatório da exploração me- thodica de todas as industrias do mar em torno da pesca, fonte principal da riqueza da região. Da ponta sul da barra do Sado e encurvando levemente para terra, a costa desce no meridiano até ao cabo de Sines, numa SETÚBAL — PRAIA DA MARIA Ei^GUELHA faixa de terrenos modernos onde se não encontra praia alguma. Abrigada dos ventos do norte pelas arribas do cabo e toda vol- tada ao meio dia, apparece então a pequena angra onde existe a única e modestíssima praia da província alemtejana. O nome de Sines parece oriundo de sinus. O golfo, apesar da sua diminuta superfície, teria pois sido considerado nos tempos antigos como o golfo por excellencia : por não haver outro ponto abordável em grau e meio da costa marítima, desde o Sado até ao cabo de S. Vicente. Mas não é esse facto que o illustra para a nossa historia, e sim o de ahi haver nascido, em 1469, a Este- vam da Gama e á lady entre nós chamada Branca Sodré, um filho de nome Vasco, que é porventura o mais feliz dos portugue- ses, se não em vida, certamente depois da glorificação eterna que sobre elle irradiam os versos de Camões. Praias e estações thermaes 117 A pequena praia de Sines é a mais familiar e timorata das suas congéneres portuguesas. Frequentam-na algumas familias da terra e poucas de Espanha, vindas por Badajoz e ainda por Aya- monte. E mais uma povoação algarvia pela natureza das culturas locaes, condições climáticas e caracter dos habitantes; e vive prin- cipalmente da industria da pesca, idêntica á do Algarve, e da ex- ploração da cortiça, peculiar ao Alemtejo. Desde ahi, em toda a costa, correndo a Sul, e ainda depois de passado o cabo de S. Vicente, não divisamos novas praias. PORTIMÃO — PRAIA DA ROCHA De facto, as da Luz e da Rocha, a que acima alludi, ficam no Algarve e a mais de vinte kilometros para leste da ponta de Sagres. Mas esta ultima província conta ainda uma grande quantidade de praias, das quaes não podem deixar de se citar: Ferragudo, Carvoeiro (Lagoa), Ai^mação (Pêra), Albufeira e Monteroso (\'illa Real de Santo António), todas ellas agora em terreno de praia, o terreno moderno do extremo do país. Nas costas do Algarve teem-se desenvolvido varias pescarias e as industrias annexas das conservas. Mas ainda assim a pesca peculiar á região continua a ser a do atum que se realiza em ar- mações especiaes e duas vezes por anno, nas viagens migratórias que o tímido animal periodicamente effectua, com percurso obri- gatório pelo extremo do nosso país. A região algarvia tende a desenvolver-se, em parte, graças aos seus portos de mar e, sobretudo, ao de Lagos, que está destinado ii8 Praias e estações thennaes a um prospero futuro, se for convenientemente aproveitado para as necessidades das grandes viagens marítimas de circulação. Ha annos já que a marinha inglesa de guerra toma a bahia de Lagos como um dos pontos de apoio e estacionamento para as suas grandes manobras, reunindo ali por vezes esquadras collossaes, ou varias esquadras ao mesmo tempo. E é digno de apontar-se o seguinte caso de contraste que, não ha muito, pôde ali obser- var-se entre a maior frota de guerra da actualidade, pertencente á primeira nação colonizadora de todos os tempos, e um pequeno vaso de uma minúscula nação que foi a primeira a descobrir e a conquistar terras e novos caminhos por todo esse mundo além. HA PONTA DE SAGRES Era de verão. E, na linda e majestosa bahia estava ancorada uma armada inglesa de mais de cem navios de todos os tama- nhos, grandes couraçados, cruzadores, avisos, torpedeiros, des- iroyers, submarinos. Tinham chegado havia pouco tempo e, desde logo e em plena marcha, tomavam as rigorosas posições que de- pois sempre mantiveram, quando regressavam das manobras. E assim, aquella enorme força de guerra impunha-se pelo seu for- midando caracter de sciencia e calculo impeccaveis. Mas do alto avançou um delicado veleiro, a nossa corveta de instrucção dos guardas-marinhas. E, com suprema elegância, a todo o pano, pas- sou pela frente da frota britannica, rodeou-a e, saudando-a gra- ciosamente, lá se metteu de novo ao mar, como uma evocação de sonho de arte, symbolo galante da nossa epopeia marítima, quando de cá se ia á descoberta da Africa portentosa, á conquista da índia, ao encontro do Brasil, ou á volta do mundo dentro de Praias e estações thermaes 119 quaesquer cascas de noz. E a pessoa que de Lagos me descrevia o caso acrescentava: E, na ponta de Sagres, a alma do grande e tremendo Infante enterneceu-se -pela primeira vez na sua metade portuguesa, e pela primeira vez pasmou de quanto cá se fez, com elle e com o pouco que havia. A metade inglesa, essa achou simplesmente correcto e natural que todos os oflíiciaes e toda a tripulação da frota britannica, mais de quarenta mil homens, corressem á amurada dos seus navios, para ver uma cousa inédita para quasi todos — passar a alma dos antigos marinheiros portugueses. j-^. AGUAS E ESTAÇÕES THERMAES Como se lê na memoria do Sr. engenheiro António Maria da Silva sobre Nascentes thermo-minei^aes de Portugal, vol. i, graças á contextura e antiguidade do nosso solo, regista-se nelle a exis- tência de um sem numero de nascentes de emprego therapeutico. E tal é a riqueza doesse nosso meio therapeutico que, apesar de dividido o país em duas zonas de desigual distribuição e applica- ção, doenças ha que, através de ambas as zonas, encontram a cada passo as aguas santas que as curam.. j 20 Praias e estações thermaes O chefe do serviço official de inspecção das nossas nascentes, num valioso trabalho de onde extracto % fornece as mais amplas indicações acerca do seu melhor aproveitamento. E não é em meia dúzia de paginas que poderá resumir-se o importante assunto, apesar de limitado, tanto quanto ao numero de nascentes, de que indico as mais importantes, como á descrição das suas situações locaes. Por isso citamos a fonte de informação para quem mais seguramente queira aproveitar-se d'essas fontes de salvação. Na enumeração que se segue, refiro ainda o valor therapeutico da nascente apenas á sua especialização e não a todas as suas applicações. E farei essa enumeração por grupos de doenças e segundo a ordem de exposição adoptada até aqui. Rheumatismo e doenças de pelle. — Este é o grupo mais nume- roso das nossas aguas e thermas, facto que nos leva aqui a chamar a attenção dos nossos leitores para o citado estudo do Sr. engenheiro Silva, por nelle se encontrarem as razões de ordem geológica que explicam e regulam o apparecimento das aguas em taes ou taes terrenos. Caldas de Monção, districto de Vianna, já conhecidas desde 1706. Bicarbonatadas, sódicas e lithinadas. Grande caudal — 1:600 doentes por anno, geralmente espanhoes. A estação vae de i5 de maio a 3i de outubro. Biivette e balneário. A villa de Monção está situada no extremo norte da fronteira, á borda do rio Minho que, no dizer de D. António da Costa, não vae, como o Lima, brincalhão, serpeando; vae cheio de margem a margem, através de duas paredes formadas por arvoredo sil- vestre, em lanços extensos e calmos, com solemnidáde. A esta solemnidáde, — acrescenta depois — , junta-se ainda outra de Monção a Valença : são as falladas ranhas (degraus d'agua na largura do rio) pelas quaes o barco tem de descer, e três d'ellas, as da Filha boa, e a de Terra caida, de perigo mortal. «r. . .na margem direita, a cidade de Tuy, a sentinella de Hespanha com a sua cathedral dominando a povoação, e na margem esquerda Valença, a atalaya portuguesa, com a sua coroa de fortiíicações, de cujo centro se hastea a ban- deira das quinas. . . » Conselheiro Sarzedas^ Aguas mineraes — Physiotherapia, 1907. PraLis e estações thermaes \ 2 ) Caldas do Eirogo, a 5 kilomeiros de Barcellos, para nordeste. Bicarbonatadas, chioretadas, sódicas, siliciosas e sulfhydricas. Abundantes, duas nascentes. Estação de i de junho a 3i de ou- tubro — Soo doentes por anno. Biivette, pulverizações e balneário. Estas ihermas são de recente exploração e acham-se assaz bera installadas, apesar de não terem attingido ainda a situação a que o seu constante progresso deve fazer aspirar. Elias estão alem d'isso situadas numa linda região, já atrás citada, a do valle onde poisam as vertentes do Tamel, em aguas do Cavado. o RIO VIZELLA Caldas da Saúde, a 3 kilometros de Santo Thyrso, para norte. Chioretadas, sulfúreas, sódicas, silicatadas e bromo-iodadas. Abun- dantes. Estação de i de maio a 3o de setembro — 3oo a 400 doentes por anno. Balneário. Estas aguas, embora exploradas ha muito tempo, e crê-se até que pelos romanos, teem actualmente uma installação modesta, posto que bem cuidada e moderna. Caldas de Vi:{ella, concelho de Braga, já conhecidas do tempo dos romanos. Carbonatadas, sódicas, sulfúreas, siliciosas. Enorme caudal, varias nascentes. Notáveis também na cura da syphilis, — 3:ooo doentes por anno. Estação de i de maio a 3i de outu- bro. Buvette, pulverizações e balneário. D. António da Costa chama á terra Apitioresca V^ella, e diz- nos que, na sua paisagem, o que mais nos encanta é a desharmo- 122 Praias e estações thermaes nia de todos os elementos que a compõem e se transforma de facto na mais formosa das harmonias ; que não ha extensão, mas graça, nessa paisagem. O rio, — conta-nos elle — , meio encoberto com tanta vegetação, já saltando de entre fragas, já serpeando por entre ar\'oredo, alarga os braços debaixo da ponte nova, o sitio mais pitoresco, e reflectindo ao longo d'elle os castanhei- ros, os carvalhos e os salgueiraes, offe- rece então aos olhos um limpido espe- lho, c aos ouvidos um doce queixume produzido pelo som melancólico das successivas quedas de agua, que nos acordam a saudade. Caldellas^ a 16 kilometros de Hraga. Bicarbonatadas, sódicas, cálcicas, carbónicas e silicatadas. Abundantes, varias nascentes. Muito empregadas também, fora da sua especialização, em doen- ças do apparclho digestivo — 700 a Soo doentes por anno. Estação de 1 de junho a 3o de setembro. Riivette e balneário. Caldellas está situada numa baixa minhota cuja paisagem é suavissima e o terreno envol- vente feracissimo. A 100 metros e a meia encosta, sobranceiro ao valle, o Hotel da Bella Vista. Para se apreciar o valor do sitio basta dizer que, conhecidas dos romanos e durante muito tempo abandonadas as aguas, ahi pelos fins do século xviii foram novamente exploradas pelos frades de Rendufe. E, como é sabido, os frades, no nosso país pelo menos, oram possuidores dos sitios mais bellos e valiosos, que por cá havia. Chatrs, no districio de Villa-Real. São as Aquaejlaviae e, mais tarde, caliJae dos romanos. Bicarbonatadas, sódicas, gazo-carbo- nicas^ siliciosas. Estas aguas estão até agora mal exploradas, apesar das supe- riv)res qualidades que todos lhe reconhecem. É de crer, porem. EM CALDELLAS Praias e estações thermaes 123 que, terminado o caminho de ferro, cuja lesta fica situada na planturosa e celebrada veiga, que se estende em plano inferior á villa, esta adquira maior importância, graças á maior facili- dade de accesso; e que, então, as suas aguas se transformem e adquiram por seu turno o valor real que devem ter. Caldas de Moledo, á beira do Douro, próximas da Régua. Bicarbonatadas, sódicas, silicatadas e sulfúreas. Grande caudal, varias nascentes. Muito empregadas também no tratamento da o TÂMEGA EM CHAVKS syphilis — 900 a 1:000 doentes por anno. Estação de i de Junho a 3i de outubro. Buvelte, pulverizações e balneário. Pela sua situação ao lado da linha férrea do Douro, a povoa- ção é um centro de excursões interessantes: ao rio maravilhoso, cuja visita se deve fazer em quasi toda a sua extensão dentro do país; á região de Villa Real, a que atrás me referi; finalmente, a Lamego, seus edificios e arredores. Thermas da Rainha D. Amélia, cerca de S. Pedro do Sul, districto de Viseu. Apesar do seu enorme caudal, elevada hyper- thermia, e da maravilhosa situação em que se acham, estas ther- mas estão ainda por estudar devidamente e até por aproveitar como convém. Já me referi anteriormente á encantadora povoação a que se dá o nome de Cintra da Beira, a villa de S. Pedro do Sul, so- branceira ao espaçoso valle em que confluem quasi ao mesmo 124 Praias e estações thennaes ^empo o Troce, o Vouga e o Sul. A falta de um caminho de ferro Qpncorreu, porem, até agora para essa vil la ser menos conhecida e visitada. E tudo leva a crer que, construida a linha do Vouga, a região prospere e se converta num ponto de excursão e ville- giatura, a que dá o maior valor, não só a superior belleza de toda a região em redor, como também a proximidade da cidade de Viseu com as suas riquezas de arte. O Banho de S. Pedro, que dista apenas alguns kilometros da villa, será então largamente aproveitado. Porque deve dizer-se que, na sua composição e applicações therapeuticas, as aguas do Banho parecem constituir uma entidade á parte, dentro do país. O Sr. Conselheiro Sarzedas assemelha-as ás aguas francesas de Evaux, e suppõe-nas indicadas para o tratamento de rheumatismo, neurastenia, nevralgias, doenças uterinas, lithiases biliar e renal, atrophia muscular e artero-esclerose. São aguas sulfhydricas. Caldas de S. Jorge, a 7 kilometros da \^illa da Feira. Abun- dantes. Sulfhydratadas, chioretadas sódicas e alcalinas. Estação de I de junho a 3o de setembro — 400 a 5oo doentes por anno. Balneário. Estas aguas estão situadas numa região de vastos pinhaes, A installação carece de grandes melhoramentos, por datar de muitos annos e não haver sido convenientemente modificada. Aguas chioretadas de Alcanhôes, a 7 kilometros de Santarém, para o norte. De exploração recente. Chioretadas sódicas, leve- mente sulfatadas e siliciosas. Uma nascente só, mas abundante. Empregada também nas doenças de estômago — 200 a 3oo doen- tes por anno. Estação de i de junho a 3o de setembro. A situação doestas aguas é por e.nquanto muito modesta e carece melhorada. Cucos, a 2 kilometros de Torres Vedras. Aguas e lamas mineraes especialmente usadas no tratamento do rheumatismo. Chioretadas sódicas, bicarbonatadas, cálcicas, lithinadas e silicio- sas. Grande caudal em varias nascentes — 400 a Soo doentes por anno. Estação de 1 5 de maio a 3o de setembro. Estas thermas são de exploração recente. Apesar d'isso, a sua installação é magnifica, e a sua prosperidade constante e cres- cente. Accesso pela linha de Lisboa-Torres-Figueira. Caldas da Rainha, entre Lisboa e Leiria, Aguas chloro- sulfatadas, sulfhydricas e fosfatadas. Grande caudal, varias nas- Praias e estações thermaes j 2 5 centes. A sua especialização é precisamente: arihritismo, syphilis, doenças utero-ovaricas — 4:078 doentes em i9o(>. Estações: de i5 de maio a 3i de outubro, e de 1 de janeiro ao ultimo dia de fevereiro. Buvette, pulverizações, balneário. Estas caldas, que já foram conhecidas pelos romanos, possuem installações de primeira ordem. Graças porem á amenidade do clima e á superior belleza da região em que a villa está situada, esta é ainda um grande cen- tro de villegiatura, como Es- tação de verão\ 8:000 a 10:000 forasteiros, perten- centes ás mais elevadas ca- madas sociaes, ahi vêem todos os annos passar a temporada mais quente do anno. A linda villa das Caldas da Rai- nha é o centro de villegiatura que CALDAS DA RAINHA— RIO DO AVENAL cm Portugol maís SC parccc com as terras de aguas francesas e allemãs. Não tem, certamente, Trinkhalle magnifica, nem a esplendida Conversations-haus de Baden ; não tem o Corsaal de Wiesbaden, com o seu pórtico jónico, a sua arcada rodeada de lojas de luxo, e o seu grande salão, de galerias sustentadas em columnas de mármore, revestido de estatuas de Garrara ; não tem theatro, não tem sumptuosas salas de concerto, e de bibliotheca ; não tem galeria de pintura, nem galeria de antiguidades, nem grande hotel, nem grande restau- rante, nem pavilhões, nem cottageSy nem chalets, nem quintas de recreio. Tem, porem, óptimas arvores, o bello parque chamado da Copa, a linda ave- nida dos alamos, os choupos, as acácias e os pinheiros da mata, — a sombra sufRciente, emfím, para se passar o dia todo na fresca oxygenação do ar livre, primeira condição essencial no tratamento das lisboetas anemicas, emmurche- cidas durante o inverno na atmosphera mordente e defínhante das salas e dos theatros. A circunstancia, porem, que dú ás Caldas da Rainha a sua grande superio- ridade sobre todos os logares de villegiatura, ainda os mais afamados em Por- tugal, como Cintra, como o Bussaco, como o Bom Jesus de Braga, é que esta villa é o centro da mais artística, da mais histórica, da mais pittoresca região de todo o país. Em nenhum outro logar se proporcionam aos touristes mais rápidas e mais fáceis excursões encantadoras de arte e de archeologia >. i FarpaSy 1. I 26 Praias e estações thermaes Através d'esta região, já revelada noutras palavras atrás transcritas, Ramalho Ortigão leva-nos a visitar os monumentos da Batalha e Alcobaça, as ruinas do castello de Óbidos e a en- cantadora lagoa do mesmo nome; outras ruinas ainda, as do palácio de Leiria, que foi o maior edifício gothico civil do país \ os túmulos, cruzeiros e pelourinhos dispersos nesta zona privile- giada, os campos de Aljubarrota e da Gollegã, a villa de Pom- bal. E, aconselhando-nos que visitemos tudo isso, promette um més bem cheio de prazer inédito, quer ao estudioso, quer ao artista. E com razão o diz. Estoril. Aguas chloretadas e silicatadas. Nascente abundante. Estação de 24 de junho a 3i de outubro — 1:000 doentes por anno. Balneário, pulverizações, inhalações, etc. Estas aguas estão situadas em Santo António do Estoril, bahia de Cascaes, e em meio da mata que os frades tiveram artes de ali plantar, existe o estabelecimento, frequentadissimo durante grande parte do anno. O primeiro balneário ahi cons- truido data do tempo de D. José. Banhos da Poça, em S. João do Estoril. Chloretadas-sodicas, silicatadas e lithinadas. Estação de 24 de junho a 3i de outubro — Soo a 600 doentes. Buvette, inhalações e balneário. Estas aguas, que estão bem installadas, parece terem sido as primeiras exploradas da região, mercê da influencia outrora exer- cida pela Misericórdia de Cascaes. Alcaçarias. No Terreiro do Trigo, Lisboa. Chloretadas sódi- cas, azotadas. Balneário. Caudal abundante. São muito conhecidas as installações doestes banhos, que se recommendam pelo seu asseio e boa disposição. Banhos de S. Paulo, Lisboa. Chloro-sulfatadas, sulfhydricas, carbo-gazosas. Caudal inesgotável. Estação de 1 5 de maio a 3i de outubro — i:5oo doentes por anno. Valiosissimas estas aguas, no tratamento do rheumatismo principalmente; e, dada a sua situação dentro da cidade, no seu ponto mais central, seria para desejar que a installação do balneário pudesse realizar-se em condições superiores ás actuaes. Fadagosa de Marvão, districto de Portalegre. Bicarbonatadas sódicas, sulfhydricas, siliciosas, férreas. Abundantes. Estação de I de julho a 3o de setembro — 5oo doentes, geralmente espa- Praias e estações thermaes 127 nhoes da Estremadura. Exploradas desde 1780, mas principal- mente após i885. Buvette e balneário. Situadas no extremo do Alto Alemtejo, quasi na fronteira, numa região alpestre e pittoresca, estas aguas são pouco conhe- cidas dos naturaes do país. Tem-lhes por isso mesmo faltado o apoio que merece o esforço do concessionário, criador do estabe- lecimento. MONCHIQUE— KM CAMINHO DA PONTE DO LAGKDO Thermas de Monchique, Algarve. Chloretadas sódicas, sili- ciosas. Grande caudal, quatro nascentes. Especialização, alem do rheumatismo: dyspepsias e doenças secas da pelle. Balneário — 700 a 800 doentes por anno. Estação de i de junho a 3o de setembro. Estas thermas estão situadas na vertente sul da serra de Monchique; numa das mais lindas regiões de Portugal, a que an- teriormente me referi no meu estudo do Pais. Envolvem-nas uma grande mata e goza- se de lá um panorama maravilhoso e exten- sissimo. Monchique soffre comtudo, se bem que em menor grau que as thermas anteriores, do afastamento em que se encontra 128 Praias e estações thermaes do centro do pais. Complicando-se as necessidades de ordem therapeutica com as necessidades annuaes de villegiatura, é na- tural que os habitantes das cidades procurem de preferencia as regiões ao norte do Tejo, mais próximas como estão da zona po- pulosa do país. Se assim não fora, a estação de Monchique teria prosperado de forma excepcional. Doenças da pelle. — Confinadas numa parte dos valores thera- peuticos da classe anterior, ou ainda caracterizadas por uma o MONDEGO NA FELCUEIRA inversão na ordem d'esses valores, apparecem-nos varias estancias de aguas: S. Pedro da TofTe^ a 5 kilometros de Valença. Chloretadas sódicas, sulfatadas, cálcicas, magnesianas e siliciosas. Uma nas- cente só. Installações modestas. Estação de i de junho a 3i de outubro — i3o a 200 doentes por anno. Balneário. Caldas das Taipas, a 7 kilometros de Guimarães. Bicarbo- natadas sódicas, sulfúreas e siliciosas. Caudal abundante, quatro nascentes. Estação de i de maio a 3o de novembro — i:3oo a i:3oo doentes por anno. Buvette e balneário. As Taipas estão situadas no percurso de estradas que de Braga levam a Vizella e a Guimarães, dentro da zona minhota a que tão Praias e estações themtaes 129 largamente me referi no meu primeiro estudo. São já co- nhecidas desde o tempo dos romanos. Mas o seu maior va- lor só foi reconhecido em meados do século xviii, graças aos esforços de um frade, Frei Christovão dos Reis, carmelita des- calço. Estas caldas estão talvez prejudicadas pela proximidade de Vizella, uma das grandes estações do nosso meio therapeutico e de villegiattira. FELGUEIRA— A CASA DO MOLEIRO Caldas da Felgueira, a 7 kilometros de Canas de Senhorim, linha férrea da Beira Alta. Carbonatadas sódicas, gazo-carboni- cas, silicatadas e sulfhydratadas. Três nascentes e um caudal considerável. Estação de 26 de maio a 3o de outubro — 400 a 5oo doentes por anno. Buvette e balneário. A especialização completa d'estas aguas é: arthritismo loca- lizado na pelle, mucosas e sei^osas. As Caldas da Felgueira estão situadas a pequena distancia do Mondego e na sua margem direita. Mas esse Mondego não é o da zona baixa e terrenos modernos da doce região coimbrã; é ainda o que corre apertado em valles graníticos. Soo ou 400 i3o Praias e estações thertnaes metros acima de ess'outro, através de uma paisagem forte e extremamente pittoresca, que mais se aproxima da das terras minhotas. A installação da Felgueira é considerada como uma das melhores do nosso país. O povoado de que toma o nome é ainda hoje insignificante. O conhe- cimento d'estas aguas data dos fins do século xviii, em que começaram a ser apregoadas as suas virtudes anti-herpeticas. Valeu-Ihes porem immenso a reputação que lhes fizeram alguns mé- dicos eminentes de Lisboa, Manuel Bento de Sousa, António Maria Barbosa e Silva Carvalho. Ainda hoje ellas são frequentadas prin- cipalmente pelas famih*as do sul do país. Banhos do Luso, pri- meira estação da linha fér- rea da Beira Alta. Estas aguas são bicarbono-chlo- retadas, sódicas, gazo-car- bonicas. Muito abundantes. Estação de i de maio a 3i de outubro — mais de 1:000 NO VIDAGO doentes por anno. Buvette e balneário. Especialização correcta: vicio arthritico. Conhecidas pelas suas virtudes anti-herpeticas desde o fim do século xviii, estas aguas só comtudo começaram a ser exploradas a partir de i85o. A estancia do Luso é d'aquellas a que um longo tirocinio imprime caracter. Luso é propriamente um balneário. Mas é um balneário dentro de um dos mais extraordinários sitios destinados a superior villegiattira. Basta para isso a proximidade a que está da mata do Bussaco. E pois uma estação a todos os respeitos privilegiada. Praias e estações themiaes 1 3 i Aguas de Almotnha, a 3 kilometros de Alcobaça. Chioretadas sódicas, sulfatadas sódicas, carbonatadas cálcicas, siliciosas. Cau- dal abundante. Estação de 23 de junho a 3i de outubro — 600 doen- tes por anno. Duas estancias. Buvette e balneário. Especialização correcta: doenças da pelle e intestinos (consti- pações principalmente). Estas aguas são de exploração recente. Estão situadas a meia distancia entre o Vallado e Alcobaça, e á beira da estrada que os A PONTE ROMANA DAS PEDRAS SALGADAS liga, atravessando a região encantadora que Ramalho Ortigão descreveu partindo de S. Martinho do Porto. Hoje já raros to- mam esta antiga estrada. Vão em caminho de ferro até Vallado e de lá é que sobem a Alcobaça. Doenças das vias digestivas. — Voltamos á região de Trás-os- Montes e no districto de Villa Real encontramos algumas das mais conhecidas aguas do pais, situadas á beira da nova linha férrea da Régua a Chaves. Procedem todas ellas de um vasto lençol que vem do interior de Espanha. Vidago, a meio caminho entre Chaves e Villa Pouca de Aguiar. Bicarbonatadas-sodicas, gazo-carbonicas, lithinadas e arsenicaes. Varias nascentes de diversa mineralização e applicação. Estação l32 Praias e estações thermaes de 1 de junho a 3o de setembro — 700 a 800 doentes por anno. Buvette. Estas aguas, que foram já conhecidas pelos romanos, são consideradas preciosas, as da nascente Vidago primitivo princi- palmente. Exportam-se em grande quantidade. O seu uso é sobretudo interno, por isso mesmo a Bnvette compre- hende quasi completamente os serviços de exploração da estancia. Apesar d'isso projectam- se ahi futuras e grandiosas installações para uma época próxima, em virtude princi- palmente do accesso que agora dá, a toda essa região, a nova linha férrea. A empresa doestas nas- centes explora também uma das nossas melhores aguas de mesa, a de Sabroso. Campilho. Exceli ente nascente de aguas bicarbo- natadas, sódicas, gazo-car- bonicas, ferruginosas, lithi- nicas, fluoretadas e leve- mente arsenicaes. São aproveitadas estas aguas apenas para exportação; perfeito todo o serviço de capta- gem e engarrafamento. A nascente brota a pequena distancia de Vidago. Pedras Salgadas, a meia distancia entre Vidago e Villa Pouca. Bicarbonatadas sódicas, lithinadas, gazo-carbonicas. Muito abun- dantes. Varias nascentes com diversa mineralização e applicação. Estação de i5 de maio a 3o de setembro — 1:162 doentes em 1906. Buvette, balneário. Especialização correcta : doenças gastro-intestinaes, arthri- tismo. NAS PEDRAS SALGADAS Praias e estações thermaes j 3 3 São de recente exploração, embora se pense que fossem conhe- cidas dos romanos. Excellentes as installações quer do balneário e dos hotéis, quer da expedição das aguas em garrafa. A estação das Pedras Salgadas está situada numa região bas- tante elevada, de onde se goza um soberbo e vasto panorama da serra. De todas as suas nascentes a mais reputada é a do Penedo. Se em logar de tomarmos a linha da Régua a Chaves, seguir- mos pela que mais acima parte de F^oz-Tua em direcção a Mi- TEDRAS SALGADAS — A CASA DO ZÉ NADO randella, a meia distancia entre estes dois pontos, e para nas- cente, encontra-se o soberbo manancial de outra excellente agua de mesa: Agitas de Bensaitde. Bicarbonatadas sódicas. O caudal, apro- veitado sobretudo para exportação, é superior a 5oo metros cúbi- cos em vinte e quatro horas e provém de varias nascentes. Especialização: dyspepsias incipientes. Doenças diversas. — Como disse, os nossos agrupamentos de nascentes são determinados pela esp^c/a/z*{Jcao de cada uma d'ellas, o que não quer dizer que, na maioria dos casos, o seu valor therapeutico não seja mais variado e rico do que posso fazer i34 Praias e estações thermaes suppor. Mas aqui obedeço a uma necessidade mental já atrás notada, a de ver os factos em linha schematica e portanto muito simplificados. Por isso entro agora numa numerosa classe de entidades therapeuticas que não podem reduzir-se aos nossos typos geraes. E começo pela mais notável de todas as nas- centes portuguesas. jm^ L £JH^^K t^KW Gere^. Esta nascente, que P^ ^ ^^IGh^KJÉI^HE P^^^^^ ^^^ ^'^^ conhecida dos romanos, o que de certo não admira por ella se achar nas vizinhanças da celebre estrada militar da Geira^ que nos ligava ao centro do império, mais ainda parece ter sido preparada para allivio de um povo de aventu- reiros que, das suas peregrina- ções pelas terras equatoriaes e da zona tórrida, em redor de todo o mundo, regressam a casa com o fígado grandemente ava- riado. Elias são de facto heróicas para o Jigado^ embora também se empreguem no tratamento da diabetes. São alcalinas, silicatadas, fluo- retadas e carbonatadas sódicas. Divididas por varias nascentes, o seu caudal é abundantissimo. Estação de i5 de maio a 3i de outubro — 2:000 doentes por anno. Applicam-se principalmente para uso interno. Já me referi á região em que estas nascentes brotam, descre- vendo sobretudo a belleza superior dos amplos valles que lhes dão accesso, do rio Cavado e seus affluentes. A estação do Gerez no valle do rio Homem, um pouco a montante de Villar da Veiga, está situada numa altitude assaz considerável, na zona de 400 a 700 metros. Esta circunstancia, ligada ás que concorrem na serra, quer no campo geológico, quer no da fauna e flora, converte a estada GEREZ — MOINHO NO RIO CALDO Praias e estações thermaes i35 ahi numa constante revelação de aspectos raros e inéditos de pai- sagem intensa, até dentro dos terrenos graniticos em que é habi- tual ser assim. A quem desejar pois inteirar-se completamente do que esse sitio offerece á curiosidade multiforme do touriste, tomo a liber- dade de lembrar a monographia que o Dr. Ricardo Jorge ha annos GEREZ — CASCATA DAS PALAS escreveu com um enthusiasmo, que não tem fim, pela maravilhosa estancia. O Gerez possue installações de primeira ordem. Mas possue sobretudo, alem da sua milagrosa agua medicinal, a mais per- feita agua potável que jamais bebi, quer como sabor e leveza, quer como temperatura — a agua que nasce do chão, por trás da Casa amarella, e que tem a temperatura constante de 12 graus centígrados. Esta agua não conhece dilatados, nem receosos. Bebe-se impunemente em qualquer momento. Alem doestas aguas do Gerez, outras ha que muito se recom- mendam no tratamento da diabetes. Caldas de Melgaço^ no Minho. Bicarbonatadas mistas, com predominância cálcica, siliciosa, férrea e lithinada. Abundantes, 1 3 6 Praias e estações thermaes seis nascences. Estação de 1 5 de maio a 3i de outubro — 800 a 900 doentes por anno. Buvette. Especialização: diabetes. Estas aguas são de exploração moderna. A sua situação junto do rio Minho, a montante de Monção, participa do pittoresco de todo o curso d'esse rio na parte mais alta. Aguas de Cúria, na região da Bairrada, districto de Aveiro. Es- tas aguas, que teem grande affinidade com as de Contréxevilie, são de exploração recente e vieram preencher uma lacuna no meio the- rapeutico português. Muito abundantes. Sulfatadas, cálcicas, bicar- bonatadas sódicas, levemente magnesianas, ferruginosas e lithina- das. Estação de i5 de maio a 3i de outubro. Buvette — 273 doentes em 1905; tendências para aumentar. Especialização: visa os arthriticos e attinge os gravelosos. (Aumenta o funccionamento do fígado e rins). Estas aguas são exportadas em quantidades já hoje conside- ráveis. A região onde ellas brotam é encantadora e pertence á segunda zona da nossa classificação, a das terras baixas das pro- ximidades do litoral. Guria está situada a igual distancia entre Aveiro e Coimbra, a poente e muito próximo da linha férrea. Fo^ da Certã^ na margem esquerda do Zêzere, freguesia de Sernache do Bomjardim. Pela sua mineralização, estas aguas devem considerar-se únicas no país. Sulfatadas, sódicas, alumi- nosas. São empregadas só para uso interno e exportadas. Especialização: diabetes e dyspepsias por fermentações anor- maes. Estas aguas não estão ainda completamente estudadas. Aguas de Santa Martha, Ericeira. Chloretadas-sodicas, ni- tricas, magnesianas, siliciosas. Abundantes. Rompem nas rochas, á borda do mar. São de exploração moderna. Estas aguas carecem de um estudo mais completo do que o realizado até hoje. Os melhores resultados que se teem obtido com o seu emprego são : uso interno, em doenças de estômago, rins e bexiga; uso externo, em doenças de pelle, eczema e rheumatismo. Aguas da Amieira, a 1 1 kilometros da Figueira da Foz. Chlo- retadas, sódicas, bicarbonatadas-calcicas. Enorme caudal, três nascentes. Estação de 1 5 de maio a 3i de outubro — 1:200 a i:3oo doentes por anno. Buvette e balneário. Especialização: doenças de estômago e da pelle. Praias e estações ihermaes i37 Estas aguas estão em exploração desde i885. A Amieira fica no cruzamento da linha de Torres com o ramal de Alfarellos, junto dos deliciosos campos do Mondego. Aguas de Moura, no districto de Beja. Bicarbonatadas cálci- cas, chioretadas, magnesianas, nitratadas e lithicas. Grande cau- dal. Seio as aguas potáveis das fontes da villa. Exportam-se em grande quantidade. Os saes de Moura, assim conhecidos como producto pharma- ceutico, são os que mineralizam estas aguas. Especialização: arthritismo. o TÂMEGA NA SUA FX>Z Doenças das vias respiratórias e artliritismo. — Termina esta enumeração por duas estações de agua de uma especialização accentuadissima, tanto mais para notar quanto é certo que todas as aguas sulfúreas se applicam mais ou menos no tratamento das doenças doeste grupo. Dado, porem, o valor therapeutíco das duas nascentes, a especialização definida, sobretudo da pri- meira d'ellas, impõe-nas como entidades differenciadas. Entre-os-Rios, na confluência dos rios Tâmega e Douro. Abun- dantes. Sulfhydratadas, sódicas, carbonatadas e chloretadas. Es- tação de I de junho a i5 de outubro — Soo a 600 doentes por anno. Bupette, pulverizações, inhalações e balneário. Apesar de conhecidas desde muito tempo, a sua exploração regular é relativamente moderna. Já por vezes me referi á região superiormente bella do rio Douro e em especial ao sitio de Entre-os-Rios, que é uma incon- testável maravilha. i38 Praias e estações thermaes As installações da estação figuram entre as melhores do país, e o seu futuro affirma-se pelo aumento constante de touristes. Porque Entre-os-Rios não é apenas uma estação de aguas; é um logar de villegiatura muito definida e caracterizada. Aguas de S. Vicente, entre Cette e Entre-os-Rios. Abundan- tes. Chioretadas, carbonatadas sódicas, silicatadas e lithinadas. Estação de i de junho a i5 de outubro — 400 doentes por anno. Buvette, pulverizações, inhalações e balneário. ENTRE OS-RIOS — MARGEM DO DOURO Ainda ha pouco tempo não se tinha completado o estudo cli- nico doestas aguas, porque a sua exploração é recentissima. Por confrontação com outras, é-lhes porem assinada a seguinte espe- cialização: — doenças das vias respiratórias e arthriticas. As installações são excellentes. A estação, alem de tudo o mais que concorre nella e na região deliciosa que a envolve, torna-se notável porque está hoje posto a descoberto o balneário romano, em que as aguas foram exploradas — achado precioso, de um valor inestimável e de uma riqueza de pormenores verdadeiramente excepcional. Aguas purgativas. — Entre as lacunas que até agora existiam na serie dos valores therapeuticos representados pelas nossas nas- centes thermo-mineraes, uma havia que especialmente se fazia sentir — a das aguas purgativas. Á riqueza da visinha Espanha, Praias e estações thermaes I 3 q na especialidade, para só falar doesse país, oppunhamos nós uma absoluta penúria. Annunciam porem ultimamente os jornaes da capital que vae ser registada uma nascente de aguas laxativas, descoberta em Charniche, freguesia da Ventosa, concelho de Tor- res Vedras. Da analyse que lhes foi feita, resulta que a presença de avultada quantidade de sulfato de mçignesio nestas aguas as- 'sina-lhes um logar especial na hydrologia portuguesa. A sua especialização parece ser: regularização das funcções gastro-intestinaes. Segundo affirmam, são de um sabor muito agradável ao pala- dar e de uma pureza excepcionai. PORTUGAL, ESTAÇÃO DE INVERNO Apesar da sua limitada extensão, Portugal possue uma grande variedade de climas. Como diz o Dr. Silva Telles na sua Intro- diicção geographica, a situação do país, a natureza e relevo do seu solo, a grande quantidade de altas serras ao norte e a expo- sição especial das suas encostas, as terras baixas do litoral e da provincia alemtejana, a acção do Oceano em grande parte do território, tudo isso leva-nos a suppor que Portugal ha de possuir climas de montanha, de valles e de planícies e climas marítimos. Tudo isso nos leva também a comprehender as variedades de vegetação e de regime agricola em cada região e, em parte ainda, o temperamento e aptidões das respectivas populações. O clima evidentemente, como resultante das circunstancias de maior ou menor pressão do ar, de maior ou menor regulari- dade e excessos de temperatura, do grau de humidade, dos ven- tos reinantes, de chuvas, neves, trovoadas e nevoeiros, da lumi- nosidade mais ou menos constante e intensa da atmosphera e da sua nota de cor, o clima, digo, tem uma influencia marcada na saúde physica e moral dos respectivos habitantes e deve portanto ser estudado como meio hygienico e therapeutico. Ora «em Por- tugal, diz um distincto medico inglês, o Dr. Dalgado \ ha terras « Dr. D. G. Dalgado, The Climate of Lisbon and of the hvo health resorts in its immediate neighbourhood. Mont * Estoril y on the Riviera of Portugal y and Cintra, London, 1906. 140 Praias e estações thermaes com climas de quasi todos os typos e para todas as estações, mas algumas não são exploradas e outras carecem de melhorar as suas condições de vida». Afigura-se-me até que muitos dos nossos climas, sobretudo no que toca a terras do interior, nem conhecidos são. Ha annos passeava no valle de Besteiros, faldas do Caramullo, com um medico illustre; impressionado pelo nobre aspecto da paisagem, pela tranquillidade e doçura do ar e pela espécie de abrigo que nos criavam as serranias envolventes, elle pára de repente e exclama: — Que esplendida estação de saúde aqui se não fazia ! I . . . E como este, através do país inteiro, vi eu muitos casos que não sei que estejam apontados pelos especialistas. Mas já hoje felizmente ouvimos falar dos Sanatórios da Serra da EstreJIa, de Parede, Oeiras e Outão; das colónias maritimas para crian- ças em Peniche, no Estoril e na Trafaria. Já milhares de pessoas da nossa melhor sociedade vão fa:{er a estação de verão nas Caldas da Rainha e em Cintra, retemperar-se na mata do Bussaco e no Bom Jesus do Monte. Já se aponta Unhaes da Serra como estação de outono e já o Estoril começa a ser considerado como estação de inverno, não falando nessa ilha encantada da Madeira, a decana das nossas estações, que tão requestada vae sendo por estrangeiros, no momento presente. Mas, em qualquer d'estes grupos, estão felizmente appare- cendo sempre casos novos. E é para notar que, no nosso litoral abundem, como apontei, as estações de inverno e egualmente as de verão. A respeito de Cintra, diz-nos o Dr. Dalgado: «Cintra é uma villa construída para residência de verão. É uma encanta- dora estação de moderada altitude, moderada temperatura e agradável humi- dade no verão 1 Ella tem nesta estação ar puro, mas enriquecido pelos aromas exhalados da sua abundante vegetação ; o ozone é ahi naturalmente em maior quantidade do que em Lisboa». Mas, para este medico, é sobretudo o Estoril que merece uma consideração que, por certo, surprehenderá a maioria dos portugueses. «A atmosfera no Mont'Estoril, acrescenta elle, é muito pura, marítima e saudável, e melhor a tornam ainda os seus pinhaes e matas de eucalyptos que, como é bem sabido, teem a propriedade de aumentar a quantidade de Praias e estações thermaes I a \ ozone do ar. Durante o inverno não ha movimento na localidade, nem auto- móveis, nem poeira». Referindo-se á luminosidade da atmosfera lisbonense durante o inverno, á necessidade de dois dias de sol em cada três para uma boa convalescença, e partindo dos dados da estatística me- teorológica, affirma que tanto Lisboa como o Mont'Estoril exce- dem as exigências medicas. Eis aqui, na totalidade, as observa- ções que elle faz relativamente a esta ultima estação. o ANTIGO CONVKNTO DF. SAXTO ANTÓNIO DO KSTORIL «Lisboa tem uma temperatura muito mais suave e unirorme que Biarritz ou Nice, e tão suave, mas mais uniforme que Catania. A sua humidade relativa pode considerar-se desejável e os ventos dominantes são moderados. Com to- das estas vantagens e com as que já notei .... uma cidade tão grande nunca pode ser um bom logar para convalescentes; mas pode ser recommendada a todos os que desejem aliar uma temporada de descanso com os divertimentos de uma cidade muito alegre e um clima muito doce. O Mont'Estoril é, a todos os respeitos, superior a Lisboa e, por isso mesmo, muito mais o é relativamente a Biarritz, Nice ou Catania. O lacto é que, tendo eu procurado, em toda a zona oeste e sul da Europa, um bom clima para ahi tí.xar a minha residência, nenhum encontrei ainda que pu- desse soflfrer comparação com o Mont 'Estoril durante os meses de novembro a março, tanto pela pureza atmosférica, igualdade de temperatura e secura comparada, como pela ausência de ventos. Se juntarmos a isto as vantagens provenientes dos seus pinhaes, avenidas de palmeiras e matas de eucalyptos, dos seus lindos chalets, bons hotéis e excellente systema de canalizações, da sua agua tão pura e leve como salutar, da sua magnifica praia de areia, dos 142 Praias e estações ihermaes seus innuineros passeios, da pesca e outros divertimentos na bahía, da sua luxuriante vegetação tropical e maravilhosa profusão de plantas indigenas e exóticas, dos seus laranjaes carregados de frutos dourados, de um ceu azul e de um mar azul, temos uma estação de belleza e salubridade incomparável, única — um verdadeiro jardim em plena primavera — quando a Inglaterra ainda está envolvida em tristeza, nevoeiro, geada e neve. Pela sua excepcional situação para quem vem por mar de Londres, New-York ou Rio de Janeiro, e pela proximidade em que está de uma grande cidade, alegre e hospitaleira como Lisboa, o Monc 'Estoril não tem rival. Therapeuticamente considerado, o Mont'Estoril pode ser classificado en- tre tónico e estimulante por um lado, e calmante por outro. Casos ha em que partilha das qualidades de ambos. Actua como estimulante nos casos de debili- dade proveniente de febres ou doenças pulmonares, no cansaço das crianças, na debilidade senil e em algumas formas de dyspepsia ; e como calmante em muitos casos de asthma, insjmnia ou irritabilidade nervosa ; ao passo que a sua temperatura igual e secura relativa são extremamente benéficas para o rheumatismo chroníco e gotta, e em muitos casos de catharro chronico e pul- monar. A sua acção pode comparar-se, servindo- me de um exemplo caseiro, á de um bom copo de vinho do Porto, que estimula em certos casos e tempera em outros, sendo que em nada afiecta uma pessoa robusta e forte. Estas mesmas observações podem ser applicadas a Cintra durante o verão. O Mont*Estoril é um logar ideal de repouso, principalmente para os esgo- tados pelo trabalho, porque ahi dormirão melhor do que em qualquer outro sitio. É também uma esplendida estação intermediaria para as pessoas que voltam dos trópicos e desejam evitar os rigores de um inverno do norte ; ou para os doentes a quem uma mudança de grande calor para grande frio seja extremamente prejudicial ou perigosa. Também pode ser recommendado aos que não supportam as habitações aquecidas artificialmente; porque no Mont - Estoril não ha necessidade de fogões nem de fato pesado. Em alguns casos de tuberculose pulmonar incipiente seria sem duvida vantajosa a estada ahi ; mas parece -me diííicil encontrar alojamento, por isso que tanto os proprietários de chalets, como os donos dos hotéis, se recusam a acceitar inquilinos ou hos- pedes nessas condições». O Dr. Dalgado, no seu opúsculo, depois de mais uma vez rccommendar o Mont'Estoril aos touristes em geral, formiíla uma serie de quadros meteorológicos em que estabele a comparação da nossa praia com as estações de Biarritz, Nice e Catania, con- cluindo pela incontestável superioridade do Mont'EstoriI. * I Recentemente chegou-me ás mãos um artigo publicado no The Practi- tioner, de julho do corrente anno, intitulado The Three Estorils. The Portu- guese Riviera, By G. H. Brandt, M. D. Neste artigo estende-se aos três Estoris o modo de ver do Dr. Dalgado acerca de Mont'Estoril e da sua comparação com as Franco-Italian Rivieras. Faz-se também ahi allusão ás thermas de Praias e estações thermaes 143 Quer-me parecer porem que esse estudo deve ser estendido ao sul do nosso país, onde ha praias e estações do litoral que, aliás sem competência especifica para o affirmar, julgo superiores ao Mont^Estoril. E lançando mão dos dados que se encontram no trabalho doesse illustre medico e dos que fornecem os Annaes do Observatório D. Luis, annos de 1904 e 1906, chego ao seguinte apanhado : Temperaturas medias Primavera Verão Outono 14,38 20,69 16.69 12,39 19.67 15,25 .3,27 21,94 15.79 i5,oo 25,10 19.3 iS.o.S 2o,5o 16,64 16,04 21,58 17.90 16,54 22,60 18,36 Anniiaes i5,63 i3,8o 1475 17,60 15.74 16,82 17.38 A progressão gradual de Lisboa até Faro, passando por Lagos, mantem-se em todas as outras relações meteorológicas, confir- mando a crescente superioridade das estações á maneira que nos afastamos para o sul. E o que demonstra o quadro seguinte: Annos 1856-1900 1875-iyoo 1904-1905 Estações Lisboa . Biarritz . . Nice . . Catania . Lisboa . Lagos. . Faro . . Máxima amplitude thermica Humidade relativa Quantidade annual dt chuva - 70,88 738,3 - 74.9 1.067^ - 75,8 766,9 - 61,9 556,1 34,6 67,30 542,15 34,4 61, 5o 459,45 29.7 72,10 391,55 Santo António e S. João do Estoril, concluindo por dizer : •! hope I have con- vinced the rieder of the importance of the Estorils. They offer at the same time a unique wínter climate and abundam facilíties for mineral-water treat- ment.» The Practitioner, Limited, London, W. C. Strand, 149. I A A Praias e estações thermaes Devo acrescentar que, nas praias do sul, ha ausência de ven- tos fortes e nevoeiros, sendo que a irradiação solar é ahi muito superior á do norte e a temperatura mais uniforme. Por estes vários motivos eu julgo toda a costa do Algarve destinada ao estabelecimento de estações de inverno, devendo porventura co- meçar-se por impulsionar a criação da de Lagos, por causa da sua admirável bahia. É para citar ainda a analogia de aspectos que parece existir entre este sitio e as regiões do sul da Itália. Coelho de Carvalho, na nota final á sua traducção das Éclogas de Vergilio, assim no-lo diz: Os primeiros quinze dias aqui passados, são horas de continuo deslumbra- mento; tanta é a luz no céu e no mar, que tudo se impregna de um tiuido luminoso; e, se nos corpos a opacidade é uma illusão dos nossos sentidos im- perfeitos, a atmosphera de luz, que nos envolve, a tudo dá uma tal apparencia de diaphano que, nos primeiros momentos, a realidade é sonho. A tarde estava deliciosa; e então notei, mais uma vez, quanto a paisagem d 'esta região algarvia se assemelha ás praias da Grande Grécia; como esta bella bahia de Lagos nos provoca nitida a visão d*aquelle encantado golfo, onde, n'um recanto da costa, existe o tumulo de Vergilio, e sobre cujas aguas vagava em noites de luar o espectro de Agrippina, a assassinada mãe de Nero. É semelhante o recorte das arribas ; erguem-se também ao fundo do qua- dro as altas montanhas cor de violeta ; e, n'essa tarde, uma leve nuvem branca pousara sobre o pico de Monchique, como lá a coma de fumo empluma, por vezes, de branco o cimo do Vesúvio. O que mais acorda a lembrança da paisagem do sul da Itália é a igual còr no céu e no mar, que céu e mar já aqui não são do mesmo azul, nem do mesmo verde, que, ao voltar para o norte o promontório de Sagres, as ondas e o firmamento vão tomando. Depois, que placidez ao declinar da tarde ! Parecia que a natureza inteira cairá em beatitude, enervada pela embriaguez intensa da luz d'aquelle dia de agosto. A agua do rio, em baixa mar, entre as restingas e coroas do areal de ouro levemente rosado, era serena, como tanques de prata espelhenta ; e uma e ou- tra barquinha de solitária vela latina deslizava, ao amor da bríza, em partida para a pesca do alto, ou em demanda do porto da villa, com peixe para levar á lota. A paz e a côr de um quadro vergiliano, embora em Vergilio o desenho seja diverso. Conclusão. O estudo do nosso povo fez-me invocar os exem- plos do resurgimento da Allemanha e da Itália como modelos a seguir na nossa obra nacional. O presente estudo leva-me a invo- Praias e estações thermaes I a 5 car um outro exemplo, o do povo suisso, como um dos que melhor praticam a industria que talvez possa denominar-se — da villegia- iiira. A França e grande parte da Itália nella encontram uma das suas maiores fontes de riqueza. Apesar d'isso, quero crer que o exemplo suisso sobreleva ao das outras nações como systematiza- ção verdadeiramente nacional de toda uma rede de instituições tendentes a um mesmo fim profissional. A industria do hotel é, nesse país essencialmente productor, a segunda industria. E entretanto nada o impede de ser ha muito tempo um dos mais notáveis nas industrias mecânicas, de ser hoje notabillissimo na cultura da vinha e nos meios da sua defesa contra os agentes atmosféricos, de ser a nação da pedagogia, etc, etc. Ora as condições especiaes do nosso país predispõem-nos para sermos uma nação industrial semelhante á Suissa nesse ramo da rillegiatura. Inútil dizer o que a nossa situação, encarada sob este as- pecto, acarretaria comsigo para a conservação e desenvolvi- mento de todo o nosso tão pittoresco yb/A'/ore industrial; para todas as profissões relacionadas com as necessidades do touriste; para a nossa agricultura e industrias annexas; para todas as industrias do mar e do litoral, para a nossa marinha mercante; para as vias de communicação no interior do país; para todas as industrias de construcção; para a cultura e producção das bellas artes ; para o desenvolvimento da musica. A nossa paisagem, o caracter do nosso povo, as nossas praias e nascentes thermo-mineraes, as nossas estações de montanhas, valles, planícies e litoral, eis ahi a grande riqueza do nosso país, superior no seu conjunto, segundo parece, ás que possuem os outros paises. António Arroyo. 'W A HABITAÇÃO EM PORTUGAL CASA DE HABITAÇÃO cm Portugal, bem como cm todos os logares e em todas as épocas em que o homem pre- cisou de levantar o abrigo que o protegesse contra as inclemenciiJí ambiente, obedece, na sua estructura, nas suas dis- posições geraes, na sua orientaçíío, ás condições ambientes de solo e clima, indo buscar áquelle, mon- tanha nua ou floresta es- pessa, os materiaes cons- tructivos, e adaptando a este a distribuição e o destino das suas partes componentes. Ora, sendo os materiaes da nossa re- gião, assim como o seu clima e o conjunto dos seus hábitos domésticos, semelhantes aos de toda a Europa do sul e aos que na zona levantina occupam a orla do Mediterrâneo, d'aqui deriva uma certa similitude de aspectos e espontânea convergência de moti- EM VIANNA DO CASTELLO 148 A habitação em Portugal VOS que integram a habitação portuguesa no grupo de nações que teem um fundo commum de procedência eihnica e certa ana- logia de condições históricas. Sujeita á multiplicidade das condições sociaes, quer na disper- são imposta pelas primitivas circunstancias agrarias, quer no agru- pamento solidário originado pela formação inicial do burgo, a habitação, coexistindo com as transformações por assim dizer cellulares da vida popular, é como que o alter ego do homem EM VIANNA DO CASTELLO e O seu mais cândido e intimo reflexo. A casa do pae do velho Hesiodo, reconstituida pelas investigações sagazes da archeologia na simplicidade primeva da sua feição, é o núcleo ancestral da familia hellenica, verdadeiro symbolo da vida pastoral e agrí- cola da Attica contemporânea do autor dos Trabalhos e os Dias. Para se fazer uma exposição critica da habitação humana, mesmo em qualquer ponto restricto da superfície da Terra, urge sempre discriminar a casa rural da casa urbana, e extremar ainda, entre os dois typos, as que tém caracter de formação espontânea das que obedecem a moldes eruditos. Estas, mercê de uma tal ou A habitação em Portugal '49 CAPITEL DA CASA DE COLOMBO qual preoccupação de sumptuosi- dade e das determinantes estheti- cas que lhes deram origem, são quasi sempre edificações de pro- cedência exótica, em geral cons- truidas nos períodos de arte que caracterizam as varias phases da architectura religiosa, e obedecem por isso, na sua traça e na sua ornamentaria, aos modelos trazi- dos pelo novo cânon architecto- nico. Por uma reacção natural, o alvenel da região mantém certos motivos tradicionaes dos estádios anteriores, mas naturalmente influenciado pelos novos elementos, termina por os adaptar á construcção humilde, á qual elles vão adherindo como cristaes, formando assim os elos seculares da tradição decorativa. É o caso do românico, do gothico, e, na Idade Moderna, da inexhaurivel fonte de inspiração que tem sido, até á actualidade, o mo- vimento de reviviscencia da arte greco-romana co- nhecido pela designação da Renascença. Na estreita faixa que constitue o solo portu- guês, lei análoga domina o fácies da habitação, im- primindo-lhe como que o stygma do substractum geológico, quando, como na zona granitica, as al- deias fundem o tom fuli- ginoso das suas fachadas e dos seus colmos com o scenario pardo da monta- nha, ou quando, como na região do calcareo, as CA«A DE COLOMBO NO FUNCHAL (dcmoiida) frontaHas reverbcratti sob IDO A habitação em Portugal a intensidade da luz que d^elkis parece irradiar, as telhas brilham com u ouro dos seus musgos e as chaminc.s erguem no azul ferrete a variadíssima gra- cilidade dos seus perfis esbeltos como minaretes. Nas largas manchas de aflo- ramentos graniticos, a casa tvpica tem expressão a maior parte das vezes idêntica nos pontos mais diversos do nosso território, e esse parentesco logo fere a curiosidade do observador e expressivamen- te o informa sobre a identi- dade de costumes e a per- manência de tradições. Em geral de um só andar, é de pedra accumulada sem ci- mento, recordando o rude apparelho polygonal das ida- des primitivas, ou em fieiras regulares de pequena espes- sura, collocadas de cutello e constituindo o perpianho tão vulgar nas áreas transmon- tana e minhota. Ao rés-do-chão, cavam-se as lojas para a alfaia agricola, o gado, ás vezes o lagar e o celleiro; a escada, exterior, encosta a uma das fachadas ou cae sobre ella perpendicular- mente : é desguarnecida e rude, ou cobre-se no patim do alto com um alpendre elementar. Para a rua publica, frequentemente para um quinteiro, deita a varanda de madeira, forrada de ripas mal esquadradas, as mais das vezes desguarnecida de balaustres; nas regiões onde a pedra abunda, veda-se até ao peitoril com lagens rectangulares, e o seu beiral saliente firma-se em columnas del- gadas de fuste monolithico. Aos cantos, dois aposentos furados por janellinhas timidas, quasi sempre de taipa, quando este elemento se associa á pedra, completam a physionomia da habi- tação. EM VIANNA DA CASTELLO A habitação em Portugal i5i O clima determina a orientação das fachadas que precisam de ser mais rasgadas pelas aberturas, accusa o pendor dos tectos na região das neves, alonga a beirada nos logares onde durante as longas invernias os ventos desabridos erguem telhados e col- mos que tém de ser seguros por fieiras de pedras ou grandes lagens de schisto. Um typo de casa de mais arejado aspecto, frequente nas regiões do Minho, Tras-os-Mon- tes e Beiras, é a casa da classe media rural, com entrada nobre pelo largo portão que encosta a um dos esquinaes do prédio, ora apenas coberto por um te- jadilho que o protege das infil- trações da chuva, ora com cer- tas preoccupações architecto- nicas, de pilastras e cornija saliente, sobre que se ergue uma cruz flanqueada por dois vasos heráldicos. Dentro, o amplo pateo rectangular que tanto lembra as pousadas das Castellas e da Andaluzia, com dois dos seus lados occupados pela larga varanda soalheira, assente em pilares ou colum- nas de pedra, mais raramente sobre arcaria apparelhada. De beiral saliente firmado em prumos de madeira sobre que o travejamento se adapta por meio de um cachorro duplo for- mando capitel, quasi sempre sem balaustres, é esta varanda em geral orientada a sul ou nascente e é ali onde se fia ao sol de inverno, onde se dorme nas noites caniculares, servindo no outomno de sequeiro do milho ou de madureiro da fruta. E para ella que dão os aposentos da casa, e por vezes, nas povoações de encosta, domina os casebres humildes, branquejando, caiada e cheia de cravinas, a indicar a habitação do lavrador mais abastado ou a tranquilla e farta residência ecclesiastica. Para o pateo dão EM VIANNA DO CASTELLO l52 A habitação em Portugal os estábulos, os celleiros com as arcas de castanho cheias de centeio ou de azeite, as arrecadações; alli se empilham as carra- das de lenha sob um telheiro, e a um canto se acolhe o forno de tecto cónico, cruzado por dois tijolos sobre a porta laivada de fumo; pela estrumeira do chão, saltam porcos e gallinhas em convivência familiar e nas noites calmas de julho re- pousam os bois pacificos, ruminando. A cobertura da casa é de telha vã fixa por pedregulhos ou então arga- massada; as chaminés, raras e simples, não alindam o perfil da empena como nas \i mais pobres casas algarvias, e o fumo, ou se espalha no ambiente saindo pelos interstícios do tecto, ou ir- rompe de uma abertura ve- dada por um rectângulo de cortiça do qual pende uma canna formando cabo. A ornamentação das ca- sas em toda a região grani- tica é pobre, não só pela dureza rebelde do material, o que onera a construcção, mas pela ausência da cal e dos innumeros recursos das suas combinações. As aberturas são succintas, sobretudo nas regiões de longo e nevoso inverno, e as fachadas, secularmente tisnadas a fumo e sol, apenas nalgum pobre e tosco poial se ornamentam com o mangerico humilde, ou o vermelho vivo da sardinheira. Nas zonas mistas, já apparecem frisos e pilastras, e entre os prumos da varanda lançam-se arcos de taipa, muito caiados e frescos. Por vezes, nas aldeias de encosta, por onde se escalonam os enormes blocos graniticos, alguns em prodigioso equilibrio, ha casas cavernas, talhadas na rocha viva, que lhes fornece a área do pavimento além de uma ou duas paredes, servindo-lhes em Eit VIANNA DO CASTELLO (2usa onde nasceu Miguel de Vasconcellos A habitação em Portugal i53 alguns casos de cobertura pelo aproveitamento de grandes lagens que avançam sobre os esteios naturaes e formam vastas palas monolithicas. E a antithese da casa de adobe, parallelipipedo de barro, a que se mistura palha cortada, seco ao sol ou ao forno e privativo das regiões onde de todo falta a pedra, como nas zonas geológicas de formação recente. E este o antiquissimo exemplo da Mesopotâmia, com suas muralhas de adobes secos ao sol do mês de Nizam, chamado do tijolo, muralhas que uma cheia levava ás vezes na impetuosidade da corrente. Citemos também a especialissima construcção dos palheiros do litoral, formados de pranchas de madeira pintadas a verme- lhão, que se vêem de Aveiro até Mira, os quaes, elevando-se sobre estacaria, se esquivam á invasão das areias, que, passan- do-lhes por debaixo, vão mais longe formar a nova duna, ou prolongar a antiga. Assim, os habitantes das cidades lacu.sires se esquivavam ás cheias dos hiiTus suissos ou ás inundações da plantcie lombarda. Nas regiões calcareas, a alvenaria, com os seus va- riadissimos recursos, a plas- ticidade da pedra, o con- junto das industrias do bar- ro, o tijolo, o azulejo, a telha recortada, e também a figura decorativa, dão á habitação aspectos de can- tante polychromia e pasto á imaginação do artista regional, c]ue assim vivia numa constante labutação criadora. O clima favorece os aspectos felizes, a tra- dição exalta-os, e c assim que a paisagem é tão pií- torescamente illustrada de notas decorativas, com os extensos lanços de aqueductos demandando o filão recôndito onde a agua aflora, os pilares gigantes da nora árabe, gemedora EM VIANNA DO C \STELLO 'H A habitação em Portugal c nostálgica, aureolada pelo arco-iris da agua borrifada pelos alcatruzes, os terraços sonhadores onde florescem espirradeiras c sangram bouganvillias, e esses cândidos ihuribulos do lar que são as airosas chaminés algarvias. Os grossos pilares que susten- tam as varandas do norte substituem-se por arcarias que a existência do tijolo e do barro torna de fácil cons- trucção, sendo ainda com tijolo que se revestem os pavimentos, se formam as abobadilhas de descarga das portas e janellas, os cellei- ros, as adegas, os fornos. Recortado, é um dos mais caracteristicos recursos de- corativos da região, empre- gando-se em frisos de cima- Iha, ameias, chaminés, pom- baes e nos arcos rendilha- dos das janellas em fer- radura; conjugando-se em graciosos desenhos, vê-se nas varandas, terraços, pla- tibandas e em certas janel- las recônditas, espécies de rótulas que lembram de longe discretos ralos de confessionário. O azulejo forma a percinta dos corredores com o desenho fresco e simples de faixa e contra-faixa, verde e branco; illustra a fron- taria com a imagem do santo padroeiro e reveste os alegretes do miradouro onde enrubescem as rosas do canniçado. Os tectos, sempre cobertos de telha curva, alvejantes de cal, ornamentam-se nas regiões de Aveiro, Coimbra, Thomar, na vasta zona estremenha e para além do Tejo, com figuras da olaria popular nas extremidades das empenas ou perto do angulo dos beiraes — leões heráldicos, perus, pombas, animaes fantásticos — e as pontas do telhado ergucm-se em bico, á chinesa, com telhas lanceoladas, recortadas como uma renda. As chaminés, sobretudo no Alemtejo e Algarve, são de uma infinita variedade, umas como EM VIANNA DO CASTELLO A habitação em Portuoral i55 minúsculos zimbórios de cathedral, outras com pilastras dóricas e cimalha clássica, outras cylindricas cingidas por calabres espi- ralados, outras encimadas por cúpulas aos gomos lembrando tur- bantes mouros, outras emfim em que o alvanel juntou argamassa e tijolo segundo os azares da fantasia, produzindo modelos iné- ditos de originalidade e de graça. O typo da habitação rural do Alemtejo é o monte, centro da familia agricola das vastas herdades da região, correspondente o PAÇO DB CALHE RO^ EM PONTE DE LIMA ás quintas ou granjas do norte e condicionado apenas pela diver- gência das suas circunstancias agrarias. Simples rés-do-chão es- tendendo em maior ou menor área o agrupamento das suas de- pendências quando do lavrador remediado, toma as proporções de uma villa quando na posse do landlord, que chega a fazer d'elle um palácio citadino com todo o luxo e conforto da habi- tação urbana. Intermédio, está o monte do agricultor rico, de há- bitos campesinos e casa farta, mas sujeito por tradição e gosto á simplicidade rústica do viver ambiente. Na monótona ondulação do pais alemtejano, no alto da lomba ou a meio da encosta, sob o reverbero inalterável da luz, os montes desenham-se em des- taque nitido, brancos como marabutos, desdobrando a horizonta- i56 A habitação em Portugal lidade das suas linhas e o leve pendor dos seus telhados fais- cantes, a cima dos quaes apenas irrompe o recorte geométrico da chaminé. O monte comprehende a casa de habitação do proprietário e o conjunto das dependências onde se guarda a alfaia agricola, se faz o queijo e se amassa o pão, e onde repousam os serviçaes^ os maltezes e o gado. Albergaria do caminheiro, do vagabundo, PACO DE CALHEIRO« O palheiro do monte offerece dormida e agasalho aos que o acaso, a rota ou a mendicância fazem passar pelo âmbito da herdade acolhedora. A sala de entrada, ladrilhada a tijolo, com o escrúpulo de lim- peza tradicional nesta região e que só tem paridade no asseio clás- sico dos interiores hollandeses, deslumbra com o polido refulgente do vasilhame caseiro, as cantareiras de louça, estanho, cobre, arame, que enchem as estanheiras pintadas de azul e branco. Os corredores, caiados como os dos conventos, com cotovelos e re- cantos, conduzem á sala de jantar e á larga cozinha, em cuja ampla lareira crepita perennemente, dia e noite, o lume de azinho A habitação em Portugal •57 c de sobro. Pelas paredes, o mesmo scintillante rcHexo de metaes brunidos que constituem o trem do serviço domestico e dos ga- nhões quando a cozinha é commum ; a um canto, o bojo do pote de barro, com o galbo clássico do dolútm romano. As demais de- pendências, a amassaria, queijeira, celleiros, cavallariças, palhei- ros, cabanas, agrupam-se em volta da habitação, formando assim um pequeno e alvejante burgo, ou destacam-se em maior área CASA RURAL DO MINHO I)'cstc lypo procede a casa do século xvii, com escada exterior parallela á frontaria c varanda alpendrada (gr. anterior) como factores municipes doeste pequeno mundo agrário. Ao lado a eira, em sitio alto e batido de vento para a limpa, mais além os vastos tanques para o gado, claros rectângulos onde o azul se mira, implacavelmente; a nora árabe ou a cegonha, ás vezes o aqueducto, por fim a horta e pomar, quadriculas de verdejante repouso no incommensuravel descampado da região. Nas villas e cidades, pelas múltiplas adaptações do seu viver, é impossivel reduzir a habitação a um typo ou typos que, mesmo differenciados nas diversas zonas do país, resumam a concor- i58 A habitação em Portugal dancia dos factores cons- tructivos e a variedade dos elementos ornamentaes. Pelas condições incessan- temente variáveis da exis- tência social com todas as suas imposições de luxo e conforto, pela infiltração cosmopolita e pelas cor- rentes da arte e da moda dia a dia renovadas, a ha- bitação urbana reúne um conjunto heterogéneo de elementos artisticos, su- pérfluos ou incompativeis com a habitação rural, ao passo que lhe faltam ou- tros, ás vezes de bem in- teressante cunho esthetico, inherentes á vivenda cam- pestre, á qual imprimem caracter e pittoresco. Foi nas cidades e villas que mais especialmente actuou a influencia dos architectos e alveneis que de regiões estranhas vinham, com CASA RURAL DO SUAJO D*oste typo procede a casa seguinie, do século xviii EM BRAGA — CASA DO FEITAL A habitação em Portugal i59 seus novos canons, proce- der á construcção dos edi- fícios religiosos ou dos grandes edifícios públicos; é, pois, nesses centros que em maior profusão ainda se conservam restos de es- cultura de pedra, de talha de madeira, de ferro for- jado, de bronze e muitas outras vinhetas illustrati- vas da habitação em Por- tugal. As escadas exteriores, e por isso os alpendres, tão typicas e lógicas no campo, appare- cem somente em uma ou outra casa primitivamente isolada e pouco a pouco cingida pela crescente invasão das novas edifíca- ções que lhe conquistaram a antiga área da cerca ou terreiro; c ainda se justifícam em algum largo tranquillo ou alameda um- brosa como as que, a datar do século xvii, se construiram em quasi todas as terras do país. As portas, rectangulares ou ogi- vaes, de aresta viva ou chanfrada, com alisares lisos ou historia- EM PONTE DE LIMA i6o A habitação em Portugal dos, as janellas de peitoril saliente, unas ou geminadas, com verga direita ou curva, de arco pleno ou polycentrico, as cornijas, os modilhões, as gárgulas, todos os trechos decorativos que davam physionomia á habitação portuguesa, são coevos, como disse, das formas de arte importadas, e ás quaes entre nós se im- primiram modificações re- gionaes, formas de arte que dominaram em certos pe- riodos da nossa historia. Essa lei observa-se desde a vetusta casa do senado de Bragança, que entesta com o primitivo românico, até ao desolador hybridismo da architectura contempo- rânea. E assim que certas villas e cidades do norte, \'ianna do Castello, Bra- ga, Guimarães, Miranda do Douro, Porto, Tranco- so, Coimbra, Thomar, ao sul Lisboa com os seus ve- lhos bairros de Alfama e Mouraria, e sobretudo a rica e archeologica Évora, nos dão, pela sua antigui- dade e resistência á inter- venção cosmopolita, uma das mais vivas impressões do viver archaico e dos re- cursos do constructor, que tenazmente alliava a tradição á novidade pela conservação tocante e ingénua de alguns rythmos do passado. Na ornamentação das nossas casas urbanas, uma das influen- cias mais remotas e persistentes foi a influencia mourisca, não só pela admirável mestria dos seus alveneis chamados a todo o país, como pela perfeição technica dos seus ensambladores, em todos os trabalhos de madeira. Rótulas de fusos esbeltamente torneados. CA onde também se vê a vivenda senhorial dos condes de Ca- co,MB.A-OsadcSub-Ripas Iheiros, avultando com so- I/O A habitação em Portugal berana linha solarenga no largo panorama de uma natureza ubérrima; as casas da Torre, cm Soutello, e a do Feital, ambas perto de Braga; com as proporções de palácio a sum- ptuosa vivenda de Matheus, solar dos Condes de Villa Real, e o palacete torreado da quinta do Freixo, na riba-Douro. Da architectura que no tempo de Luis XV reagiu contra o renas- cente italianismo, temos em Lisboa a fachada, cheia de côr, da casa da rua da Alfandega a que encosta a casa dos Bicos, o soberbo palá- cio da Mitra, no Campo de Santa Clara, e uma porta na travessa de André Valente. Do regresso ás formas antigas, e desse sóbrio e fino classisismo que foi a arte Luis XVI, existe em Queluz o bello exemplar que representa com distincção a modalidade architectonica do tempo de D. Maria L Ha annos, um dos nossos mais notáveis homens de sciencia, Ricardo Severo, mandou construir na tranquilla rua do Conde, no Porto, a sua casa de habitação, e como aquelle iilusire director FM L15B0A — Ao Conde Barão da Porivgalia possue, além de vastos conhecimentos archeologicos, uma delicada sensibilidade artistica, conjugou, adaptando-os á cons- trucção e condicionando-os ao viver actual, os mais encantadores elementos tradicionaes arrancados aos exemplares archaicos que A habitação em Portugal 171 restam do viver d'outrora: a es- cada exterior, de alpendre; as janellas geminadas pela columna dórica, de fuste gracil, com a cimalha saliente sobre misulas; a rotula, a janela de angulo, e deliciosas vinhetas comj o nicho, a meridiana, os poiaes para cra- veiros e mangericos, a veleta no ápice da empena, onde se recorta a carreira de um leão rompente. Reunindo a tradição ás imposi- ções modernas, não pretendeu exemplificar um typo histórico e invariável de habitação regional, mas reunir num schema do nosso tempo tudo o que as suas viagens pelo país lhe sugeriram de bello, de pittoresco e de lógico: é por isso um dos mais intelligentes tentames no sentido de dar á casa portuguesa sabor local, poesia c conforto. Não esqueçamos as sympathicas tentativas do archi- recto Raul Lino, e o projecto da casa 0'Neill, em Cascaes, repas- EM LISBOA — Casa dos bicos EM QUELUZ — A casa que foi do Marquês de Pombal 172 A habitação em Portugal sada de sabor histórico, devida á rica fantasia do distincto pin- tor Francisco Villaça. Para se completar o estudo orgânico da habitação portuguesa e d'ahi se poderem tirar conclu- sões de caracter genérico que nos habilitassem a unificar na varie- dade apparente dos aspectos ex- ^^^^«^^^^■B ternos os typos onde se surpre- B I^^EUlil^^^^k HÉ hendessem analogias estructu- B I^^BhÉI^I^^B seria preciso reproduzir um H i^^^^^^^^^^n conjunto de plantas que compre- H^^^^^^^^^^^^H hendesse todas variantes (pois Bi^^^^^^^^^^ que as fachadas são expressão da HibC. planta) e dar um largo informe EM viANXA DO ALEMTEJo sobrc as necessidadcs, os hábitos de vida e as tradições das diífe- rentes zonas do país. Não cabe tão ampla documentação, como logo se infere do fim que visa este livro, numa curta exposição descritiva em que deve accentuar-se o factor pittoresco e o ca- racter poético, — portanto de Índole bem diversa das memorias eruditas. UM MOKTE ALHMTEJANO O que poderia concluir-se doestas notas, um pouco esparsas, é que a habitação em Portugal não offerece um typo único, inva- -4 habitação em Portugal '73 riavel no tempo e no espaço, a que possamos dar a designação nacionalista de casa portuguesa. Bem pequena é a área do país, mas dentro desse restricto âm- bito, com a multiplicidade dos seus materiaes e do seu clima, surprehendem-se formas de tão flagrante differenciação, o homem por tão variadas maneiras tirou o seu abrigo das condições geo- lógicas, climatéricas e agrarias, que uma sinuosa cadeia se pode estabelecer entre os dois elos extremos: a casa pelasgica er- guida nas duras e ásperas re- giões graníticas, e os palheiros de pranchas levantados no chão movediço das dunas do litoral. Nas zonas de contacto, a habita- ção apresenta caracter misto; ao bloco junta-se a ripa, a taipa, a alvenaria remata o perpianho, e tudo se começa a adornar EM PORTALEGRE ALEMTFJO — Sempre noiva com particularidades decorativas que em nada perturbam a ex- pressão geral architectonica. '74 A habitação em Portugal Das condições geológi- cas deriva, como já accen- tuámos, a expressão ex- terna da habitação huma- na, e do encontro desta _ com o clima surgiram os • ^ . i \ recursos especiaes com ^ír que a egoista imaginativa do homem foi tornando MiRANFK DK Aí^ua dc Pcixcs acolhedor o seu rude, pri- mário abrigo. No solo tem o constructor de enraizar a casa não só pela imposição dos factores naturaes que se lhe deparam, mas pela maneira de os combinar e pôr em obra, afim de que o t\ po cons- tructivo não só caiba dentro da ambiência climatérica, mas se adapte á divergência das condições sociaes: preço do terreno, especialidades productivas, processos de cultura e recrutamento do pessoal empregado nas lavouras. EM VIANNA DO ALENTEJO — A ffUã de PciXCS A h.ibitação em Portugal 175 Desde o Tejo á extrema norte, na zona propria- mente continental, esses processos oscillam dentro de themas similares e d'isso a casa se resente, pois que para o amanho das terras é em geral suffi- ciente o grupo familiar com a adstricção permanente de restricta famulagem. É por isso que os aposentos se » ' " FM BOA reduzem em numero e a habitação se limita ao rés-do-chão para a alfaia agrícola, os celei- ros e o gado, e ao primeiro andar para o proprietário e a sua gens que frequentemente vive em promiscuidade familiar. É essa a casa portuguesa que apresenta menor numero de variantes e s^ estende ao Minho, Trás-os-Montes e Beiras, casa de escada exte- rior alpendrada, varanda saliente sobre pilares ou misulas a qual PAThO INTERNO DE Af^UJ dC PeiXCS lyó A habitação em Portugal ora deita para a rua, ora para um pateo rectangular onde secam as carradas de lenha. Na região alemteja- na, com a cultura antes ex- tensiva, a multiplicidade das industrias agricolas dentro do mesmo prédio, as col- meias de trabalhadores adventicios, o monte, mer- cê, alem doestes factores, do pequeno material e da facilidade do alargamento da área pela vastidão da propriedade, desdobra-se em evora geralmente em extensão li- mitando-se ao pavimento térreo em redor do qual se agrupam as demais dependências do cultivo. Na faixa algarvia, que são os Algarves d'áquem-mav^ a tradi- ção mourisca deixou, mais que em qualquer outra parte do pais, traços indeléveis de construcção local a que se prende a tradição horticola e a derivada das industrias da pesca. Do clima uniforme nasceram os elementos espontâneos que teem apenas emprego episódico no resto do pais : a casa de terraço, de arestas niiidas como um enorme dado de cal, de cuja linha superior apenas se levanta a delicada renda da chaminé ou o perfil da sotéa, como uma cabeça embiocada e curiosa que olhasse ao longe, para o mar de tur- quesa. O que nos últi- mos tempos se tem querido definir, abs- tractamente, como constituindo a ex- pressão regionalista da casa portuguesa, é a habitação de es- cada exterior encos- EM EVORA — As portas de Moura tacla a uma das la- CHAMINÉS DE A habitação em Portugal chadas do prédio ou caindo sobre esta perpendicularmente e coberta no patim do alto por um alpendre com tejadilho assente em colum- nellos dóricos ou jónicos. Effectivamente, é esta a varie- dade que, como já dissemos, com maior frequência se encontra nas regiões ruraes mais diver- sas, por ser talvez a escada exterior, além de outros motivos apontados, um recurso de construcção fácil e económica, facto que parece dar garantias sobre a remota origem desse typo, accentuando-se que é commum a toda a faixa mediterrânea, como se vê em pontos extremos, no sul de Itália e na Grécia. Nelles se filiam, como ficou exemplificado para o Paço de Ca- Iheiros e a Casa do Feital, alguns dos solares dos séculos xvii e xviii e muitas habitações da classe media no campo e nas cida- des. É por certo a que mais se coaduna com a uniformidade do nosso clima, sobretudo nas suas zonas temperadas, e aquella que abrange não só maior numero de exemplares ainda existentes, mas a que mais inalterável se conservou nas suas linhas geraes através das variantes da architectura civil nos períodos das gran- des correntes de arte estrangeira. Quanto ao pormenor decorativo, esse é que ofFerece uma abundante variedade de motivos locaes, e é principalmente a elle CASA DO 8R. RICARDO SEVERO NO TORTO (RUA DO CONDE y" CHAMINÉS DE FARO A habitação em Portugal que devemos ir buscar a pe- ' dra de toque de onde irradia j . a expressão regional da casa portuguesa, pois é elle que r^if^ ^y^ ' lhe imprime caracter e lhe dá f^ f %M ^^^^ nossa. Ora conservado « ^J ' nas camadas fundas do povo, ' ' e em reproducção perma- n y^-yr '. i ^ ncnte e fecunda elaboração nos seus ^ íí^ I objectos de uso commum, ora substi- ySif\ tuidu pela decoração erudita bem depressa modiíicada ao sabor das tendências estheticas do architecto local, o ornato é o elemento mais es- pontâneo e mais intimo da construcção domestica, impregnado de fantasia, de imprevisto, de risonha ingenuidade e sempre de graça ondulante e rythmica. Ao eschema regional, ás necessida- des elementares que eram os requisitos inherentes da sua cons- trucção, acrescentou o alvencl os elementos que a poesia do meio e a tradição lhe iam fazendo brotar da imaginação irre- quieta ; e é por isso que da casa portuguesa se evola um perfume que não reside só na forma, não se destaca apenas da linha, mas irra- dia de um conceito minús- culo, de um aspecto reca- tado e humilde, nimba a aresta de um telhado, sen- te-se ranger na veleta, rasga uma janella sobre a vida intima, evoca-nos o passado embalando a dor para que adormeça. Ora tudo isto nos faz sonhar porque é a poesia da nossa terra, a poesia do campo e da cidade, que nos lembra sempre, num sobresalto de nostalgia, os sonhos incubos da nossa infância, e nos unge com o refres- cante orvalho da pátria longinqua. COIMBRA — Lapide dos prédios foreiros ao Município no século xvi João Barreira. ARTE DECORATIVA PORTUGUESA ARTE decorativa andou em Portugal, como em todos os paises cultos da Europa, ligada aos monumentos. Flsta these seria trivial se não a completássemos, acrescen- tendo-a com outra subordinada : quando não havia ainda monumentos, haveria arte decorativa, em gérmen, ao menos? Onde e como se manifestou ? Os monumentos, ou corrigindo a expressão com mais pro- priedade, as construcções ornamentadas mais antigas que possui- mos, vêem-se ainda nos fragmentos architectonicos da Citania de Briteiros e de Sabroso, nas vizinhanças de Guimarães. Foram integradas com superior critério no claustro do Convento de S. Domingos, sede da Sociedade Martins Sarmento. Entramos, assim, num dominio decorativo anterior de algumas centenas de annos á arte dos Romanos. Porem, esse mesmo alfabeto artistico apparece na cerâmica prehistorica, desligado de qualquer monu- mento. E recuamos então novamente algumas centenas de annos; quantas? Ninguém o poderá provar por emquanto K i Cartaillac, Les *iges préhistoriques de lEspagne et du Portugal^ Paris 1886, p. 287 e seg. Pierre Paris, Essai sur l'art et Vindustrie de 1'Espagne primitive, Paris, 1903 a 1904, 2 vol. Sobretudo os capitules que comprehendem Varchitecture I 8o -^'^ decorativa portuguesa Os motivos da arte são muito variados, e abrangem a pedra, o barro, a lousa, os metaes preciosos. Alguém disse e demons- trou com autoridade incontestável que os primeiros elementos decorativos, os mais archaicos: os circulos concêntricos, a espi- ral, as covinhas isoladas ou agrupadas, a espinha de peixe ele- mentar, o lavor entrançado, os cordões, os ornatos cruciformes ou alveolares, etc, recordam a arte dos monumentos prehisiori- cos da Scandinavia e da Gran-Bretanha '. A semelhança de alguns motivos é perfeita ; outros lembram com evidente clareza as descobertas feitas pelo allemão Schliemann *. Separar esses motivos, classificá-los por períodos, determinar a sua procedência, com apparente exactidão, seria tarefa impossível por emquanto, e pouco uiil. E, porem, sobremodo interessante e instructivo observar a persistência e vitalidade d'essa arte, num período em que ella se achava reduzida a um campo limitado, vivendo somente em duas ou três industrias primitivas. O que todavia apparece como facto novo e surprehendente — e não foi ainda notado — é a persistência d'essa arte decorativa da Citania e de Sabroso, com todos os seus symbolos, até nossos dias, em dilTerentes industrias caseiras de primeira ordem, reatando o fio de uma tradição, duas, três vezes millenaria, com a mais escrupulosa exactidão. Pois o que são os jugos dos nossos bois, ora simplesmente lavrados com gravura linear, ora com entalhe fundo ou apenas superficial, ora tapados, ora vasados, monochromicos ou poly- chromicos, senão pedras formosas, a seu modo ? O que são as arcarias ornamentadas, no pórtico da Matriz de Barcellos, o conjunto decorativo (dúzias de motivos) de todo o templo de S. Pedro de Balsemão, a decoração em granito do Mosteiro de Travanca, ou os eflfeitos decorativos em tijolo nas (vol. i), la céramique e les bijoux do vol. ii, com uma extraordinária riqueza de illustrações. A obra alcançou o premio Martorell, (concurso de Barcelona de 1902). Só a cerâmica abrange 1 52 pag. em 8.° gr. 1 Id., ibid. 2 Id., todo o capitulo: Les Citanias et les villes fortifiées du MinhOy p. 272 e seg. Arte decorativa portuguesa i8i ruinas da igreja do Convento de Castro de Avellãs, senão archivos de desenhos para feitores de jugos populares? Quem foi mais fiel? — o architecto no grande monumento eru- dito e apurado, o mestre de obras na modesta capella de longínqua freguesia, ou o artifice popular, talhando o jugo com três pobres instrumentos: a goiva, a meia cana e o pé de cabra? Quem revelou melhor esthese ? A resposta é facillima. O oleiro, o ourives na filigrana, o feitor de jugos principalmente, para citar só três, revelaram-se os mais seguros e fieis adeptos da arte nacional. EUes nos conservaram o alfabeto de formas decorativas mais ri- co, mais variado, mais puro, mais genuino que uma na- ção pode apresentar. E sem receio de contradição se deve affirmar que ninguém nesse campo nos leva a palma ! Salve pois ! Obreiro das aldeias! Não te importes com as pretensões da outra gente que se diz artista, porque já acharam pouco o titulo que tiveram ainda teus pães, intitulados sim- ples artífices ou operários. Dos templos, uns cai- ram; outros foram detur- pados; raro é o que man- tém a pureza das suas linhas constructivas. A arte decorativa popular ficou, vive, floresce. Da ornamentação, nos grandes estilos eruditos, d'essa não fale- mos ! Ahi é que os restauros da moda, os estragos, a confusão foi enorme, perturbando a lógica mais elementar, o raciocinio esthetico mais necessário, supprimido ás vezes quasi o próprio os OIROS DAS MULHERES DO MINHO l82 Arte decorativa portuguesa senso commum em determinados centros de influencia, aliás pre- tenciosos. A applicação desordenada, chaotica, do estilo rocóco, tradicio- nal em Braga, imitado em nossos dias com o mais deplorável exagero, num rigorismo que assombra; o servilismo com que se repele na capital o chamado estilo pombalino, na habitação parti- cular, applicando a chalets um estilo feito para quartéis, secreta- rias e conventos banaes: estilo frio, monótono e pobre de ideias; a fúria insana com que se devaneia no moderno estilo manuelino, com dois elementos apenas: asymetria nas linhas constructi- vas e arcos polycen- t ricos — porque fauna e flora decorativa nin- guém as entende na ornamentação talhada à V aventure — são symptomas deplorá- veis de uma pobreza de ideias palpável, de uma orientação erra- da. E tempo de acu- dir com um conselho reflectido, fundado nas melhores tradi- ções nacionaes. Fe- lizmente, não nos fal- tam alguns artistas de bom critério, origina- lidade e fecundidade comprovadas. Come- çam a muliiplicar-se as obras bem pensa- das, obedecendo ás melhores condições technicas, accommodadas a um preço razoável, traçadas em obediência ás necessidades modernas, sem caírem nos excessos de estilo, que só por irrisão podiam baptizar como Arte Nova. Haverá suite, persistência nessa salutar reacção? os OIROS DAS MULHERES DO MINHO Arte decorativa portuguesa i83 Tudo depende de um conselho claro da critica, de uma regres- são salutar, não ao Passado, puramente, cegamente, mas sim ás fontes, ás genuínas fontes da inspiração nacional. K preciso senti- rem novamente, com o povo, as suas alegrias e as suas tristezas expressas em symbolos palpitantes como outr'ora, quando imagens valiam por lettras: in ipsa legitnt qui litteras nesciíntt. Mostrem-lhe as bellezas da sua pátria, da sua casa; honrem a poesia do seu lar ; venerem a sua arte, porque elle o me- rece; amparem as suas industrias caseiras, que ainda podem ser uma fonte de receita e de inspiração nacional. En- tre elles ha cantadof^es-im- provisadores; porque não haverá na arte decorativa popular o improviso fecun- do? Se quem canta, seus males espanta — quem de- buxa e esculpe e idealiza tanta coisa, é porque tem no coração a saudade de uma belleza entrevista em sonho, presentida, que lhe afaga e fecunda a imagina- ção. As fontes da inspira- ção popular nunca secaram. COBERTA DE URROS Quaes foram essas fon- tes ? Eis o que importa ave- riguar. Começaremos a reforma pelas artes decorativas ou pela grande arte, a arte j gA Arte decorativa portuguesa mãe, a Architectura, que em si reune, cncyclopedicamenie, todos os elementos? A segunda solução só é applicavel nos grandes centros, onde afflue o capital; e ahi mesmo vemos prevalecer os casarões (Avenida da Uberdade, em Lisboa!) cortiços enor- mes com mil aberturas, onde a colmeia humana, o inquilino, larga a pelle, o seu dinheiro, explorado pela usura de qualquer grande mestre de obras que traçou o fino plano. Ao contrario, a arte da provincia fez produzir maravilhas artisticas, em terras onde não havia nem mármores raros, nem escultores pretencio- sos, nem pintores ou scenographos exóticos. Com uma simples alvenaria — (porque a cantaria é ahi, no Alemtejo, supérflua, luxo da mão de obra) — e sobre ella um reboco de cal, económico, encobrindo o opus rusticum; com o tijolo applicado em formas e feitios variadissimos, surprehendentes \ semeando aqui e acolá com discreta parcimonia uma janella geminada, com columnellos de mármore branco de permeio; realçando a arcaria com tijolo recortado e tingido a ocre vermelho; numa palavra, com os ele- mentos mais económicos, tirados exclusivamente dos recursos locaes, realiza-se um prodigio decorativo. O mesmo sgi^affito, importado da Itália talvez no seculc xv, mantendo ainda hoje motivos tradicionaes de uma elegância e distincção raras, em Évora e Beja, mas já esquecido em Coimbra, onde teve e tem bellissimos exemplares históricos — o sgraffito nacionalizou-se, a ponto de ser um encanto de toda a vida eborense, até na casa apenas remediada. E uma das formas mais expressivas e mais económicas da decoração portuguesa exterior, ainda hoje. Quem inspirou ali o artifice? Quem animou o seu collega, estucador de Aflife (\'ianna do Castello), cuja reputação de arte, 1 Em 1882 {Cerâmica, serie 11, pag. 27, nota 2.») sublinhei a importância do tijolo antigo, como elemento decorativo, em todo o Alemtejo. José Queiroz (Cerâmica Portuguesa, Lisboa, 1907, pag. 2()9, capitulo Tijolo)^ a quem recom- mendei o assunto, illustrou-o lindamente. O grande industrial Almeida Costa (Fabrica das Devezas, em Gaia) provou praticamente nas suas edifícações de Gaia e do Porto (Rua de D. Carlos) que a applicaçáo decorativa do tijolo se presta a innumeras e surprehendentes ornamentações na architectura moderna. Vide ainda ; A cerâmica applicada ás construcções^ Lisboa^ 1907 na Biblioiheca de Jnstrucçáo Profissional. Ahi mesmo reproduziu a bellissima construcção do Visconde de Sacavém, em Lisboa (Rua do Sacramento), com os merecidos louvores ao fidalgo de bom gosto, que foi arrojado industrial. Arte decorativa portuguesa iS5 RENDAS DE PENICHE bom gosto e geito lechnico é prover- bial? Ás escolas não devem nada. A tradição para elles — alemtejano e mi- nhoto — é tudo, na officina caseira que, transmittida de pães a filhos e a netos, mantém uma technica primorosa. A familia Meira, hoje com officinas em Vianna, de onde é natural, no Porto, em Coimbra e Lisboa, é um exemplo eloquente da transmissão de aptidões artisticas, sobremodo honrosas. Ampa- remos pois por todos os modos o lavor domestico, as industrias caseiras, res- peitando os direitos históricos adquiri- dos, saneando os mercados de venda, repellindo a usura e as imitações es- trangeiras. Centralizar, com a fé num qualquer typo ou modelo de organiza- ção francesa, allemã ou inglesa, é as- phyxiar uma vitalidade preciosa. Fala-se tanto — tem-se falado de mais — na criação da Casa portuguesa, com decoração própria, original, que já ninguém se entende no meio de tan- tas receitas e alvitres. Cada provincia tem felizmente o seu typo. Procurae-os. Como pretendeis pois apregoar uma formula, um padrão único? Os mais caracteristicos estão por essas estradas fora ; são producto espontâneo popular, original, sem a menor intenção de o ser, simples e convincente, porque são sobretudo exemplares económicos, cla- ros e apropriados ao fim pratico. Teem por fundo uma paisagem que prima pela belleza; nella vive uma raça pri- vilegiada, fecunda pela prole abun- dante com que povoa o Reino, gente videira, económica, robusta, no meio de uma existência frugalissima; infatigável como o boi I 8(5 Arte decorativa portuguesa minhoto, que ella considera o seu melhor amigo e alliado. Para elle o melhor logar da casa, o mais agasalhado no inverno, o mais fresco no verão; para elle a alfaia mais adornada, mais cara, mais vistosa — o jugo incomparável. — Neste capitulo o lavrador, aliás ultra-poupado, não pensa em economia; ahi mantém um verdadeiro culto; á menor doença chama-se o doutor, corre-se á botica, longinqua e careira, sempre pesada á magra bolsa do lavra- dor. Gasta-se com o boizinho aquillo que se regateia á mulher e aos filhos, em doença ás vezes grave. Em torno doesse jugo e com a mesma technica, precisamente, manteve-se uma decora- ção caseira que dá grande realce ainda a outros moveis de uso pessoal do lavrador. Vi em Trás-os-Montes e no Douro peças de mobiliário cober- tas de desenhos lavrados com o entalhe obliquo^ o qual nos paises septentrionaes da Europa: Allemanha, Suécia, Noruega, Dina- marca, Hollanda, etc, resuscitou ha uns vinte annos sob o nome Kerbschnitt, com uma voga excepcional. Vi lambem nessa mesma região, e ainda na casa rústica, typos variados de mobilia torneada (castanho) no estilo da Renascença flamenga e hoUandesa, muito notáveis, extremamente sólidos, re- sistindo aos peores tratos, apesar de vários séculos de existência. Porquê? É fácil explicá-lo. A sua construcção é perfeitíssima. Não teem prego, nem colla; todos os elementos estão ensam- blados com o maior apuro. A mesma perfeição, o mesmo cuidado se revela na factura do vasilhame de cozinha. E certo que os vasos de cobre, caros, mas quasi eternos, tendem a desappare- cer. Faz pena porque, sob o ponto de vista da technica, são per- feitos; tudo é batido a martelo primorosamente, soldado com arte eximia, decorado com motivos tradicionaes preciosos. Vale tanto essa Dinanderie como a serralharia, pois a obra de ferro, toda forjada, batida sobre a bigorna, ostenta formas, desenhos e ornatos que nos transportam aos séculos xiv, xv e xvi. As grades antigas de grande estilo, nas casas abastadas — (poucas eram ha vinte e sete annos, quando em 1881 as desenhámos; hoje são raríssimas) provam que em Trás-os-Montes se ligou grande im- portância á obra do ferreiro e serralheiro. Estas officinas viviam ao lado da loja do amieiro e espadeiro; lidavam com gente nobre; dahi a riqueza com que os fidalgos e burgueses abastados ornavam as varandas de suas casas e pa- Arte decorativa portuguesa 187 lacios, as reixas de suas capellas mortuárias em Braga, Lamego, Bragança, Évora, Elvas, Borba, Villa Viçosa, etc. Em todas essas localidades, recolhemos desenhos preciosos. Os pequenos centros da provincia rivalizaram com os lavores das grandes cidades. A obra moderna de serralharia em Lamego, Trancoso e Celo- rico (gradeamentos dos cemitérios) dá ainda hoje na vista, sur- prehende, encanta nos padrões. A enorme grade do cemitério de Celorico, um primor de arte, deve-se a um modesto serralheiro BAHU DE COIRO LAVRADO, MODERNO — PortO da terra. E um prodigio e custou Soo^rooo réis 1 1 Outra, de mérito quasi igual, no cemitério de Trancoso. Repetimos: o estilo d'essas grades de cemitério, grimpas de torre, gaiolas de sinos, cruzes funéreas, impõe-se, nos padrões grandes e nos minimos. Em Coimbra reappareceram nos últimos annos lavores que annunciam uma nova Renascença, graças aos esforços do Sr. António Augusto Gonçalves, antigo Director da Escola Industrial Brotero e restaurador benemérito da Sé Velha de Coimbra, artista de óptima raça c organizador da officina conimbricense, em novas bases. Elle tem como poucos a intuição clara, o sentimento arraigado, a convicção profunda da valia do operário popular. Sabe, ha muito, de onde vem e para onde vae; e com elle caminha ha 3o annos o operariado de uma cidade inteira. A Escola Livre das Artes do Desenho de Coimbra, que igg Arte decorativa portuguesa já festejou as suas bodas de prata, modestamente, em silencio recolhido, mas em trabalho sempre fecundo, deu o exemplo, antes do Governo intervir no ensino das artes decorativas com tentati- vas, apalpadelas e contradições. Ahi, como na capital, foi a inicia- tiva particular quem deu o exemplo, o modelo para as suas orga- nizações. Em Lisboa, a Escola Rodrigues Sampaio é anterior a todas as tentativas do Ministro, aliás benemérito, António Augusto de Aguiar (i883j. A Escola Livre de Coimbra ainda é mais an- tiga! O Sr. Gonçalves não promoveu só essa arte da serralharia artistica, decorativa, de que estamos falando; agrupou em torno das ofíicinas da Sé \'elha, restaurada por iniciativa de um Pre- lado eminente, grande e generoso, á moda dos Almeidas, dos Castello-Brancos e dos Mellos — uma serie de industrias de arte, que posso e devo classificar como modelares, porque é elle o pri- meiro que trabalha e maneja os instrumentos, como maneja o seu seguro, fecundo e enérgico lápis. Assim, os effeitos são visi- veis, palpáveis, gloriosos; ennobrecem uma cidade e honram o país ! II A arte decorativa seguiu na architectura profana e religiosa iguaes destinos ao principio. Não temos espécimes da decoração românica, mas ha-os nos códices membranaceos castelhanos {códice Vigilano, séculos xi-xii; no Libro de los Testamientos, na cathedral de Oviedo, principios do século xii ; na Biblia, de Ávila, século XII ; no Libro de los juegos, de D. Aflfonso, O Sabio^ fins do século xiir, etc). E toda a razão ha para suppor em Portugal uma arte irmã. Comparando, por exemplo, o ultimo doestes códices com as illuminuras que illustram o Cancioneiro da Biblio- teca Real da Ajuda, facilmente se conhece que os nossos artistas se inspiravam dos modelos vizinhos, mormente da arte que dominava na corte de D. Aflfonso, O Sábio, avô de El-Rei D. Dinis, de quem foi padrinho, protector e conselheiro. Isto já eu demonstrei com documentos, os próprios decalcos do Cancioneiro citado, tirados em 1877 e remettidos ao meu illustre amigo Fer- dinand Denis, que com esses e outros documentos meus compôs Arie decorativa portuguesa i3q uma boa parte da memoria sobre os antigos pergaminhos iilumi- nados da litteratura portuguesa *. Em Coimbra conservaram-se até cerca de 1862 restos muito notáveis de pinturas muraes, a fresco, na igreja românica de S. Christovam, que certamente se relacionavam peio estilo com a arte da illuminura nacional, como foi observado em Espanha. Quaes foram dentro da época românica ^ (séculos ix-xni), os elementos componentes da decoração interior ? Sobresaem quatro : 1.® A pintura mural ai fresco. 2.^-3.® O mosaico, juntamente com o azulejo. 4.® O lavor multiforme do alfarje. Já dissemos como em Coimbra se conservou, até 1862, um preciosissimo resto de pintura a fresco, do século xii, na crypta da igreja românica de S. Christovam, destruida vandalicamente, para dar logar ao Theatro D. Luis I, que também jà desappa- receu, como obra banal, de fancaria, que era. Tinhamos ahi um typo de decoração interna valioso, caracteristico e bem conservado, segundo o testemunho de pessoas que o admiraram, quando o templo foi demolido -. Ninguém, na douta, culta, sabia e pre- I Introducção histórica ao Missal de Estevão Gonçalves. De la peinture des nianuscripts iUustrés en Portugal. Paris, Macia édíteurs. Sem data. Vide também a monographia do Visconde de Santarém : Notice sur guel- quês mannscripts remarquables par leurs caracteres et par les ornements dont ils sont embellis. Paris, s. d. Não traz anno, mas as Notes additionnelles, ainda mais raras do que a Notice, teem a data 24 de abril de i835. O estudo de Esteves Pereira no Occidente (revista illustrada), sobre os ma- nuscritos illuminados portugueses, ou existentes em coUecçóes portuguesas, é muito deficiente. Basta recordar que lhe falta toda e qualquer referencia á arte dos nossos vizinhos, que são riquissimos ainda e originaes na sua technica. Sempre a mesma muralha da China, na fronteira de Portugal, para estes senho- res, nacionalistas inconscientes 1 O Visconde de Santarém não procedeu d'este modo, no mesmo assunto, ha sessenta annos. Para que servem então esses exemplos illustres ? 3 Com esta designação entendemos uma classifícaçao que, por falta de espaço, não podemos justificar aqui. Esse serviço foi feito em outro logar, com ampla documentação. (Revista do Porto : A Arte, «Ensaio sobre a architectura românica em Portugal», anno iv, n.® 3j e seguintes). 3 A. Felipe Simões, Relíquias da architectura romano-by^jfantina, cita as pinturas e dá a planta da egreja destruida. igo Arte decorativa portuguesa sunçosa Lusa-Athenas, teve a lembrança de tirar um simples esboço das pinturas da crypta. Com os frescos combinavam-se os mosaicos de que em toda a peninsula hispânica ha trabalhos nacionaes importantissimos, começando pelas bellissimas obras polychromicas de Gerona e Tarragona (Museu archeologico d'esta cidade ; collecção do Conde de Belioch, cêrca de Gerona, etc, etc). O Museu Archeologico do Carmo (Lisboa), o Museu Archeologico e Ethnologico de Be- lém, differentes museus de provincia (o do Instituto, em Coimbra; da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães ; os da Figueira, NO DUSSACO — Lavores embrecliados Santarém, Beja, Evora, etc; vejam-se os valiosos Boletins dos mesmos museus) podem apresentar documentos de valor, desde os mosaicos romanos de thermas celebres (no Minho, Caldas de Vizella e das Taipas ; no Douro, recentes descobertas de Entre- os Rios; na Estremadura, em todo o Alemtejo e Algarve, segundo as explorações de Estaco da V^eiga). Do mosaico ao azulejo vae um passo somente, bem curto, como é fácil demonstrar em toda a arte árabe, pois os azulejos peninsulares mais antigos dos séculos ix e x (Córdoba, na mes- quita), são de facto um mosaico ainda e não uma combinação de chapas, inteiriças, nas dimensões normaes de o'",i3. Logo voltare- mos a este elemento decorativo, de capital importância em toda a peninsula, em todos os tempos, até nossos dias. Arte decorativa portuguesa \ q j Sendo o azulejo, desde a sua apresentação no Oriente, como o foi o tijolo vidrado, polychromico, equivalente a um tapete, a um tecido, traduzido em cerâmica, para encobrir material de valor intrinseco secundário, é evidente que a transição de um para outro ramo da arte decorativa é natural e impõe-se ao histo- riador. Deixemos, porem, por emquanto o azulejo, o tijolo, e o tecido, para nos occuparmos do alfarje, que verdadeiramente devia abrir a serie, visto que é o elemento constructivo, por excellencia, em toda a habitação peninsular; d'elle depende tudo o mais-, a elle convergem todas as concepções do decorador medievico e do da Renascença. Elle, o alfarje mourisco, mantém o seu triumfo durante todo o século XVII e cria ainda maravilhas no primeiro terço do sé- culo xviii, no meio da tyrannia do estilo rocôco, e apesar da omnipotência da moda, que fez da solemnidade faustosa, mas pe- sada, da habitação portuguesa, um arrebique casquilho. Graça, a graça inconfundivel, o donaire perfeito dos decoradores fran- ceses, uma legião de artistas ! raras vezes o teve esse rocôcó *, mormente trabalhando o granito; e no granito cifram-se ires quartas partes do lavor nacional nesse estilo. Foi preciso que o estilo pseudo-classico, que em Portugal vigorou até i83o (e cor- responde rigorosamente ao estilo Luis XVI de França) começando cerca de 1780, no reinado de D. Maria I, viesse reacordar a graça, a elegância, o discreto bom gosto e o conforto da casa moderna ; viesse restabelecer as honras da sciencia do desenho, sciencia que o bom Francisco de Hollanda deixara adormecida, como a «Menina branca de neve» da lenda allemã. Esse estilo fez escola, nobilitou o gosto decorativo nacional, mas foi, infelizmente para a maioria das classes abastadas, apenas um episodio da moda, não um propósito esthetico, claro e definido, um programma para > Um exemplo rocôco puro, que nos satisfez plenamente, como uma re- cordação do que vimos de mais bello em França — mas esse espécimen é em madeira, não em pedra ! — encontra-se no Santuário (Casa das Relíquias) do convento de S. Francisco de Alemquer. Não tem par em todo o Reino, a guar- nição dos armários envidraçados. Parece o boudoir de uma Rainha ; e Rainha foi a fundadora (D. Beatriz, segunda mulher de D. AíTonso III). 192 Arte decorativa portuguesa Vida nova na Arte. Esse estilo subtil e perfumado, cheio de che- rubins e de cupidos, coroado de trofeus galantes, decorado de festões de rosas, de emblemas pastoris e de boninas, colhidas nos prazeres campestres e nos rende^-votis amorosos, vive hoje só para os bibliophilos, em meia dúzia de livros muito raros, que constituem o nosso capitulo de livres à gi^avures. Aqui entramos num dominio novo, não explorado ainda pela erudição nacional. O lavor do alfarje ou almocárabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, d^sde a con- quista árabe até ao primeiro terço do sé- culo XVIII. Não ha exemplo de tenacida- de, de vitalidade se- melhante ! Em todo o revestimento interior das grandes e peque- nas moradas, dos tem- plos majestosos, das ermidas e capellas mais modestas que so- bem pelas grandes serras do Reino ou se escondem nas que- bradas umbrosas; em todas as salas e gale- rias dos Paços régios, bem como nos corre- dores dos conventos, ou ainda nas aulas dos collegios semi-secula- res — por toda a parte registei o triunfo indis- putado d^essa grande arte, que mestres mou- riscos nos ensinaram. tono DA IGREJA DE S. BENTO DA VICTORIA (pORTO) Arte decorativa portuguesa jq3 Mas não é só a carpintaria de construcçao em que elles nos ins- truíram maravilhosamente; é o próprio mobiliário artistico, fixo e volante, que lhes deve os segredos de uma technica surprehen- dente, ainda hoje louvada e admirada por todo aquelle que a soube descobrir e estudar em exemplares autênticos, quer na cidade, quer na villa, quer na mais insignificante aldeia, pois a difficuldade está nisso, em segui-la até ás camadas populares, hoje em dia. Mesmo quando a obra de talha da segunda metade do sé- culo XVII attinge os effeitos mais theatraes — o de um scenario de opera archi-faustosa, fantástico, é fácil encontrar no remanso de uma sacristia, no segredo de uma vestiaria, uma obra rara do alfarje, occulta modestamente, consolando o visitante. Está ali escondida, em bellissimo estilo, recordando-nos a boa tradição de séculos passados, por assim dizer uma Renascença posthuma ! A technica é, porem, sempre mosarabe. Ha mais de trinta annos que estou chamando a attenção dos estudiosos para este ramo, outrora frondosissimo, da arte deco- rativa peninsular, nacionalizando o termo technico sob a expres- são laço (em árabe ajaraca), laçaria, lavor altcatado. Em 1882 citei a fonte de estudo capital, o compendio theorico e pratico de toda essa maravilhosa arte mosarabe ', o tratado: Carpintaria de lo blanco y tratado de alarifès, de Diego Lopes de Arenas (I.* edição, i633); 3.* ed. Madrid, 1867, por D. Eduardo de Maria- tegui. Temos esta á vista. Que importa que o dominio árabe terminasse em Portugal com a conquista do Algarve em i25o, se a influencia do génio artistico d'essa raça nacionalizada no solo peninsular (o mou- risco) continuou até á conquista de Granada (1492) e perdurou mesmo até ao primeiro terço do século xvu, até á expulsão defi- nitiva dos mouriscos, sob o governo de Felipe III (1609); se emfim > Havemos encontrado em Portugal differentes exemplares annotados da edição de 1727. O Sr. António Moreira Cabral, distincto bibliophilo do Porto, possue um. Temos presente a edição moderna, annotada, de 1867^ que per- tence á serie Biblioteca dei arte en Espafta. No Commercio do Porto, a propósito da Exposição de Cerâmica Nacional, apontámos em 1882 para a excepcional importância d'este compendio de carpintaria. i3 194 Arte decorativa portuguesa O ensino nas escolas de artífices e nas officinas avulsas se man- teve rigorosamente dentro da tradição mourisca, pois o Arenas continuou a ser reeditado pelo século xvni adeante ? ! ' O alfarje é uma arte complexa, com processos technicos especiaes ; complexa, porque abrange no systema do traçado geo- métrico não só a carpintaria, mas todo o mobiliário, o azulejo, o lavor variadíssimo de estuque, emfim: grande parte da obra de ferro e aço, sec- ções importantes da cerâmica, da ourive- zaria e da obra es- maltada. No sentido restricto da carpinta- ria de construcção, que prevalece em toda a habitação humana^ é a arte que ensina a traçar, enlaçar, em- butir as listas, faixas, fitas ou bandas, que ora cobrem de figuras estrelladas os apo- sentos interiores, em superfície corrida ou interrupta (alisares, taboleiros das paredes, frisos, nichos, etc), ora pendem dos tectos, formando estalactites; é a arte da alxamia, que produz os adornos pendentes de desenho polygonal; é, emfim, a arte ALMOFADA DE PENICHG > A influencia do Arenas é reconhecida pelo eminente pedagogo espanhol Borrei), no seu esplendido Tratado de dibujo. Madríd, 1866-1875, obra em 3 volumes, foi., que muito honra a sua patría e é uma verdadeira encyclopedia das artes decorativas. A Espanha teve mesmo antes do Arenas um outro livro celebre, com a apologia da officina : Bienes de el honesto trabajo y danos de la ociosídady por el P. Pedro de Guzman. Madrid, 1614. (Nossa collecção). Sobre a Bibliographia da arte e das industrias em Espanha temos publicado elementos importantes desde 1886. Colleccionámos para nosso uso muitos dos volumes d*essa copiosa e honro - sissima bibliographia, que debalde se procurarão nas Bibliotecas publicas mais ricas de Lisboa, Porto e Coimbra. Arte decorativa portuguesa iq5 que criou as cúpulas de construcção alveolar, as feéricas arma- ções que recordam as scintiilações do céu estrellado '. Se houve arte decorativa original, peninsular, e por isso tam- bém portuguesa, foi a do al/arje. Se os nossos antiquários sup- põem uma influencia d'essa arte, menos evidente entre nós do que em Espanha, enganam-se. Até ha pouco, elles nem sonhavam com o alfarje; se algum citou o tecto da cape lia de Cintra foi para o classificar erradamente de árabe fsicjj como sendo o da antiga mesquita dos paços árabes, quando elle é mourisco, e pertence incontestavelmente ao principio do século xvi ^. O pavimento cerâ- mico da capella, no seu género também lavor de alfarje, esse será talvez do fim do século xiv ou principio do século imme- diato. Enganam-se os archeologos nacionaes, porque não conhe- cem do país senão meia dúzia de localidades, accessiveis por meio de commodas linhas férreas; enganam-se duas vezes, por- que teem deante dos olhos uma espécie de muralha da China, que começa para elles na raia de Espanha. Desde 1881 andamos registando pacientemente e desenhando as reliquias do alfarje, da arte mosarabe ^ entre nós. São ainda numerosas e muito no- I Boirell {op. cit,) traz os variados processos de construcção, engenhosíssi- mos, das abobadas ou coberturas alveolares (vol. 11 est. 40 e 41). Elle em parte completa, em parte resume, outras secções do Arenas, mais prolixo. Vide lam- bem Mariátegui, Glosario de arquitectura y de sus artes auxiliares. Madrid, 1876; emíim, o recente estudo de António Prieto y Vives: «Apunies de geo- metria decorativa : Los mocárabes», na revista Cultura espanola, Madrid, 1907, n.*^ 5. O termo — leia -se : almocárabe, 3 Conde de Sabugosa, O Paço de Cintra, Lisboa, igoS, com desenhos de Sua Majestade a Rainha. Ahi vêem desenhos do tecto e do pavimento em mo- saico, de tijolo vidrado, polychromico. Vide, emíim, o nosso Ensaio : A Cerâ- mica portuguesa e sua applicação decorativa. Lisboa, junho de 1907, na «Biblio- teca de instrucção profissional». 3 Já em 1882 prometti um estudo intitulado : «Reliquias da arte mosarabe em Portugal (Cerâmica portuguesa). Serie 11, pag. 34». O douto escritor Maria- tegui (GlosariOf pag. 85). chega a definir o lavor de alfarje, com o próprio termo mo^árabes, assim: «Labores en forma de lazo çon que se adoman los paiíos, racimos, cubos, tirantes, etc, de los techos de alfarje — Del árabe al-mor- cabaçuy e em outra citação : «moçarabes ó mozarabes Uamaban á los techos de maderas dorados que despues se Ilamó artesonado». Cita depois documentos de 1 540 e 1 542 e dá os desenhos. 196 Arte decorativa portuguesa taveis; o que era, ao prin- cipio, um documento artís- tico, raro, uma excepção, é hoje um valioso thesouro! * Resumindo, porque o ca- pitulo sobre o alfarje, seria hoje interminável, a sua te- chnica perdura ainda; em Coimbra reproduziram ha annos a reliquia da Sé Ve- lha, citada em nota, com toda a perfeição. Uma ex- posição de desenhos e pho- tographias d'esses lavores » Falla-me o espaço para enu- merar e commentar a valia das descobertas. Tudo é inédito. Ha obra de alfarje notabilissima em Ceia (Palacete Motta Veiga). O tecto da sala maior d'esta casa do século XV, era uma copia rigo- rosa do grande salão do paço dos Duques do Infantado (Mendozas) em Guadalajara. Desenhámo-la em 1881 ; foi destruído. Ha ali mais quatro tectos de obra de alfarje, muito notáveis. Outro tecto precioso existe em Coim- bra (descoberta do Sr. A. A. Gonçalves). O tecto da matriz de Caminha é incomparável, uma maravilha. Desenhámo-lo nos me- nores detalhes, em 1881 e 1882. É mais conhecido o alfarje que cobria o tecto inferior do antigo coro da Sé Velha de Coimbra, com data de 1477. Foi apeado para ser applicado nas obras novas do Paço do Bispo. Já citámos o tecto da capella do Paço Real de Cintra ; ha outro idêntico na capella do solar dos Duques de Bragança em Villa Viçosa. Ha obra de alfarje em quasí todas as egrejas e capellas semeadas pelas duas vertentes da Serra da Estrella (valles do Mondego e do Zêzere). A abun- dância de boa madeira de castanho na dita região, outr^ora, favoreceu alli a arte do carpinteiro-decorador. CORO DA IGREJA DA MADRE DE DEUS (XABREGAf) Arte decorativa portuguesa 197 impõe-se. Por quasi todas as freguesias da Biira, desde os pequenos templos da primeira e segunda metade do século xvii e principio do século xviii; j desde a laçaria mais simples, schema de du^is /j ou tres estrellas, formada de polygonos enlaçados ou sobrepostos e armados sobre outros tantos pares de tirantes (réguas) parallelos, até á deslumbrante armação pseudo-gothica de 171 1 S do antigo Palácio dos Peixotos-Padilhas em Lamego 2, temos uma serie ininter- rupta de obras de arte que documen- tam de um modo brilhante, surprehen- dente a vitalidade da tradição mosarabe em Portugal, o vigor ingenito de um officio privilegiado, a tenacidade, o me- thodo, a virtude em summa, de um en- sino que resiste a todas as influencias das modas exóticas importadas. O car- pinteiro português quis ser e foi sem- pre até meado do século xviii (a 2.* edi- ção do Arenas o prova) fiel depositário, honestissimo obreiro de uma arte an- cestral, digna de figurar ao lado e em concorrência com os primeiros modelos estrangeiros. Note-se que a par d'esse lavor mosarabe na madeira corre parallelo o lavor da Renascença. Pondere-se que as novas formas da arte antiga renascida foram familiares ao carpinteiro-cons- NA MADRE DE DEUS > A data está no pórtico da entrada, sob o brasão de armas. 2 Por esta obra de talha, posta num palácio que ostenta no brasão da en- trada a data 171 1, offereceu certo súbdito inglês, que foi lá levado por um fidalgo português, a quantia de tres contos de réis. É um prodígio de execução e, o que é raro ao mesmo tempo, um primor de bom gosto, com eminente eflfeito deco- rativo, com uma sciencia^ uma arte tão segura, tão bem ponderada na gradua- ção do relevo que denota um mestre perfeito. Está na cor natural do castanho, fosca, numa tonalidade quente, harmo- niosa e foi restaurado com muito critério, por ordem da Direcção do Banco, por j Qg Arte decorativa portuguesa tructor; mas, por mais bellos que pareçam esses productos assi- milados da arte italiana, não sofifrem comparação com o almocá- rabe mourisco. Seria fácil provar pelo mobiliário fixo : cadeiraes, arcazes, armários e caixas de órgão, retábulos de altares e púl- pitos, gradeamentos e cancellas, guarda-ventos e confissionarios — lavores que se apresentam muitas vezes datados, que elle carpin- teiro-constructor riscou para o seu collega, o entalhador, primores da arte da Renascença; mas tudo isso fizeram igualmente bem artífices de outras nações — o alfarje só o temos nós e a Hes- panha ". Não acabaria com este capitulo tão original da arte deco- rativa portuguesa, se a minha attenção não fosse solicitada por duas variantes da obra de madeira: a talha combinada com a pintura, e a talha combinada com a obra de torno. Tratemos da primeira. São os revestimentos das abobadas formando caixotões, em que a moldura é talha, ás vezes riquissima, o fundo pintura his- tórica ou allegorica, sempre variada. O pintor neste caso é mais um scenographo que aspira a produzir um efifeito decorativo, a distancia, a instruir como num livro aberto; ao passo que o seu collega ornamenta os retábulos pintados dos altares com mais um artista popular de Lamego, que sem cultura, sem escola, executa esponta- neamente o mesmo lavor hoje em dia ! Quem tal obra fez inventou uma planta geral e risco todo mosarabe, baseada sobre dez polygonos hexagonaes de formas muito alongadas que produzem o singularíssimo effeito de um artezoado de abobada gothica, estrellada, desenhado sobre as faces internas de uma py- ramide hexagonal truncada, que forma chapéu sobre a sala. O recinto deverá ter 10 a 12 metros quadrados. Outro aposento menor, contíguo, apresenta ou- tro tecto também artístico, mas mais simples. Em Viseu, na Guarda, em Bra- gança, em Amarante, em Coimbra, Braga, Tagilde (Guimarães), etc, vi também exemplares notáveis, mas o de Lamego não tem par, no Reino ! É um traçado gothico em 1711 ! » É mosarabe e em parte alfarje, mas com variante sensível na technica, o gradeamento das varandas, com adufas, rotulas^ etc. As adufas da região de Trás-os-Montes são muito notáveis (Villa Real, Mirandella, Murça, Bragança, etc). Ha até typos de frontarias inteiras, gradeadas em Braga, Guimarães; não havia outrora mirante de convento que não tivesse os elegantes gradeamentos no Norte do país, os quaes correspondem aos gradeamentos de tijolo ornamental àjour, nas casas religiosas da Estremadura e do Alemtejo. Arte decorativa portuguesa Iqq cuidado, com os últimos primores do pincel. Todos os templos do meado do século xvii em deante apresentam em Portugal essa obra realizada com o auxilio de duas artes. Não é combinação nova, a composição da obra de talha com a obra de torno, mas é engenhosa. As camas de lavores fusifor- mes, de columnas torcidas, coroadas de bilros, são puramente obra de torneiro; o entalhador raras vezes intervém. Ha ahi muita applicação de desenhos e padrões do chamado estylo indo- português, mal definido ainda; como é sem duvida indo-português o lavor acharoado (vermelho e ouro, ou preto e ouro *) com mo- tivos chineses, que teve immensa voga no reinado de D. João V» aypos: órgão da Capella da Universidade e a própria Biblioteca, ahi mesmo). Mas são de muito mérito alguns exemplares do mo- biliário nacional em que o entalhador e o torneiro se combinaram harmonicamente. Um púlpito de i58o-i6oo, na egreja de Santa Maria de Almacave (Lamego), é a este respeito, uma obra prima. O lavor de tremidos^ de que tanto se tem abusado nas imita- ções modernas da obra antiga, desfiguradas ainda em cima com ferragens, de fancaria, não tem importância, nem valor quando applicado, sem outro elemento decorativo, assim como a obra de torno só, isolada, cansa e fatiga com o seu aspecto pesado. E preciso variar, combinar esses diflferentes processos technicos, com o alto e baixo relevo, as molduras de variadas grossuras e perfis; attender ao justo equilibrio das superfícies lisas e lavradas; fazer intervir a ornamentação dos embutidos a marfim, das ma- deiras finas, a uma e mais cores (intarsia)^ as applicações do mosaico chamado florentino (mármores de cores), etc. Na obra moderna do coiro lavrado teem os nossos artifices attingido, ás vezes, os primores dos mestres antigos. Ha, comtudo, muito exa- gero na technica. Se a talha puramente decorativa já era uma especialidade em que se executaram verdadeiros prodigios de 1600-1700, o azulejo decorativo — que chamaremos de tapete, o tecido traduzido no barro, sob mil padrões, ou o quadro sacro e allegorico do agiolo- > Ou então: verde, preto e ouro com realce branco (S. João de Tarouca). 200 Arte decorativa portuguesa gio nacional, assumiu proporções que o tornam uma manifestação única. São a gloria da nação portuguesa, que nenhuma outra lhe pode disputar nos séculos xvn e xviii, .quaesquer que sejam as condições em que a critica apresente o problema a jul- gamento. Comparem os nos- sos melhores espécimes com as decorações mais aprimo- radas que as nações cultas — começando pela grande e fecunda mestra, a Itália — inventaram para a pintura a fresco, e a victoria será nossa. Ahi, no azulejo de Évora, de Beja e de Estre- moz, de Lisboa e do Porto, de Alcobaça e de Coimbra, de Refojos do Lima, de S. João de Tarouca, de W- seu e de Lamego, de Gui- marães e de Braga, de Vianna e de Barcellos — citamos ao acaso, porque seria preciso contar todas as grandes cidades e todas as villas, as mais obscuras e recônditas aldeias, todas as quintas e solares, as her- dades, capellas e cruzeiros mais modestos ! — tudo e todos, do Norte a Sul, da raia de Espanha até ás ro- chas escarpadas do Atlân- tico, dos pincaros do Minho aos promontórios do Algarve, tudo proclama ao mundo que houve um impulso artístico irresistível no povo português, comparável nos seus resultados ás mais bellas manifestações da grande arte. O azulejo foi a imitação de um quadro, ou a copia de um te- cido, substituiu um e outro, ou ambos ao mesmo tempo, quando Azulejos das paredes e decoração do lecio Arte decorativa portuguesa 201 se apresentou como o mais beilo panno de raz, com todos os ca- racteres da grande decoração mural. Conservou-nos a imagem da vida portuguesa, fielmente, todo o encanto do lar, do nosso interior, a poesia da nossa vida mari- tima, as aventuras da guerra, as tragedias do mar, os jogos da infância, os cuidados e as alegrias do campo, os primores da corte, o idillio amoroso, a lenda dos santos, o milagre das romarias, as sortes das touradas, o sabor do conto popular. Se quereis estudar as artes decorativas — ahi as tendes no mais solido e seguro documento, na linguagem cerâ- mica, como num livro inexgota- vel e . . . como se fosse pouco, o que o próprio livro, impresso, produziu, o que elle soube ins- pirar. Já atrás alludimos ao livro de imagens — o termo é tradu- zido da expressão : livre à figii- res, tão conhecido dos verdadei- ros bibliophilos. Parece, pelo silencio dos nos- sos eruditos, que tal espécie não existiu entre nós, ou foi indiffe- rente para os destinos, para a historia das nossas artes deco- rativas. Puro engano! Desde o sec. XV, desde os incunabulos, desde a Chronica do Mundo, de Hartmann Schedel, com as in- numeras illustrações (cerca de 2:000 1) de Wohlgemut (mestre de Diirer ) e de sua escola ; desde a encyclopedia illustrada que correu mundo nos séculos xv e xvi em numerosas edições, sob o titulo Margarita philosophia' ; desde esses pesados in-folios e in-quartos, até os minúsculos volumes que os Quilhard, os Debrié e os Bartolozzi illustraram, para os nossos poetas da Arcádia e para as almas devotas dos outeiros freiraticos, até ás novenas impressas e aos livrinhos de missa de uma Theresa Angélica da Silva, Princesa Real que escondeu o seu TALHA GRANDE DA FABRICA DO RATO 202 ^^^ decorativa portuguesa fino buril sob o veu do anonymo, houve sempre inspirações para a Arte decorativa, dentro do dominio da Imprensa ' . Não é possivel no limitado espaço de que disponho (e que mal chegaria para fazer bem a historia documentada de um só ramo da arte decorativa) dar uma relação aproximada d'esses livros de figuras, onde os gravadores-decoradores nacionaes (portugueses e espanhoes) deixaram archivadas as suajs pièces d'oi^emeitiSy suas gravuras decorativas.' Esses maitres ornemanistes da peninsula foram por mim estudados cuidadosamente desde 1877. Comecei nos depósitos das Bibliotecas reunidas das Necessidades e da Ajuda, ainda na gerência de Alexandre Herculano, que me facul- tou hospitaleiramente os seus aposentos de bibliothecario, junto ao palácio da Ajuda. Explorei depois esse riquissimo thesouro durante longos annos, como se fosse a minha própria Biblioteca, porque a confiança que em mim depositava o primeiro empre- gado, 2.® official Rodrigo Vicente de Almeida, aliás rigoroso no cumprimento das suas funcções, como todos sabem, não tinha limites. Estes estudos conduziram naturalmente ao exame da Historia da gravura em madeira e cobre portuguesa e da lithographia na- cional, á organização de uma coUecção que reputo única, no Reino, e á colleccionação dos livres à figures, portugueses. Em publi- cações successivas, desde 1877, tenho chamado a attenção dos amadores sobre o assunto que constitue verdadeiramente a docu- mentação mais autentica da historia dos mestres decoradores (maitres-oiyiemanistes) em Portugal, nacionaes e estrangeiros, porque estes últimos prestaram-nos grandes, incontestáveis serv-i- ços. Bastará recordar os nomes que figuram acima no texto. Não deve perder-se isto nunca de vista. Primeiro os allemães e os franceses nos incunabulos (séculos xv e xvi) ; depois esses mes- mos, os flamengos puros e os flamengos-hispanizados (dominio de Espanha em Flandres) durante todo o século xvii (Pedro Perret, I Os paragraphos que vão ler-se em seguida são extrahidos de dois capítu- los extensos de um volume, note-se bem (lllustraçao artística do livro nos sé- culos xv-xvm sob, o ponto de vista decorativo; e de outro volume: Historia da gravura em madeira e em cobre, em Portugal), iniciados na Ajuda, em i877«. Arte decorativa portuguesa 2o3 Noort, Heylan, Vilia Franca, Schorquens, etc), a que vieram jun- tar-se os ingleses (Biling, o nosso Belingue, Dudley), guiaram os mais notáveis gravadores nacionaes, com o esplendido Agostinho Soares — aliás Floriano — á frente. Os serviços de celebres gravadores franceses: Rochefort, Picart, Quillard, Le Bouteux, os Debrié são menos ignorados. As publicações da Academia Real da Historia que hombreiam, sob o ponto de vista typographico, com as mais perfeitas da França e Itália no século xviii; os primores da Officina Real Syl- viana e da Officina Real da Musica de Fernandes Gayo são um encanto, por exemplo na obra: Uoannes Portugalliae reges ad vipum expressi, Calamo a P. Emanuele Monteyro; Coelo a Guil.® Franc.® Laur.® Debrie. Parisino Régio Calcographo. Ulyssipone. Anno ciD idcc xlii foi». Pode rivalizar com essa obra a seguinte que até a pre- cedeu : Ultimas acções do Duque (de Cadaval) D. Nuno, por seu filho D. Jayme de Mello. Lisboa, lySo, na Officina da Musica, in-fl. gr. com retrato e 28 estampas, alem de grande abundância de vinhetas. Os artistas que figuram no precioso volume são: Quilhard (pintor) e Harrewin (gravador). É uma das publicações mais esplendidas que conhecemos da época de D. João V, que certa- mente não foi avara em magnificências typographicas. Finalmente : ao terminar o século xviii o celebre Bartolozzi e a sua escola evocaram a arte elegante, decorativa do Império e o estilo de Luís XVI, o qual precedeu o gosto da era de Napoleão I e foi ainda o herdeiro d'ella e das modas da grande Revolução até — cerca de i83o. A escola portuguesa que se criou á volta de Bar- tolozzi e na celebre officina do Arco do Cego, aperfeiçoando-sc em Roma, legou-nos alguns livros deliciosos, mas de mérito des- igual, porque no mesmo volume trabalharam ás vezes buris des- iguaes. {Noites Josephinas, de Mirtilo, Lisboa, 1790). Seria preciso citar uma ou duas dúzias de volumes. De entre a nossa collecção escolhida lembraremos somente os tomos do Theatro de Ma- nuel de Figueiredo, os dois grandes libretos illustrados da Opera, chamada do Tejo (reinado ainda de D. José). Deveríamos ter começado com o rarissimo Manual de Orações para assistir ao Sacrijicio da Missa, composto e aberto ao buril por Theresa An- 204. ^^^^ decorativa portuguesa gelica da Silva » (Lisboa, 1732), volumezinho que é quasi um mysterio, um enigma da Corte de D. João V. Depois, seguir pelos livros illustrados de festas e exéquias regias, nos reinados de D. Pedro II, D. João V e D. José; passar em seguida ás obras de calUgraphia — ás t Artes de ler e escrever» do século xviii, pri- morosamente illustradas, delicia do bibliophilo em qualquer pais! Finalmente, para sermos methodicos, teriamos como remate os poetas da Arcádia e suas obras profusamente illustradas, fina- mente commentadas ao buril, invenções ás vezes de mediocres poetas (não offendemos com isto a ingénua memoria de Manuel de Figueiredo) servidos por gravadores eméritos ^, Quasi lhes invejamos a sorte, hoje, no século dos processos technicos requin- tados, em que uma graphia prodigiosa nos deslumbra, mas não faz » Sobre a autora-gravadora e o seu raríssimo livrinho, todo gravado a buril (i58 pag. em 32."; creio que o meu exemplar é único, presentemente) vide Innocencio da Silva, Diccionario bibliographico, vol. vii, pag. 3 16. O meu exemplar tem uma historia muito curiosa. Foi da Infanta a Sr.* D. Maria Anna, filha de El-Rei D. José, que nasceu a 7 de outubro de 1786 e falleceu no Rio de Janeiro a 16 de maio de 181 3. Deixou nome, como artista amadora muito distincta nas artes do desenho e da musica. 2 Eis as datas de alguns livros com gravuras decorativas de grande mérito, datas tiradas dos próprios originaes, que possuimos : Albergaria, Tropheos Lusi- tanos, Lisboa, iò3i ; Methodo lusitanico de desenhar as fortificações , Lisboa, 1Ó80, por Serrão Pimentel; O engenheiro portugue^, Lisboa, 1729, por Azevedo Fortes, em 2 vol.; Exame de bombeiros, (artilharia), Madrid, 1748, por Pinto Alpoyra; Exame de artilheiros, pelo mesmo, 1744; Divertimentos militares, 1762, anonymo; etc. As relações de exéquias, casamentos e outras testas come- çam com as do embarque da futura Rainha da Grã-Bretanha D. Catharina, filha de D. João IV, em 1661, continuam com a pompa fúnebre da Rainha D. Sofia Isabel de Neuburgo, em 1699 (2.* esposa de D. Pedro II) e vão até D. João VI. Os tratados de desenho portugueses, muito bem illustrados no século xviii, foram citados por mim, já em 1879 em obra impressa nesse anno. Conteem muitas gra- vuras de grande interesse. Finalmente, os tratados de calligraphia são, alem dos de Barata (século xvi, contemporâneo de Camões), os bellissimos volumes de Manuel Andrade de Figueiredo, s. d. 1722 ; Ventura da Silva, i8o3 ; as Regras methodicas do mesmo autor, 1819. Em torno das obras do poeta Figueiredo ha uma multidão de gravadores portugueses de grande mérito, como os ha nas obras de Luis Rafael Soyé (Mirtilo). Só as Noites Josephinas, com as suas 20 gravuras representam 10 gravadores; O Sonho, do mesmo autor tem 16 gravu- ras e 1 retrato : os gravadores são Debrié, Le Bouteux, e A. Quillard ; O Elo- Arte decorativa portuguesa 2o5 olvidar o amoroso instincto artístico que guiou vossa mão, a vós, alumnos académicos do Arco do Cego, pensionistas da Escola Portuguesa de Roma, hoje olvidada! Numa arte rara, como é a da gravura em madeira e em co- bre, e como foi depois a lithographia, houve em Portugal sempre, um pincel, um buril, um crayon fecundo, que ainda hoje admira- mos no segredo de uma escolhida livraria, á luz de um velho candieiro português, com a saudade indizivel do passado e a es- perança no porvir: Co*o tempo o prado seco reverdece, Co'o tempo um louro morre, outro florece. Porto, março de 1908. Joaquim de Vasconcellos. DESCRIPÇÂO DAS ESTAMPAS CONTIDAS NO ARTIGO PRECEDENTE Ourivesaria. — Peças de uso exclusivamente popular. Technica da fili- grana tradicional. Pertencem a uma collecção de photographias que mandei executar de 1879-1880 e deviam enriquecer uma obra do calligrapho Godinho sobre os trages populares das províncias portuguesas. Appareceu apenas um fascículo. giOf da Sereníssima Senhora D. Maria Barbara, Princesa de Portugal e Rainha de Espanha, por Manuel de Figueiredo, Lisboa, 1804, é um primor de gravura e desenho em que collaboraram Bartolozzi, o celebre D. A. de Sequeira e ou- tros ; e pára concluir vejam-se as gravuras de José Teixeira Barreto nos Sckerp poetici, de Rossi; existe um exemplar na Biblioteca Real da Ajuda, onde abundam os livros dos Maitres-ornemanistes, a começar na Hypnerotomachia de Polyphilo (Veneza, 1499) que ali descobrimos em 1877, exemplar perfeitís- simo, hors ligne. 2o6 '^'■'^ decorativa portuguesa Havia acceitado a redacção de um capitulo sobre a arte popular e sobre as industrias tradicionaes das nossas aldeias. Outros redactores eram Theophilo Braga e Ramalho Ortigão. N." 7. Grande grilhão com esirella pendente (Cruz de Malta), ou em logar d'esta, o grande coração, que está na parte superior. N.** 8. Brincos lavrados em relevo, ocos, batidos sobre forma ; simulam cachos de uvas. N.*" 9 e 10. Argolas lavradas em relevo; mesma technica; uma d'ellas está de frente, a outra em perfil. N.«> II. Fio de contas torcidas. N.» 12. V\o de contas lizas. N." i3. Grilhão mais grosso que o n.<» 7, com medalha pendente, e ao cen- tro um Senhor pregado na cruz ; dos lados a Virgem e S. João ; o fiindo era folheta metallica luzente, cor de purpura. A parte superior, espécie de sobreceu tinha ao centro Nossa Senhora da Conceição e rematava com uma coroa real. A technica d*esta peça, já difficil de encontrar em 1879, apresenta o lavor de piorrinhaSy variante preciosa da filigrana popular, que tem ido desappare- cendo das peças de ouro e de prata, pois é muito mais diíRcultoso do que a filigrana de fio tirado, puramente. N." 14. Crucifixo; o resplandor esta trabalhado em piorrinhas. N." i5. Argolas massiças de filigrana, com beira lisa. N** 16. Brincos de filigrana, com argola lisa. N.» 17. Broche usado ainda em 1879, indistinctamente por homens e mu- lheres. N." 18. Borboleta, de filigrana (também as vi antes de 1879, de folha de ouro, orlada só de filigrana) que se usava pendente de um cordão fino. A bor- boleta é apenas, na forma, um coração invertido ; e, como tal, tem significação symbolica. Tecidos. — (Industria domestica). — Arte popular. Urros (concelho de Moncorvo. Technica : Relativamente perfeita, num tear muito rude, cujo typo authen- tico pode ver-se no Museu Industrial e Commercial do Porto. Urdidura de linho grosso com trama de lã, puramente. Ha exemplares muito raros, em que sobre a urdidura de linho se estabe- lece a trama de seda ordinária amarella (barbilho)^ espécie de seda frouxa. O tinto é formado com cores vegetaes exclusivamente (neste caso, azul escuro) e resiste muito á acção dos raios solares. Polychromia adoptada : vermelho, verde, amarello, alem do branco e azul. Estylo : Tradição sem duvida oriental, como tenho verificado escrupulosa- mente. No seu género, são modelos admiráveis. Como desenho representam verdadeiros improvisos, pois as tecedeiras de Urros não teem nenhum ensino de arte. Rendas. — (Industria caseira). — Arte popular. Peniche. Technica : Excellente, feita com bilros e linha nacional. Typos de Peniche. Arie decorativa portuguesa 207 Pertencem aos annos de 1880-1 885, antes da creação da Escola de desenho industrial D. Maria Pia. Amostras apenas de uma grande coUecção de rendas nacionaes de bilro, que representa uns 600 padrões (Vianna do Castello, Villa do Conde, Peniche, Setúbal, etc), cedidos pelo autor ao Estado, e coUeccionados de 1876-1889. A grande travesseira (o,G8xo,56) pode considerar-se a obra mais per- feita que se fabricava em Peniche cerca de 1880. Valor: i3í!y55oo réis. Pro- priedade do Sr. Dr. Pedro Augusto Ferreira, Abbade aposentado de Mira- gaia (Porto). Não ha renda de agulha em Portugal, na industria popular. Estylo: A renda de Peniche foi influenciada notavelmente pelos padrões irlandeses (guipure)\ os padrões de estylo francês (século xviii) são mais raros; são apenas o primeiro e segundo da estampa inferior. Obra de ooupo lavrado. — Esta industria de arte resurgiu, moderna- mente, no Norte do país ha cerca de vinte annos; no Porto, principalmente, trabalhavam e trabalham ainda alguns artistas de muito mérito. Comtudo for- çam, não poucas vezes, a technica, e prejudicam o effeito decorativo. A casa Silva Rocha^ do Porto, vendeu essa obra ao Museu Industrial e Com- mercial do Porto num anno (1889) em que apresentou umas malas de grande lavor em estylo manuelino, de gosto duvidoso por vezes, com scenas mariti- mas, etc. Houve até quem se deleitasse, encommendando e pagando retratos em couro, fingindo baixos relevos. . . As grandes malas mandadas por Silva Rocha á ultima Exposição de Pa- ris (1900), ostentando as maiores âorescencias manoelinas, venderam-se só em pequena parte. A maioria foi para o fundo do mar, com o celebre vapor Saint- Jacques, que reconduzia os productos portugueses, não vendidos. Obra de moealoo. — É do primeiro terço do século xvii, a obra de embrechado, mais antiga, do Convento do Bussaco. Como lavor, é sobre- modo característico e muito nacional. O effeito é magnifico, com recursos minimos. Modernamente tem esta ornamentação sido applicada em grande escala nos passeios de Lisboa (Avenida da Liberdade), com bom resultado; e maior sería, se o desenho dos padrões escolhidos fosse mais artistico. Ceramioa. — Azulejo polychromico, simulando tapete. Escolhi o revestimento da sachristia da Sé de Vizeu, porque neste recinto se conbina, de um modo admirável, a pintura de arabesco, decorativa, sobre madeira de bordo (fim do século xvi) com a decoração cerâmica e com o azu- lejo puramente ornamental do primeiro terço do século xvii. O effeito é prestigioso, quando se considera a ríqueza da grande pintura em tábua, da Escola do Grão- Vasco, onde brilham admiráveis estofos, em parte ainda guardados nos magnificos arcazes, que não são o menor encanto doesse discreto e harmónico aposento ! Compare-se esta obra com a da sachristia monumental da igreja de Santa Cruz de Coimbra (1622), em que rivalisa a escultura decorativa da 2o8 ^^^ decorativa portuguesa abobada, em pedra de Ançã (um primor), com o azulejo polychromico de tapete nas paredes, com a obra de talha do mobiliário e com a suave harmo- nia das tábuas do pintor Velascus. Comparem-se esses dois aspectos com o espectaculoso apparato scenico, theatral da sachristia da Sé do Porto I Peça grande, decorativa, nacional, inédita, da antiga Fabrica Real do Rato (ultimo terço do século xviii), a maior e mais importante que ella produziu. É uma talha de faiança decorada sobre fundo branco, com flores, estylo oriental, com as cores: azul, verde, amarello e roxo. Marca : FR, Fabrica Real, sobre monogramma de Thomaíj; Brunetti. Altura: o",94Xo^,535 de diâmetro. Pertenceu ao Marquês de Pombal e estava em 1886 ainda na Quinta de Oei- ras. Foi arrematada no leilão do Conde de Mozer por 82^000 réis e pertencia em 1895 ao Sr. Carlos Ribeiro Ferreira, de Lisboa. (Communicação de José Queiroz). J. DE V. BREVE NOTICIA ARCHITECTURA EM PORTUGAL UANDO no meado do século xii Portugal se separou da monarchia leonesa, já na Europa se definira organica- mente o typo de architectura conhecida no nosso tempo sob a designação de architectura românica. Caracteri- zada nos seus grandes monumentos pelo emprego systematico da abobada, da qual deduz os elementos da sua estructura geral, foi assim denominada por Caumont, em i825, pois este archeologo a considerou como dimanando da architectura clássica por pro- cesso análogo ao que fez derivar do latim as linguas chamadas românicas. Começando a organizar-se depois do anno looo, talvez ao sul da PYança onde se conservara a tradição da abobada antiga, facilmente se espalhou por toda a Europa christã na sua grande zona Occidental, sendo a peninsula hispânica a região onde mais rapidamente penetrou, mercê da influencia clunysiana e do grande numero de conventos pela famosa ordem monástica estabelecidos áquem dos Pyrineus. A Espanha christã comprehendia então uma grande faixa que ia do Tejo ao Ebro e cuja orla oscillava segundo os azares da reconquista, soffrendo por vezes entalhes furiosos da gente sarra- cena, os quaes, posto que ephemeros, bastavam para a destrui- 2IO A architectura cm Portugal ção radical dos monumentos recentemente construídos. É por isso que da phase pre-romanica não ha, pelo menos na região do no- roeste peninsular, monumento digno de nota, e forçoso se torna ir bus- car a urigejn dos exisicn- tes^ apesar ái\s .sluls particularidades I( ícaes, ás escolas de arte que na Europa criaram o novo typo architectonico, entre nós implantado em virtude do facto religioso. No periodo indeciso de formação da nacionalidade portuguesa, dado que as formas estheticas se manifestam independentemente SÉ VELHA DE COIMBRA A architectura em Portugal 21 I das modificações politicas, o conjunto de monumentos sobre que tem de recair a observação do archeologo, existentes ainda hoje na zona de Entre-Douro-e-Minho, pertencem ao grupo que pode- TRAVANCA — Interior da igreja conventual mos denominar gallecio-português, pois accusam na estructura e na ornamentaria um reticulo de influencias estendido áquellas duas provincias, ainda apenas esboçado, mas cuja genealogia se fará com maior clareza quando a documentação plástica se CLAUSTRO DE CELLAS 212 A architectitra em Portugal TORRE DA SÈ DE ÉVORA completar com a informação histórica. Não cabe nas dez ou doze paginas d'este artigo a investigação de taes filiações nem o estudo da acção que as grandes cathedraes tiveram sobre os pequenos monumentos: basta que assinalemos o facto para mais tarde o justificarmos em maior espaço e com mais vasto in- forme. A primeira phase da architectura portuguesa corresponde, pois, ao româ- nico, e como esta expressão constructiva durou na Europa o curto espaço de i5o annos, os monumentos da nova nacionalidade nasceram quando lá fora começava a desenhar-se a cruz de ogiva e a esboçarem-se os primeiros traços da architectura gothica,— facto este que circunscreve o românico português a um período , de meio século. Effectiva- mente, a cruz de ogiva, ou artesoado gothico, apparece com grande precocidade em monumentos do começo da monarchia. A architectura românica portuguesa, na sua forma integral, isto é, em edifícios de três naves abobadadas, reduzia-se ás Sés de Bra- ga', Porto, Lamego, Goim- I Em Braga, Porto, Travanca, Pombeiro, Lamego e Lisboa, já não existem as abobadas româ- nicas; no entanto, ou nunca existissem ou fossem derruídas, é certo que todos os seus elemen- tos orgânicos tendem á existen- sÉ DE ÉVORA cía d'aquella coberturà. A architectura em Portugal 2l3 bra, Lisboa e Evora, e ás igrejas conventuaes de Travanca e de Pombeiro. Os numerosissimos edifícios d'este estilo, mas mais modestos, disseminados pelo país, teem cobertura de madeira, e são em geral de uma só nave. A sua ornamentação obedece ás fontes de inspiração que Gourajod lhes assinala com lúcido crité- rio, e que são as influencias clássicas, b} santinas, gaule- sas e irlandesas, chegando as três ultimas, pela sua preponderância, a expulsar completamente a decoração greco-romana. Acrescente- mos os motivos locaes que o alvenel da região ingenua- mente applicava, por tradi- ção ou por gosto, facto de resto commum a todos os períodos da historia da Ar- te. A fauna e a flora são orientaes, trazidas pela cor- rente b} santina aos portos do Mediterrâneo ou pelos povos septentrionaes atra- vés da zona das caravanas ; a ornamentação geométrica reproduz os themas dos objectos de adorno dos po- vos nórdicos, cinturões, pu- nhos de espadas, fibulas, themas caldeados pelos illu- ministas irlandeses, e mes- clados com motivos gallo-romanos, de cujo hybridismo irrompe ás vezes a linha simples da sereia hellenica. Estes ornatos reves- tem capiteis e archivoltas, modilhões e gárgulas, e circundam por vezes com seu macabro enredamento o tympano dos portaes onde se agrupam os elementos ingénuos do symbolismo christão. O luxo decorativo dos edifícios românicos comprehende, alem do portal, fortemente escavado na frontaria, com as curvas de- crescentes das archivoltas assentes em duas renques de colum- IGREJA DA GBACA EM SANTARFM 214 A architectura em Portugal nelos, a diversidade dos capiteis, de plástica rude no duro granito do norte e do Alemtejo, mais delicada na região do calcareo, a ornamentação fruste dos tympanos, e alguns informes e raros exemplares de escultura em vulto. Começando este simples relato pela zona que no despertar da nacionalidade devia ter soffrido a influencia dos sanctuarios galle- gos e leoneses, teríamos naturalmente a citar a Sé de Braga, se A BATALHA as successivas mutilações lhe não tivessem reduzido os elementos românicos a alguns vestigios da porta principal, á porta sul, des- locada do primitivo logar, e a alguns modilhões e gárgulas. Mas em volta das reliquias da Cathedral bracarense, nos concelhos de Guimarães, Povoa, Villa do Conde, Barcellos, Santo Tirso, ha toda uma colmeia de pequenos edifícios românicos, quer de uma só nave, de abside ora rectangular, ora semi-circular com abo- bada em quarto de esfera ; quer de três naves, com ou sem tran- septo. A sua disseminação faz-se depois em linhas divergentes, no sentido da região portucalense (Aguas-Santas, Cedofeita), para nordeste até Chaves (Granjinha, Outeiro-Sêco), para Bragança A architectura em Portugal 2l5 (Castro de Avellãs), para o Douro (Cette, Paços de Ferreira), para sueste até Lamego, subindo depois até á Serra da Estrella. Outra zona de influencia comprehende Coimbra como centro, Thomar, Leiria (igreja de S. Pedro), Santarém (Alporão), Lis- boa e Evora. Das igrejas que constituem aquelle primeiro agrupamento, uma das mais curiosas a citar é a conventual da Travanca, perto de CASTELLO DC I.OaiA Proiccto de restauração do Sr. Korrodi Amarante, de tres naves talvez primitivamente abobadadas, com arcos quebrados de saimeis levemente inflectidos, particularidade que os aproxima dos arcos mouriscos em ferradura. A fachada accusa as tres naves interiores, a do meio mais alta com janellas lateraes (clerestory)^ ligada por uma espécie de botaréo a uma torre de vigia em cujo portal se repete o arco quebrado, de duas archivoltas estranhamente decoradas com animaes que se perse- guem e se devoram, cingindo o tympano onde o cordeiro pascal segura a cruz numa das patas. Alem doesta igreja, e também de tres naves, posto que sem abobadas, temos a citar a interessan- tíssima de S. Pedro de Rates, de bello portal com tympano escul- 2l6 A architeciura em Portugal pido exterior e interiormente, archivoltas historiadas, capiteis de variadissimos motivos e um tramo do lado da epistola onde appa- rece o artesoado gothico como um prenuncio da passagem ao typo definitivo da arthitectura medieval. Passando pela Sé do Porto, onde as successivas restaurações alteraram a primitiva traça, temos a descrever, ainda que succin- tamente, um dos mais bellos e nobres monumentos do românico peninsular, não só pela admirável ryihmica das suas linhas, pela sua soberana estructura orgânica, mas pelo seu magnifico estado de conservação, levado ao primitivo aspecto por uma restauração intelligente e amoravel : a Sé Velha de Coimbra. É um edifício de planta crucial como os seus congéneres, de três naves todas abobadadas, a central soerguida acima das lateraes, e ornamentada por uma esbelta galeria de triforio. As três naves terminam por três absides semi-circulares, correspondendo a do centro á capel- la-mór, onde se admira um dos mais bellos retábulos de talha go- thica que existem na peninsula; e as lateraes respectivamente á capella de S. Pedro, lado da Epistola, e á dos Apóstolos, lado do Evangelho. A fachada, cujo corpo central avança sobre os late- raes, demarcando assim a triplice nave, corôa-se de ameias como uma torre de menagem e apresenta nas suas proporções um mixto de força e de elegância, de sobriedade e de côr, como raro se encontra em edi- fícios onde concorram tão simples elementos ornamentaes. As suas grandes aberturas historiadas são o rico portal, thema decorativo fun- damental do corpo saliente, e a janella que sobre elle se rasga em proporções elegantissimas. Nos corpos lateraes, ao rés-do-chão, as setteiras, que escassamente illuminam as naves corresponden- tes; em cima, ao nivel do trifo- rio, duas pequenas janellas ge- minadas e flanqueadas cada qual por duas arcadas cegas, o que s. joáo de ™omar A architectura em Portugal 217 põe uma discreta nota de còr na silharia nua dos corpos rein- trantes. Caminhando para o sul, temos em Thomar um monumento antes de caracter bysantino, semelhante a certas capellas italia- nas e rhenanas do período carolingio: a charola do Convento de Christo. Igreja dos Templários, a sua construcção obedece a padrão exótico e consta de um octogono de arcos exalçados, acima dos quaes se rasgam outras tantas frestas de arcos de três lóbulos ; do octogono central irrompe uma abobada em berço que o liga a um octogono circundante, formando este o sobranceiro períil que domina a cumiada histórica onde se acolheu Gualdim Paes. S. João do Alporão, em Santarém, é um dos mais vene- randos monumentos da região do centro; de faseies exterior ro- mânico, definido na rosácea e no portal de archivoltas em arco pleno, é já coberta por uma abobada ogival, talvez posterior á fundação, de nervuras firmadas sobre misulas da mais engenhosa estructura: troços de cor- nijas onde pousam os ca- piteis e que aos ângulos se embebem na parede á maneira de trompas. A capella-mór, semi-circular, de abobada exalçada e ner- vada, illumina-se por fres- tas que se rasgam entre os columnellos, constituindo ao fundo uma encantadora galeria aberta, que prende esta parte do edificio ao typo dos baptistérios by- santinos. Na região alemtejana merece especial menção a Sé de Évora, a qual pelo emprego quasi systematico do arco quebrado, tanto nas suas aberturas como nas suas abobadas, vem BATALHA - Poita dus capciíus impcrfoitiis sendo considcrada como 2l8 Á architectura em Portugal CALDAS DA RAINHA um monumento gothico. A fachada tem todo o aspecto grave e robusto dos edifícios românicos, com duas tor- res salientes, entre as quaes se lança um terraço, que constitue, sobre o portal, uma galilé esteada em cruz de ogiva. As torres, com aberturas de meio ponto e arco quebrado, coroam-se de lindos coruchéus, o do norte formado por um simples cone azulejado, o do sul constituido por cone semelhante circundado por uma theoria de peque- nos pináculos, reduzido exemplar do altaneiro zimbório do lanternim cen- tral. A porta, á sombra da galilé, en- riquece-se com o apostolado, massiças figuras de caracter româ- nico, encostadas aos fustes das columnas, com os disticos e os gestos da sua funcção evan- gelizadora. Esculpidas em |^' Hilfinft mármore, a sua brancura destaca vigorosamente so- bre o tom escuro do gra- nito. Por cima do terraço ras- ga-se um Janellão que illu- mina o coro e a nave central, dividido por co- lumnellos em quatro janel- las geminadas, sustentando as do meio uma rosácea simples. Pelas cornijas de todo o edifício corre uma linha de ameias do modelo usado em quasi toda a re- gião alemtejana. Interiormente divide-se em três naves, com a abo- bada central mais alta, de batalha -Parochia de d. Manuel A architectura em Portugal 219 arco quebrado, galeria de triforio e clerestory; as abobadas late- raes são de aresta, do typo denominado em barrete de clérigo; no cruzeiro eleva-se o esbelto zimbório octogono que se liga ao plano quadrado dos arcos por meio de trompas. Kste zimbório, que domina o edifício e a cidade, é o mais bello motivo archi- tectonico da Sé; coberto de pequenas lagens formando revesti- mento escamoso, é circundado por uma linha de pináculos tam- bém octogonos e lembra, no escorço geral, posto que de mais modesta contextura, a torre dei gallo da cathedral velha de Sala- manca. Apesar dos arcos quebrados que constituem as suas aberturas e geram as suas abobadas, a Sé de Évora é um edifício estructu- ralmente românico. A existência d^aquelle typo de arco em nada altera o principio orgânico em que ella assenta, e de transição para o gothico apresenta ape- nas um élo : a cruz de ogiva já citada e que sustenta a abo- bada da galilé. O seu bello claustro, esse é francamente ogival, já construido no sé- culo XIII ; nos tympanos dos seus arcos abrem-se rosáceas com a decoração de cruza- mentos geométricos tão usa- dos em muitos exemplares de azulejos hispano-arabes. Não é fácil averiguar qual o edifício português em que se revela o primeiro emprego da abobada nervada, caracte- ristica essencial do gothico, mas pela sua apparição em S. Pedro de Rates e na ga- lilé da Sé eborense, dado que taes episódios sejam contem- porâneos da fundação dos res- pectivos monumentos, vê-se que bem cedo se espalhou em Portugal, talvez por processo THOMAR-Porta principal do Con vento de ChriMo 220 A architcctura em Portugal da disseminação análogo ao que propagou os princípios românicos. Vemo-la apparecer substituindo o berço de certas absidcs, no deambulatório da Sé de Lisboa, no claustro da mesma Sé e mais tarde na capella de Bartholomeu Joannes ; em vários outros claus- tros como no da Sé de Évora, no monumento de Guimarães, nas immensas naves e charola da igreja de Alcobaça, um dos pri- meiros monumentos ogivaes do pais, e em muitos edifícios incom- pletos na phase anterior aos quaes os architectos applicavam os principios do novo cânon, quer acabando-os, quer demolindo por vezes, afím de substitui-las, partes já construídas. Lançado o novo systema, de tão admiráveis consequências pela simplicidade e pela lógica dos seus principios, abre-se â ar- chiteciura uma ampla estrada que os mestres peninsulares logo trilharam com segurança crescente, e de que temos em Portugal um exemplar já tardio mas integralmente bello : a igreja de Santa Maria da Vicloria. Os prodromos da lucta que se rematou com o épico arranque de Aljubarrota, já haviam dado ao Mestre de Avis ensejo para a cons- trucção de um edifício, tam- bém filho de um voto so- iemne, e ao qual o Regedor do Reino queria imprimir cunho de grandeza, no que foi trahido pela modéstia de vistas do architecto : quero referir-me á igreja da Senhora da Oliveira, cm Guimarães. Da primi- tiva construcção restam apenas a fachada e os ar- cos interiores, aqucUa en- riquecida por um bello portal, acima do qual se santa cruz de coimbrã A architectura cm Portugal 221 rasga uma janella fortemente es- cavada na frontaria, e que cons- tituiria um originalíssimo* exem- plar do goihico flammejanle se o personagem que agora se encon- tra voltado para o interior da igreja é com eflfeito Jessé, do qual devia irromper em maravi- lhosa dichotomia, pelo vão da vasta ogiva, a arvore genealógica da sua descendência. Mas um anno depois fere-se Aljubarrota, e do solo ubérrimo da região extremenha surge como um hymno guerreiro e mystico, o mais rico edifício da archi- KvoRA tectura da Edade Media em Por- tugal. Visto de longe, na iran- quillidade da histórica planície, logo surprehende, ao rememo- rar-se o eschema dos leviathans da architectura nórdica, pelo predomínio das horizontaes e como que pela adaptação da sua solida e aérea membratura á suavidade acolhedora doestes países do sul. As suas linhas não demandam o azul em arro- jadas fugas de pináculos e agu- lhas, mas correm com a alada renda das platíbandas ao longo dos terraços de ponto quasi nuUo, e apenas trepam em as- censão logo detida pelas obli- quas pouco extensas dos bo- taréos até á coroação superior. Nesta sabia e esthetica hori- zontalidade, o coruchéu da ce- gonha destaca-se em altura, mas tão modestamente que a sua pyramíde, reticulada como .t>N ^' ^%A NO VARATOJO 222 A architectura em Portugal uma asa de insecto, não perturba a impressão que emana do es- corço geral do edifício. Um cam- panário humilde, como se fora o campanário pobre de uma ermida da serra, de um só sino em obe- diência ao rito dominico, põe na sumptuosidade da ornamentação flammejanie, uma nota rústica de simpleza aldeã. A frontaria, expressão nitida da planta, accusa a altura das três naves, a do centro realçada sobre as coUateraes em propor- ções de admirável equilibrio, e separada] exteriormente destas por dois gigantes cujos pinácu- los terminam á altura do janellão central. Ao alto, uma plaiibanda horizontal, vasada em quadrilo- bulos, lança-se como remate da frontaria entre dois pináculos MATRIZ DE VIANNA DO ALE.MTEJO jEKoxYMos — Porta piimipal A architectura em Portugal 223 mais pequenos, ornamentados de cogulhos; a silharia do corpo central é estriada por meio de filetes verticaes, decoração que avantaja á vista as proporções da fachada, dando-lhe assim maior expressão da altura. O portal, como no românico centro convergente da decora- ção, é povoado de imagens en- tre os columnellos e ao longo das archivoltas, e desse profuso trecho de corte celestial parece irromper um hossana á figura do Padre Eterno que no tym- pano abençoa entre as figuras em baixo relevo dos quatro Evange- listas. A janella que sobrepuja o portal, separada d'este por uma espécie de varandim, janella tão fina eque vse não podia obrar com mais subtileza e cuidado em trancinhas de agulha^ PONTA DELGADA jFRONYMos — Claustro 224 A architectura em Portugal ou em lavor de cera, ou no espelho de uma viola» como diz Frei Luís de Sousa, pertence typicamente pela sua ornamentação flammejante ao gothico terciário. Ao lado direito da fachada, como uma ampola na simplicidade da planta, segue uma das faces da capella do Fundador, rematada pelo lanternim octogono onde outrora se erguia a pyra sepulcral e tão graciosamente amparado pelos esteios obliquos dos botaréos. O desdobramento do edifício manifesta-se em toda a sua ma- gnificência na fachada lateral sul, com os oito tramos onde se rasgam as grandes janellas, o braço meridional do transepio, a floresta dos botaréos, e a renda das platibandas que seguem com delicadeza ao longo das linhas constructivas da enorme fabrica, que pelo tom da pedra nos dá a impressão de um velho pergami- nho de evangcliario onde se destacavam outrora as illuminuras polychromas dos vitraes. No braço sul do transepto, ha ainda a notar o sabor archaico do portal, que dir-se-hia concebido por um alvenel em cuja sensibilidade surgisse, atavicamente, a arte dos velhos canteiros românicos. Ao fundo do edifício de D. João I, continua a linha irregular do tar- dio appendice denominado aCa- pellas Imperfeitas». O interior, de uma imponên- cia dominadora, com a floresta gigante dos seus pilares polysti- los, subindo em linhas arrojadas até ás nervuras da abobada, pro- jecta as longas naves envoltas em vaga claridade, por onde a vista suavemente segue até á nota mais viva que cae das janellas absi- daes. A capella do Fundador lembra uma vasta tenda de pa- rada, esteada por um octogono de arcos afestonados de polylo- bulos como pelas varas alçadas de um palio rico, e assim heral- dicamente cobre o leito mortua- A éirchitectum em Portu^ctl 225 rio de D. João I que dá a mão leal á honesta inglesa mesmo na paz da morte ; em volta fazem còro, como pagens funerários, sob os arcosolios dos seus túmulos, os Ínclitos Infantes, seus Hlhos e sua gloria. Á fachada norte do templo encosta-se o claustro real, de ogivas equiláteras, posteriormente alindado com tympanos no complicado lavor da arte manuelina. Num dos seus lados, abre-se a sala do capitulo coberta pela famosa abobada que deu ori- gem á celebre lenda do architecto Afonso Domingues, cuja effigie a tradição diz ser a que se vê esculpida a um canto, num arran- que de nervura. Se a igreja de Santa Maria da Victoria é uma radiosa e ines- perada florescência das modestas tentativas da architectura gothica portuguesa que desde a plenitude do românico vinha ensaiando os novos principios constructivos, ou se foi integralmente conce- bida pelo esforço anonymo da associação cosmopolita dos pedrei- ros-livres, não ha aqui espaço para o discutir. Basta indicar que, pelo seu estudo directo, a devemos filiar no ultimo pe- riodo d^aquella arte, varie- dade do perpendicular in- glês, não só pelo seu escorço geral, mas por innumeros pormenores orgânicos e de- corativos característicos das modificações derradeiras da arte ogival. Caminhando para o sul, depara-se-nos o castello de Leiria, onde encontramos vestigios dos três typos de architectura: civil, militar e religiosa; — a linha das mu- ralhas com a torre de me- nagem, o palácio e a igreja. Esta, de uma só nave, de en- trada lateral sob galilé, com um graciosíssimo abside co- roado por uma abobada ner- 22Ò A archiiectura em Portugal vada de admiráveis linhas ascensionaes, faz derivar as suas particularidades constructivas das condições locaes da sua erec- ção: espaço estreito, quasi sobranceiro á escarpa. Em condições análogas foi levantada por Nunalvares a igreja do Convento do Carmo em Lisboa, cujas ruinas se erguem no velho morro que no século xv dominava Valverde. Ao norte do Porto citemos a histórica igreja de Leça do Bailio de três naves cobertas de ma- deira; e dentro da cidade a Igreja de S. Francisco; em Villa Real a igreja de S. Domingos ; em Thomar, a Senhora do Olival ; em ^'ianna do Alemtejo a interessantissima igreja da fundação de D. Dinis; a igreja de S. Francisco de Évora, e a Sé de Elvas; em Santarém temos a esbelta fachada da igreja da Graça, tão simples, tão pura no sóbrio desdobramento das suas linhas e na elegância das suas proporções; na Guarda a velha cathedral começada por D. João I a qual, pela sua dilatada construcção, soffreu tardiamente a influencia da architectura manuelina. A decomposição do gothico começa em Portugal no reinado de D. João IL Por decomposição do gothico deve entender-se a entrada do illogismo decorativo na architectura, que caracteriza o ultimo periodo da arte medie- val, denominado flammejante ou terciária. Uma das preoccupa- ções dos architectos doeste pe- riodo, manifesto symptoma de esgotamento criador, consistia em opporem a toda a curva uma contracurva, em multiplicarem os centros dos arcos, e em em- pregarem uma exhuberancia or- namental independente das linhas constructivas. E no periodo em que a arte ogival se caracteriza por estas tendências, e quando outro elemento novo, o elemento clássico, a penetra começando a fazê-la ruir, que se organiza em A architectura em Portugal 227 Portugal a arte denominada manuelina. Obedecendo nos seus principios fundamentaes ás ultimas variantes da abobada ner- vada, portanto organicamente de traça gothica, a architectura que floresceu em Portugal nos reinados de D. João II e de D. Manuel, adquire caracter regional mais pela superabundância da ornamentaria do que pelo emprego lógico dos motivos deco- raes, resultantes entre nós do choque de correntes varias e de civilizações diversas. Esta plethora de ornatos chega por vezes a effeitos radiantes de cor, como no pórtico lateral da igreja dos Jeronymos em que a linha ascensional das figuras, faz da escul- tura um admirável cântico, e na entrada da igreja do Convento de Christo, em Thomar, talhada em galilé, onde tão bellamente sob a luz caminha a ronda das sombras projectadas. Thomar é um dos repositórios melhor providos de arte ma- nuelina que ha no país, objecto de carinho por parte do Rei Ven- turoso que a dotou com os mais escrupulosos e expressivos mestres do seu tempo. Foi a liça onde o gothico moribundo, debatendo-se em espiraes de desordenada phantasia, sotfreu os mais fortes embates da in- tervenção clássica. O coro da parte manue- lina, que communica com a charola bysantina por um arrojado arco praticado em duas faces do octogono do velho oratório templário, é coberto por uma. elegante abobada nervada, e as suas linhas exteriores são domi- nadas por uma abundância de decoração em que coleia um vegetalismo ofifegante de floresta virgem, o qual attinge a sua expressão má- xima na janella da casa do capitulo. A igreja dos Jeronymos é o mais perfeito exem- plar do gothico manuelino TORRES VEDRAS 228 A architectura em Portugal e reune as grandes qualidades de abundância e de brilho, de rythmo e de cor que caracterizam o periodo mais equilibrado e ao mesmo tempo mais luminosamente fluente d'esta expressão de arte. O interior chama irresistivelmente o olhar para a admirável estructura da abobada polynervada que á mesma altura cobre as três naves, esieando-se em seis pilares octogonos que fazem irra- TORRE DE BKLEM diar a umbella das suas nervuras como palmeiras gigantescas, e cujas faces se enriquecem de decoração clássica em modenatura gothica, interrompida pelo escavado dos nichos, vazios de imagens. A abobada do cruzeiro, de i6 metros de abertura, independente das abobadas das naves, é uma das mais arrojadas de toda a architectura, e continua a norte e a sul nas curtas saliências do transepto. Em todo o mterior, a mesma exhuberancia ornamen- tal, nos dois púlpitos, nos pilares, nos fechos da abobada cober- tos com rosetóes heráldicos, nas capellas absidaes, nos confessio- nários da nave, de singular planta, e nos arcos Tudor que sus- Aarchitcctura em Portugal 22g tentam o varandim do côro. O effeito geral é o de um vasto hymnario de pedra, cujos sons, entrechocando-se numa vasta polyphonia, indefinidamente reboam, renovando-se indefinida- mente. Ao fundo, em severo contraste, a capella-mór no estilo clássico, espécie de pantheon de fria solemnidade apesar da bel- leza das suas propor- ções e da discreta po- lychromia dos seus mármores. O claustro dos Je- ronymos passa, com justa razão, pelo mais bello claustro do mun- do. Dir-se-hia nascido de um só jacto, por uma esplendorosa e brusca fecundidade da natureza, tão sóbrio no desdobramento das suas curvas, tão rico de notas originaes, tão cheio do imprevisto gracioso que resulta dos compromissos das duas architecturas an- tagónicas. As pilas- tras, os arcos, a deco- ração, casam-no á cor- rente clássica pelo elo da Renascença fran- cesa; as abobadas, as penetrações das bases dos columnellos, a aérea irradiação das rendas geminaes, prendem-no á tradição gothica: umas dão-lhe a renascente simplicidade antiga, outras a riqueza languida dos últimos tempos medievaes. No pórtico principal da igreja, de arco polycentrico, vêem^-se as estatuas orantes de D. Manuel e de sua mulher D. Leonor, amparados pelos seus santos padroeiros; anjos e prophetas as- cendem sob baldaquinos historiados ou suspendendo sobre a s. MARCOS — Capclla dos Reis Magos 23o A architectura em Portugal entrada o escudo de armas, e ao alto, do lado esquerdo, destaca-se o grupo da Annunciação, um dos mais delica- dos trechos esculturaes do edifício: o geito enleado da Virgem é cheio de timido pasmo e do recatado ni- cho parece irradiar uma aureola azul como se o nimbasse a aurora da bemaventurança. Perto, á beira do Tejo, o lindo baluarte de S. ^'icente, que dir-se-hia antes, pelo donaire do seu perfil e a fantasia da sua ornamentação, a gruta encantada onde se acolhiam, para tecer a teia das lendas oceânicas, as Tágides invocadas por Camões. A arte manuelina interrompe bruscamente a sua mar- cha de audaciosa fantasia no incompleto pantheon real denominado Capellas Imperfeitas, que D. Duarte pro- "'*''*' jectou atrás da abside da igreja da Batalha. Sobre o octo- gono ogival do fundador, cujas abobadas se adornam com o seu moto de Principe Leal, taiit que serai, erguem-se, no tempo de D. Manuel, seis gigantes interrompidos bruscamente na sua arro- jada ascensão, e sobre os quaes devia assentar a cobertura do edifício. Na torturada e embaraçosa decoração d'esses blocos THOMAR — Claustro de D. João IH inacabados, manifesta-sc, levada aos seus limites extremos, a tendência dos alveneis em transportar para a ornamentação lithica as subtilezas da modelação toreutica. Plaieresco (de platero, ouri- ves) chamam a este principio os espanhoes, quando nelle filiara edifícios que são uma ourivezaria de pedra. O rico portal de en- A architectura em Portugal 23l trada das capellas imperfeitas, desdobrado numa linda curva polycentrica que ondula e se enlaça em gracioso rythmo, dir-se-hia de prata martelada pelas ciosas e des- tras mãos de um Gil Vicente. Sobrepujando-a e domi- nando-a como expressão victoriosa da nova corrente ^y^l\ de arte, a admirável varanda de balaustro, cujas ^^^^S^^--j proporções, belleza clássica e delicadeza decorativa \^ lhe dão um nitido contraste com o enredamento da gruta ^^ dos seis gigantes, e fazem d'ella uma das jóias da Renas- cença portuguesa. Além dos monumentos citados, ha em Portugal, no estilo manuelino, as igrejas de Villa do Conde, Freixo de Espada á Cinta, Thomar, Setúbal, Conceição Velha em Lisboa, Santa Cruz de Coimbra, e portas nas igrejas da Gollegã, Moura, na da Universidade, na sacristia de Alcobaça, na igreja de Marvilla em Santarém, na igreja de Vianna do Alemtejo, na Madre de Deus em Xabregas, na igreja de S. Julião em Setúbal, na matriz de Foscôa, etc. Foi ephemera esta architectura; nas- cida no tempo de D. João II, logo começa a soffrer os embates do classissismo que triun- fara em toda a Europa, aba- fando os clarões vacillantes das ultimas tentativas me- dievaes. Com a resurreição do estilo greco-romano. Por- INTERIOR DE MAFRA tugal abandona definitiva- mente as formas e a deco- ração gothicas, lançando-se como o resto da Europa nos braços do módulo clás- sico. Esta deserção da arte ogival provocada pelas in- fluencias italianas, começou por fazer timidos enxertos em vários edifícios religio- sos e civis, embaraçando-se no gothico moribundo para dar o manuelino, e triun- 232 A archilectura cm Portugal fando finalmente durante o reinado de D. João III com a intervenção dos propagandistas italianos do novo câ- non. Em Coimbra, já na fachada norte da Sé Velha o Bispo D. Jorge de Mello mandara erguer a porta Es- peciosa ; no Convento de Christo em Thomar levanta-se o celebre claustro denominado dos Filipes, posto fosse construido no tempo do rei piedoso, bem como innume- ros fragmentos em varias partes do edifício; em Coimbra temos o Convento de S. Tomás, e perto doesta cidade, em S. Marcos, o pantheon dos Silvas, onde se admira um dos mais perfeitos e elegantes trechos da Renas- cença em Portugal: a capella dos Reis Magos. Commu- nicando com o corpo da igreja por um admirável pórtico em que a sobriedade clássica se allia á delicada modela- ção da escultura ornamental, cobre-se com uma cúpula de linha eleganiissima, assente sobre pendiculos, illuminada por um lanternim central. Alem disso, ha portas nas igrejas de Ca- minha, Chaves, Figueiró dos Vinhos, Faro, etc. A frescura dos primeiros tempos da Renascença, impregnada ainda da fantasia TERREIRO DO TACO dos architectos florentinos, succede a pomposa e fria fase do estilo barroco que corresponde, para os fins do século xvi e prin- cípios do XVII, ao periodo da decadência do gothico na época A architectura em Portugal 233 anterior; a superabundância ornamental, o predomínio das cur- vas, o maneirismo decorativo caracterizam o estilo chamando jisuita. Em Portugal podemos citar os conventos da ordem bcne- dictina em Lisboa, Porto e Coimbra, e em quasi todas as igrejas a atormentada superfetação de talha dourada que reveste a mem- bratura interior dos edifícios com o enredamento das suas folha- gens, a attitude preciosa dos seus cherubins e o geito languido dos seus anjos e das suas virgens. Um dos monumentos mais interessantes doeste periodo é o Convento da Serra do Pilar, na riba Douro em frente do Porto, com a igreja de planta circular, a que se junta um claustro de igual planta, assente em / i jfc^ columnas jónicas, do mais a Ji "^àJUÊB^^ é tÇC^? bello effeito; temos mais W ttT^^'''^'^''^^^^^ o claustro da casa-mãe d'aquelle, em Grijó, e o so- turno massiço que é o edi- fício da Relação do Porto; cm Lisboa, alem do demo- lido torreão de Filipe II, no Terreiro do Paço, S. ^'i- cente e a incompleta igreja de Santa Engracia, que se- ria, acabada, um dos mais perfeitos exemplares d'este periodo pela sua linha só- bria e pela sumptuosidade decorativa dos mármores que lhe revestem o interior. Com a entrada do italianismo pomposo do século xviii, mais uma vez as formas já fatigadas e esgotadas da ultima Renascença dominam a architectura em Portugal, e surge então o collosso de Mafra, inspirado na Renascença michelangesca, enriquecido ainda pela riqueza dos mármores e o resplandor da crysocalda tão brilhante como o ouro dos dobrões que tilintavam na sacola perdulária do seu fundador D. João V. A igreja, de bcllas propor- ções, é uma reducção de S. Pedro de Roma, no que talvez ganhe sobre a sua congénere italiana. No Porto, do século xvni temos a Torre djs Clérigos, soberbo exemplar de sabia construcção e bello equilíbrio, erguendo-se QUELUZ — Píivilliáo das Ksphingcs 234 A architectura em Portugal como um mastro da base ao topo numa altura de 76 metros, e as graciosas igrejas unidas das Ordens do Carmo e dos Tercei- ros, esta tão profusa de decoração rocaille, e em cuja fachada dominam as linhas curvas que imprimiram requebrada elegância á arte francesa do tempo de Luis XV. Com a reconstrucção de Pombal, talvez pela sua ur- gência, nenhum facto novo apparece na expressão ar- chitectonica que se conserva tiel ás suas antecessoras; assim se levanta a soberba Praça do Terreiro do Paço, a^ igreja da Memoria, as mais interessantes partes do palácio de Queluz, a Basilica dâ Estrella e a graciosa igreja de Santo António da Sé. O pouco que se construe em Portugal durante o século xíx íiheatro de D. Maria) não se afasta dos elementos clássicos dentro de cujos moldes se debateram os architectos até ao alvorecer do período contemporâneo. JoÃo Barreira. basílica da kstrfllA ^ ^^ a»Si ^^^ OURIVEZARIA PORTUGUESA ENSAIO HISTÓRICO (.Uèjins dn sec x\) I Arte pre-historioa e proto-historioa UEM houvesse de iniciar a historia da ourivezaria portu- guesa ha vinte e cinco annos teria apenas como elemento quasi único, archaico, a grande argola de ouro macisso, achada em iS83 perto de Penella, numa saibreira, jóia de tamanho e peso tão desusado (i'',()oo) que muitos a admittiram apenas como collar céltico. De facto, as únicas argolas de ouro, anteriormente conhecidas, estavam somente desde 1881 ou 1882 na posse de Martins Sar- mento, que as comprara por elevado preço; eram lisas, de appa- rencia modestissima, á vista do magnifico exemplar de Penella. Procediam de Folgosinho (região da Guarda) e constituiam aos olhos do eminente archeologo um precioso thesouro. Elle mesmo as discutiu commigo. Vi-as. Foram depois roubadas, com peças de ouro do medalheiro da Sociedade Martins Sarmento I Comprehende-se, pois, a surpresa causada pelo extraordinário achado de i883, que veio revelar uma arte de ornamentação per- 236 Ourivesaria portuguesa feitamente análoga á que já era conhecida na cerâmica das esca- vações da Citania, ornamentação continuada tradicionalmente na olaria popular até nossos dias. Em face d essas provas tive de additar a um trabalho meu extenso, e em parte já impresso, sobre a Ourweiaria Nacional, um capitulo novo, precedido de uma introducção sobre a arte pre-historica e proto-historica. Está inédito. E este, ampliado. Hoje, os documentos d'esses períodos são numerosos e de grande valor, graças aos estudos realizados no ultimo quarto de século. Estão archivados na notabilissima revista Portugália. Aos distinctissimos tra- balhos dos Srs. Conse- lheiro José Fortes, Ricardo Severo, Santos Rocha, etc, vieram juntar-se recente- mente as acquisições va- liosas do Sr. Dr. Leite de Vasconcellos, que tem en- riquecido as collecções do Museu Ethnologico de Lis- boa (Belém). A seguinte lista não se apresenta com pretensões a inventario completo. Temos as arrecadas de ouro do Castro de Laun- dos (concelho da Povoa de Varzim), os braceletes de ouro de Arnozello e de Tellões, a xorca de Cintra, os torques de Almoster, Serrazes, Lebução, Reguen- gos e Cortinhas; emfim, o collar de Valle de Malhadas e o bra- celete de ouro de Bairro. E fica a relação ainda incompleta. «Convém (recommenda o Sr. Ricardo Severo) não abandonar a lógica que deve guiar o nosso methodo analytico; do contrario o espirito erra perdido pelo labyrinthico roteiro de povos e de ci- vilizações. Admittiremos uma metallurgia indigena, regional, e parallelamente uma industria de ourivezaria com a sua completa tcchnica. Seja o estilo de longinqua origem oriental, através das CBUZ LATINA — Estilo 1atinoby;cantino, século ix Ourivesaria portuguesa 237 escolas gregas e das otticinas etruscas, transportado por phe- nicios ou púnicos, seja esta civilização de origem céltica, o facto é que em parte alguma encontramos o modelo originário destas replicas peninsulares, com o seu particular feitio ibérico, ou, mais especificadamente, lusitanico. Não podem negar-se todas estas estranhas influencias nas civilizações peninsulares; nem todas, porem, é possivel definir e explicar — e nem todas as explicam». Mais adeante o mesmo erudito investigador acres- centa: «As formas da ouriveza- ria primitiva modificaram-se nos vários povos, consoante a technica para a applicação dos esmaltes e das pedras finas. Entretanto, subsisti- ram nas classes populares muitos d'esses typos singe- los em ouro e prata; assim como ficou na joalharia o uso do longo pingente car- regado de ornamentos e de pedras lapidadas. E de no- tar que na Peninsula Ibé- rica ininterruptamente per- durou esta moda, que em outros paises esqueceu, e que a dama de Elche bri- lhantemente exhibe ; d'ahi voltou para a corte france- sa, pelos meados do século xvi, enfeitando depois, á maneira espanhola, as preciosas e os incroj-ables do século xviii. «Se percorrermos a variada ourivezaria popular do norte do país, encontramos actualmente os mesmos longos brincos de folha de ouro e de filigrana, com pingentes, a mesma arrecada penan- nular, em forma de caixa, com o travessão recto para atravessar o lóbulo da orelha, e por ultimo o mesmo gosto pela sobrecarga de volumosas jóias de grande apparato. CRUZ LATINA, PROC.ESSIONAL. 12 14 238 Ourivesaria portuguesa «Deveras interessante é também a persistência, como adorno, dos berloques formados por minimas reducçóes de peças cerâmi- cas que se vendem e usam nos mercados e romarias populares de Trás-os-Montes. O collar de pequenas louças de barro de Mi- randa do Corvo, adeante figurado, é um exemplo curioso desta sobrevivência — tal qual os col- lares de amphoras, ampullas, bolas e crotales dos etruscos e dos romanos; a pequena am- phora diota do collar de Mi- randa é replica d'esse typo am- phori stico greco - italo - etrusco, ao lado da pequena bilha de bico trilobado. «Existiu, pois, neste país do noroeste da peninsula, desde tempos, para nós, prehistori- cos, uma ourivezaria caracte- rística, com essa technica bar- bara e de primitiva esthetica, mas que manifesta uma feição própria. «Tem que se adiar a des- trinça das influencias, quaes as de origem, escola, technica, gosto. Através do nosso estudo indicamos as principaes. Em muitos casos o problema ethnico e histórico embaraça-as e con- funde-as. «Para definir o facto ethno- graphico seria necessário que todos os outros que parecem explicá-lo fossem determinados; mas tem cada qual as suas incógnitas, funcções umas das outras. Haverá, pois, entrementes, que restringir o problema aos limites da zona occidental atlântica». Um artigo do Sr. José Fortes {Duas Jotas archaicas\ logo em seguida, traz, com o seu habitual escrúpulo scientifico, novos ele- mentos de apreciação : CRUZ PHOCESSIONAL — Estilo gOthicO, SCCllIo XIV Ourivesaria portuguesa 239 «Podem dispor-se em seis gru- pos as jóias d'esta categoria, até agora exemplificadas em vários espécimens: I.**, collares fechados, circula- res, massiços e roliços — typo, o torques de Penella; 2.% collares de haste aberta, cm forma de crescente, massiços, com fecho independente — lypos, os torques de Almoster e de Ser- ra^es; o nosso camarada Ricardo Severo propõe fundadamente in- cluir neste grupo o celebre coitar da Penha Verde ou xorca de Cintra, que assim constitjiria uma variedade ; 3.% collares penannulares, massiços, com pequenos botões terminaes — typo, o torques da Serra da Conceição; 4.% collares penannulares, massiços, com grossas cabeças terminaes — typo, o torques de I^bução; 5.% collares, adelgaçando do meio para os extremos, que se curvam formando ganchos de prisão directa, como os de Wed- more e Burwel descritos e figu- rados por J. F>ans; secção qua- drada — typo, o torques de Re- guengos; e 6.% collares de fios torcidos ou entrançados em grupo e fun- dindo-se em cada extremo num só ramo liso e roliço; em prata e ouro — typo o torques de Cor- tinhas. CRUZ PROCE8SIONAL — Estilo maiiiieliiio Base moderna do scculo xvm 240 Ourivesaria porti guesa «O collar em estudo (Valle da Malhada) avizinha-se mais do typo 3/\ que Esiacio da Veiga inscreveu hypotheíicamente na idade do bronze ; a similitude accentua-se em particular nos extre- mos, os quaes, nas duas jóias comparadas, finalizam em pyrami- des quadrangulares. E se, considerando apenas o aspecto formal, se cotejar o collar de Valle da Malhada com os quatro braceletes inteiramente similares de Beachf Head, Sussex, averigua-se que o alvitre do illustrado archeologo português era procedente, e coin- cide com o parecer de Charles H. Read, o qual attribue legi- timamente as jóias irlandesas áquella idade, pela sua associa- ção no mesmo meio archeologico com uma espada e um winged celt, de bronze. «Seria mesmo esta para nós a solução definitiva do problema ethnographico e chronologico, se não interviesse a duvida opposta pelo caracter muito particular da ornamentação, que os preceden- tes exemplares confrontados não exhibem. Em verdade, de um modo geral, os coUares e brace- letes da idade do bronze são aber- tos, massiços, por vezes com de- corações gravadas ; os da idade de ferro, fechados, ténues, com ornatos globulares, em carena, em entalhes fundos, e ás vezes vazados — taes os da celebre ca- chetle de transição de Launac, os dos cemitérios do Marne e dos Alpes». Os desenhos e gravuras que acompanham os estudos dos Srs. José Fortes e Ricardo Severo são digna illustração do com- mentario histórico, sendo por si só muito instructivas e perfeitas; maior importância adquirem ainda confrontando-as com as peças que vimos ha pouco tempo em poder do Sr. Leite de Vasconcel- los e foram adquiridas para o Museu Ethnologico de I^isboa. No CRUZ DE ALTAR — Kstilo RcHascença, 1540 Ourivesaria portuguesa 241 seu género rivalizam com o que ha de mais perfeito nas cele- bres collecções de Schliemann, legadas ao Governo Allemão; desenho e composição artística, caracteres do estilo e technica oflicinal estão á mesma altura. Na região de Elche não appa- receu nada mais perfeito. De onde procedem esses thesouros? Serão exclusivamente peninsulares? O Sr. Ricardo Severo já apon- tou para as dificuldades múltiplas do problema. Tanto elle como o Sr. Conselheiro Fortes poderiam reforçar os alicerces da questão, recorrendo ao exame dos estudos notabilissimos do inglês George Bonsor, tão erudito investigador como felicissimo descobridor de antiguidades phenicias. Faltando-nos o espaço para jun- tar aqui extractos convincentes dos trabalhos de Bonsor, recommenda- mos o excellente resumo que fez um mestre allemão, o nosso amigo Prof. Emilio Hiibner, ha pouco fallecido. Trata-se de objectos em mar- fim, mas a technica, a ornamenta- ção, o destino que os artifices lhes designaram, emfim o processo e as vias pelas quaes entraram na pe- ninsula, sendo sobremodo exóticos, aconselham um confronto com os artefactos de metal, achados no solo peninsular. Charles de Linas indica diptycos de marfim antiquissimos, a que foi applicada uma ornamentação interior de filigrana de ouro : orlas de oro afili granadas. São peças de igre- jas asturianas. (Docum. de 910, pag. 77). No fim diz Hiibner sobre o resultado das pesquisas de Bonsor: «Pues aunque no hubiera encontrado ninguna otra cosa más que los objectos en maríl arriba descritos, esto bastaria para «^^^^^Kik.t* Ev^/fl l^^^l ^i^^ ^^^^KB^PSl^^^H ^^1^^ ^^^íl^ ^mi^ '.'-i-iU.JJSLI":, *■ : • 3L, ., CÁLICE E PATENA — Estilo gothico-manuelíno 16 242 Ourivesaria portuguesa contarlo entre los investigadores más felices. Aquellas cajillas, peines y escudillas de maríil son, efectivamente, los primeros objetos de indudable origen fenicio encontrados en fl interior de Ia península. Los hallazgos de la Punta de la Vaca, en Cadiz, que hasta ahora eran los únicos de Ia misma procedência cierta, prue- ban solo la existência de la colónia fenicia y su duracion hasta una época relativamente reciente, ya bas- tante conocida. Los marfiles dei Sr. Bonsor nos ensenan como testimonios palpables, que el comerciante fenicio supo penetrar en el interior dei país, rio Betis arriba, para cambiar ó vender los «artefactos» de su comercio». Rcpare-se bem na expressão: peneirar no interior da peninsula. Até aqui localizavam os archeologos as colónias phenicias da Peninsula Ibérica ex- clusivamente nas linhas da costa. George Bonsor provou que os phenicios percorre- ram toda a Betica, peneirando-a em todas as direcções. O facto tem importância capital, puis nem sequer foi pressentido por um especia- lista tão competente como Mõvers {Die Phõ- ni:{ier), Martins Sarmento, para quem pro- curiímos em Allemanha, em 1881, um dos três volumes da grande monographia, que se esgotara, suspeitou alguns dos factos re- velados por Bonsor. Numa conversa que tivemos em Guimarães, discutindo em face da obra de Milchhõver sobre a arte grega archaica, o estilo decorativo da cerâmica da Citania e de parte dos bronzes, Sarmento demonstrou a intima relação d'elle com os padrões apresentados pelo autor allemão, e que eram em grande parte procedentes das pesquisas de Schlie- mann. Outras reminiscências levavam a pensar nas antiguidades de Chypre e nas descobertas de Cesnola (vid. Domenech, Historia General dei Arte, cap. Fenicia j^ Chipre). CUSTODIA — ScCUlo XIV Ourivesaria portuguesa 243 Do estudo do Prof. Hubner, sobre as desco- bertas de Bonsor, extrahi- rei apenas uma citação, sobre o novo aspecto da influencia phenicia nas provincias meridionaes da península: «Porque parece que esta gente, industrial co- mo ninguna otra de las de la antigiiedad, supo aprovecharse de la per- feccion dei arte y de la industria de las grandes naciones dei Oriente, sin tener nada de próprio que anadir, y de la habilidad de sus artifices, para com- prar objetos de aquéllas ó servirse de estos em pró de su comercio. La época á la cual han de atribuirse objetos como los que acabamos de des- cribir, por el estilo de sus grabados y su contenido, no la han podido aun fijar con certidumbre los co- nocedores de la cultura de los antiguos reinos dei Oriente: se ha pensado generalmente en el se- gundo milénio antes de Jesucristo, ó sean los anos 1400 hasta 1200. De todos modos, su antigiiedad es remota y nada impide el atribuirlos ai comercio de CUSTODIA DE BELÉM — K«tiIo maniiclino, i5o6 Foi alterada no i.« terço do século xvii 2AA Ourivesaria portuguesa los antiguos gaditanos, talvez en el primer período de su gran- deza mercantil, después de la fundacion de la colónia de Gadir, cerca dei 1200 antes de Jesucristo». Á primeira vista parece que os objectos de marfim alludidos não se relacionam facilmente com os artefactos da torentica (arte dos metaes). Já provámos o contrario, ha pouco. Repare-se ainda que os primeiros relicários e os mais archaicos do principio da era christã foram precisamente lavrados em marfim. Os diptychos de marfim existentes no thesouro da cathedral de Oviedo perten- cem ao primeiro terço do século vi. S. Isidoro, que nos deixou nos seus trabalhos de grande erudição as mais preciosas noticias sobre a historia das artes peninsulares (Eij'mologias\ não fala da industria de escultura em marfim sob o dominio romano e visi- gothico, mas é certo que os lavores ebúrneos da arte árabe, con- servados quer em Espanha, quer em Portugal (Sé de Braga, no thesouro) revelam uma perfeição que não podia adquirir-se senão após longa aprendizagem. Muito embora com a invasão dos ára- bes, no principio do século vni, entrasse com elles uma technica aperfeiçoada em quasi todas as artes decorativas, ninguém po- derá negar que os visigodos cultivaram antes d'elles algumas das artes do metal e a arte dos esmaltes com grande perfeição. Basta lembrar os esplendidos lavores que constituíam o chamado The- souro de Guarraiar ' que vale só por si um museu de ouriveza- ria e de esmaltes. Antes dos visigodos, porem, temos a arte dos Suevos revelada nas suas moedas e cunhagens; esses antecesso- res mantiveram um extenso dominio numa grande parte da pe- nínsula e criaram uma capital afamada em Braga, semeando pelo litoral varias officinas monetárias. Onde existiu a cunhagem da moeda e a gravura dos cunhos floresceu sem duvida a ourivezaria religiosa e profana, quer para adorno pessoal das classes abas- tadas, quer para ornamento do culto. Recuando dos Suevos para a arte dos povos que elles subju- garam, encontramos varias influencias, predominando a romana. Pouco resta das relíquias da ourivezaria romana, se pretendermos restringir o termo aos metaes — prata e ouro ; mas convém adver- I Estudos de Amador de los Rios e do francês Lasteyrie ; e recentemente de Riano. Ourivesaria portuguesa 245 poRTA-PAZ — Estilo manuelino 246 Ourivesaria portuguesa tir que nos restam numerosos objectos em bronze, de adorno pes- soal, com caracter artístico superior (fibulas). Uma única peça existe, de notáveis dimensões e peso, o grande disco em prata do imperador Theodosio, achado na Estremadura Espanhola, perto de Almendralejo. Está excellentemente reproduzido na obra de Lafuente (Historia de Espana), e foi achado em 1847; tem de diâ- metro 28 g- pollegadas inglesas e pesa 633 onças. Guarda-se no Museu da Academia de la Historia. Um disco muito menor, cha- mado de Otanez, appareceu na provincia de Santander. Tem va- lor sobretudo pela escultura allegorica que o ornamenta; é de prata e em parte dourado; pesa somente 33 onças. O numero de objectos de prata e ouro conservados hoje em dia é naturalmente reduzido, porque a cubica, ateada em succes- sivas e continuadas invasões, não os poupou; em compensação abundam as citações dos autores clássicos, que em numerosos documentos attestam a prodigiosa riqueza metallifera extrahida dos jazigos da peninsula. Phenicios, Gregos, Romanos, Carthagi- neses, emfim, os povos invasores do norte, todos, trabalhando sem descanso, não conseguiram exgotar as riquezas do sub-solo ibé- rico. HUbner resumiu excellentemente todos esses testemunhos numa Memoria magistral, depois de haver lançado os grandio- sos alicerces da archeologia peninsular durante o dominio romano e os primeiros períodos christãos nos differentes volumes do Corpus inscriptionum latinariim, comprehendendo as inscripções romanas pagãs e christãs, a que pôs a coroa nos volumes do Supplemento e na serie das Inscrições ibéricas. Ainda ha poucas semanas provei em estudos publicados na revista A Arte, a pro- pósito dos monumentos de Travanca e Balsemão, e em confe- rencias publicas sobre a architectura românica archaica (meses de junho e julho) feitas na Academia Portuense de Bellas Artes, que esses estudos fundamentaes c!e HObner constituem uma mina quasi inexgotavel, inclusivamente para toda a historia da arte peninsular durante a Idade Media. Embora se interponha a invasão árabe no século viii, todos devem saber hoje que a arte christã, feitas as contas ás inevitáveis destruições e derrocadas dos grandes templos que os suevos e godos haviam propositadamente erguido para serem fortalezas (e não fra- quele:{as, como no periodo gothico florido) — ganhou muito pelo contacto com o Islam. Ourivesaria portuguesa 247 Ficaram comtudo os pequenos templos, os cenóbios modestos que não affrontavam a retaguarda do invasor com torres e mura- lhas, castros e fossos; ahi se abrigou a arte, ahi floresceram in- numeras pequenas industrias ; ahi redigiram monges eruditissimos maravilhosos repositórios do saber lechnico, de que a Schediila divei^sanmi artium é o typo mais precioso (editio Alberi llg). COFRE— Fstilo Renascença, i540-i55o Antes d'este celebre tratado, compilado no fim do século xr, linha o eminente e santo prelado hispalense resumido toda a sciencia, toda a arte theorica, toda a technica tradicional de gre- gos, romanos, árabes e christãos ; havia criado uma encyclopedia incomparável e reconhecido a importância da tradição dentro da officina. Essa tradição não tem quasi limite de idade, tão vetusta é. E pode hoje classificar-se de autochtona \ • Nada mais convincente do que o recente magnifico trabalho de Alcaide dei Rio sobre as Pinturas y grabados de las cavernas prehistóricas de la pro- 248 Ourive:;aria portuguesa Com quanta razão D. José Amador de los Rios defendeu, em 1861, a originalidade do trabalho peninsular na ourivezaria da época latino-bysantina contra as pretensões de M. de Lasteyrie, que não queria ver nas peças incomparáveis do thesouro de Guar- razar (séculos v a vii) senão productos, oriundos dos paises seten- trionaes germânicos, reconhece-se, de anno em anno, com mais evidencia. O Sr. Pierre Paris, num trabalho muito notável e recentissimo (1903-1904), reconhece a existência de uma civilização ibérica, claramente de- terminada nos monumentos da arte e da industria, anterior a quaesquer in- fluencias que alcançaram a peninsula, procedentes do Oriente mediterrâneo por intervenção de gregos e phenicios. Essa civilização produziu depois aquillu que M. Pierre Paris chama arte ibérica de estilo gf^eco-oriental, cuja obra mais genial é, presentemente, a figura femi- nina de Elche {Dante dElche\ celebre e formosissimo busto adquirido pelo Museu do Louvre. Se a arte ibérica resistiu a todas as invasões de povos estranhos e ás impo- sições de modelos exóticos que um luxo sumptuoso, mas de bárbaro gosto, lhe apresentou, devia possuir a vitalidade precisa para manter durante o periodo visigodo de mais intensa acção (annos de 4io-65o) as suas tradições favoritas. Ainda hoje as podemos admirar em innumeros objectos das artes decorativas, que causam admiração a estrangeiros (e a nacio- naes), que por força os querem filiar nas categorias sabidas e conhecidas I SANTO ANTÓNIO E O MENINO Estilo português, século xvii vincia de Santander : Altamira, Covelanas, Homos de la Pena e Castillo na Portugália. Tomo 11, fase. 11, pag. 137-178, com numerosas e bellÍ3simas es- tampas. Ourivesaria portuguesa 24.Q II Primeiro periodo christào e Idade Media (até i5()o) A influencia poderosa da tradição sobre o estudo das condi- ções technicas do officio seria matéria para uma dissertação especial. Em outro logar e por mais de uma vez em conferencias recentes tratei de S. Isidoro de Sevilha, cuja obra capital foi uma fonte inexgotavel de estudo para todos os officios, uma encyclo- pedia de receitas de influencia incalculável. Os árabes, conquis- tando no século viii a Espanha, encontraram o terreno preparado, aptidões technicas, desenvolvidas nas ofiicinas dos artistas visigo- dos, que se haviam inspirado na obra do Santo Bispo. O árabe ensinou ao espanhol a sua admirável ornamentação das superfí- cies planas, o segredo do artista oriental, que produziu depois o estilo mudejar. Nas provincias que resistiram d invasão conti- nuaram os artistas godos produzindo obras notáveis, como a crn:{ de los Angeles, dada por D. Afonso II á cathedral de Oviedo, e a cru:{ de la Victoria ou de Pelayo, da mesma igreja; ambas teem inscrição e data, a primeira 808 A. D., a segunda 828 A. D. A notável cruz de D. Afonso III, do thesouro da cathedral de Santiago, vae mais alem, com a data de 912, isto é, 874. Do saber do Santo Bispo viveu durante séculos a peninsula. Depois, no fim do século xi, temos o celebre tratado (compi- lação, de Theophilus Presbyter, já citado. O monge allemão e ourives revela a influencia e o conhecimento dos processos de trabalho usados em Espanha ^ Assim chegamos ao século xii, XIII e xiv; nesta época já a arte hispânica concorre no mercado europeu. Por differentes vezes tenho escrito a respeito dos esmal- í Elle escreve no capitulo xlvii: De auro arábico; no capitulo xlviii: De auro hispânico ; no capitulo xliii: De viridi hispânico; o aurichalcum hispani- cumy citado pelo mesmo autor, era uma mistura de ouro e latão, que dava uma côr avermelhada ao metal, característica do ouro hispânico. Sobre a saida em grande escala de ouro hispânico para França e Aliem anha no tempo de Carlos Magno. v. H. Meyer, Die Strassburger Goldschm., p. xdi. 2 5o Ourivejjria portuguesa tes aragoneses, exportados para França no século xiv; nem admira este luxo, se já em 12^4 publicava D. Jayme de Ara- gão ' uma severa lei sumptuária, que provocou a de Sevilha de 123G, repetida logo em i258 por Afonso X. As obras que restam da época a que nos referimos (século xi-xiv) são mara- vilhosas. FRUTEIRO — F.siilo indo-portiigiiês, século xvi Citaremos : o cálice de ouro da Abbadia de S. Domingos de Silos, do século xi; um cálice de ágata, coberto de ouro e pedras preciosas, da mesma época, dado a S. Isidro de Leão pela > O domínio do Aragão alcançava até Monipellicr, enião uma grande cidade commercial, adquirida em 1204. Para a historia especial das relações politicas e sociaes de ambos os lados dos Pyrineus v. Cénac-Moncaull, /fis/oire Jes peuples et des étais Pyrénéens, Paris, 1860, 5 vols.; obra importante, mesmo para o estudo das questões artísticas e archeologicas d'esses países. Em 1290 encontramos Dalmacio Suner, feitor catalão em Byzancio. Em i3o2 tinha o Imperador Grego Androniko um corpo de mercenários catalães ás suas ordens. Heyd, Levantehandel, vol. i, pag. 523. Já em 1187 concedia Conrado de Montferrat o palácio verde de Tyro á Companhia Provençal, que se compunha de colonos de S. Gilles, Marselha, Ounve:jfaría portuguesa 25l Infanta D. Urraca; o cálice de prata dourada do Abbade Pela- gius (século xii); o cálice da Academia Real da Historia de Ma- drid (século XIV); o relicário polyptico de Nossa Senhora dei Cabello do Convento de Quejana (Alava), instituido em iSyS por Hernan I^pes de Ayala; o esplendido altar de prata da Ca- m^'m&m S^ 'r>;^*:*., ^^ -r. ^i sAi.vA — Estilo baroque, seailo xvii thedral de Gerona (1348); a silla do Rei D. Martin de Aragão (1393-14121, existente na Cathedral de Barcelona; as Tablas Alfonsinas da Cathedral de Sevilha (século xiii) e outros objectos, que dão uma alta ideia da antiga arte espanhola. No século xv já alguns ourives barceloneses foram chamados a Roma para a Montpellier e Barcelona. O Governo da colónia pertencia a um Consulado composto de seis indivíduos ; os colonos tinham fóro commum, próprio. Heyd, Levantehandel, vol. i, pag. 368. Em Alexandna, no Eg) pto, já Benjamin de Tu- dela encontrou mercadores aragoneses em iiSy. Em i26() havia cônsules ou feitores catalães em Alexandria, e em 1290 concluia-se um importante tratado commercial e politico entre o Rei de Aragão e o Sultão Kilawun do Egypto. Heyd, op. cit,, vol. 1, pag. 466. 252 Ourivesaria portuguesa execução de peças importantes, como eram as rosas e estoques de offerta, que os Papas costumavam enviar aos Principes da Christandade por serviços relevantes. Os centros das outras monarchias espanholas só apparecem em scena muito depois de Barcelona, de Valência e mesmo de Gerona ; primeiro Burgos no principio do século xv, depois To- ledo, em seguida Sevilha; Leão no começo do século xvi, Valla- dolid um pouco mais tarde, Cuenca, etc. Foi na passagem do fim do século XV para o século xvi, depois do impulso dado ao génio nacional pelos triunfos de Granada, que se produziu um movimento de rivalidade entre as cidades espanholas, na dotação dos" seus templos com as grandes obras da ourivezaria religiosa. A centralização ainda não havia conseguido amortecer o espirito provincial. Só em 1479 é que o Aragão, que vimos unido á Catalunha e Valência em i3o(), se fundiu com Cas- tella pelo casamento dos Reis Catholi- COS. Cidades de segunda ordem, prote- gidas por uma nobreza opulenta, que ainda não tinha abandonado os seus es- plendidos solares, pondo em moda um absentismo fatal á vida dos centros pro- vinciaes, rivalizavam em generosidade com os grandes centros; cada uma quis ter a sua peça cele- bre. E então que os ourivezes começam as suas correrias por toda a Espanha; que Henrique e António de Arphe, de Leão, Juan Alvarez, de Salamanca, Juan Ruiz, de Córdoba, os Becerriles, de Cuenca, Vozmediano, de Sevilha, executam as suas admiráveis obras de ourivezaria religiosa. Descentrali- zação, actividade, vida por todo o corpo hispânico; as grandes feiras provinciaes ainda deslumbravam os forasteiros e peregri- nos do século xiv e xv; hoje são apenas um pallido reflexo para exhibição de modas internacionaes muito duvidosas, que fazem ridiculissima figura ao lado da exhuberancia decorativa da tra- dição castelhana. GOMIL — Kstilo Renascença, século XVI Ourivesaria portuguesa 2 53 A arte da ourivezaria na Idade Media dependeu principalmente de dois factores, da protecção do alto clero e das ordens religio- sas; em segundo logar, do favor dos Principes e da nobreza que lhe imitou os costumes, As primeiras officinas vamos encontrá-las na Peninsula (como no resto da Europa) installadas dentro dos próprios conventos. Só na primeira metade do século xiv é que a ourivezaria se dedicou seriamente ao serviço profano e pro- curou installações independentes da Igreja '. Devemos, porem, recordar que esta divisão da actividade não foi repentina e que prende com a separação dos artifices em dois grupos, um de artistas religiosos, que perma- neceram fieis ás antiquissimas officinas dos conventos, e outro, separatista, que se foi collocar fora, no meio da cidade, debaixo da tutela dos grémios e das suas leis profanas. Este movimento de separação accentua-se á proporção que o espirito municipal se levanta, inspirado pelo elemento burguês. Os primeiros regimentos de ourivezaria que conhecemos datam do principio do se- salva - Secuio xvh culo xiii (Montpellier e Paris ^i; houve pois tempo, um secuio, para preparar a transição de um serviço para outro, que era indubitavelmente mais difficil, porque havia a atten- der a variadissimas exigências e a innumeros caprichos da socie- dade profana. A comparação da nossa arte não pode, nem deve fazer-se sem a deferência que devemos á arte irmã mais antiga da nossa vizi- » Renan, Discours, pag. 148 e seg.; i63 e seg.; e 178. Texier, pag. 985, pag. 1000 e seg. Labarte, op. cit, 2 Em outro logar demonstrámos já a relação de affinidade entre os Esta- tutos franceses e aragoneses. Depois de Montpellier appareceu Limoges e Toulouse do secuio xiv, com estatutos também em lingua provençal. Vid. Te- xier, op. cit. Antiquíssimo também o Estatuto de Paris, redigido pelo Prévot Étienne Boileau: Livre des Mestiers, anno de 1258-69, tit. xi, redacção origi- nal em Lacroix-Seré, pag. 38. 2 54. Ourivesaria portuguesa nha. Quando a nação portuguesa se tornou independente no sé- culo xii encontrou uma tradição leonesa e castelhana na politica, nas letras e nas artes, com todas as suas vantagens, vivaz e fecunda, não falando na tradição gallega, que na poesia e na arte dos Cancioneiros (musica, dança, illuminura) criou formas origi- naes e uma esthetica própria. Mas filhos já éramos da grande Hispânia. Nesta arte decorativa, como nas demais, temos pois de dar o primeiro logar, na Historia da Peninsula, á irmã mais velha — á espanhola ou com mais correcção á castelhana, aragonesa e catalã. A ourivezaría espanhola desenvolve-se em condições superiores. Teve sobre a portuguesa a vantagem de começar muito mais cedo a sua historia, e com relações de commercio por assim dizer universaes; mesmo para o estudo technico e theorico teve fontes de estudo muito antigas. Temos citado (e nunca será de mais) S. Isidoro (Bispo de Sevilha, fallecido em (536), na sua Kn- cyclopedia ou livro de Etymologias, em que trata de numerosíssi- mas questões technicas. Os livros xvi, pedras e metaes, pesos e medidas; xvui, arte da guerra, armas, musica, etc. ; xix, cons- trucções navaes, architectura domestica, vestuário e sua orna- mentação, jóias, etc, são os que nos interessam especialmente '. A intima ligação com a França (onde vemos esta arte tão flo- rescente no século xiv, a ponto de registar a historia 383 nomes de ourivezes no periodo de i337 a 1400) pela Navarra e Catalu- nha até á Provença, foco de cultura literária e artistica para onde os Papas haviam transportado a sua corte desde i3o5 (em Avi- nhão até iSyS); a posição e influencia excepcional de Barcelona em todo o Mediterrâneo no século xni ; as intimas relações d'este empório mercantil com o Império Grego de Byzancio, as suas colónias na Syria e no Egypto — tudo isto produziu bem cedo » Sobre a immensa influencia doesta obra v. Ebert, Geschichte der christ, latein. Literatur, vol. i, pag. 555 e seg. ; e Menendez Pelayo, Historia de las ideas estéticas en Espana^ vol. i, cap. 11. Ourivesaria portuguesa 200 admiráveis resultados. Kstas relações abriram á metade oriental da Peninsula horizontes vastissimos para o seu commercio e a sua industria. Em cincoenta annos (1229 a 1282) arranca o Rei de Aragão e Conde de Barcelona aos mouros as ilhas de Malhorca e Minorca, os reinos de A'alencia e Murcia, e expulsa os franceses da Sicilia; em i324 toma ainda a Sardenha. Emquanto na parte Occidental lutavam os Reis de Castella, ora com os inimigos do SALVA — Fstilo baroque. do meado do século xvii sul, OS mouros, ora com os rivaes do litoral, os portugueses, con- tinuava a casa de Aragão a sua carreira gloriosa fora da Penin- sula, fundando ao mesmo tempo, por um governo sábio e liberal, a prosperidade interna da monarchia. A serie de conquistas que apontamos preparou a ultima e mais grandiosa empresa, a con- quista do reino de Nápoles em 1442. A 25 de fevereiro do anno seguinte fez o Rei D. Afonso a sua entrada triunfal na cidade, em um carro de ouro, como um antigo César, a coroa de Nápoles sobre á cabeça, e adeante de si, sobre uma almofada de brocado, mais seis diademas: os de Aragão, de Valência, de Malhorca, da Córsega, da Sardenha e da Sicilia. 256 Ourivesaria portuguesa O que este grande monarcha fez em favor das sciencias e das artes não sabe a historia como encarecê-lo. A vida dos mais emi- nentes sábios, como Georgius de Trebizonda, Chrysoloras, Lo- renzo Valia, Bartholomeu Facio, Panormita, o pode dizer. (Burck- hardt, Die Cultur der Retiaissaitce, pag. 219;. A arte deve-lhe, para citar só um facto, o incomparável arco triunfal de Castel-Nuovo; e este arco symbolizava o predomí- nio espanhol na Itália, que se havia de estender a toda a Europa com o advento de Carlos V (i3i6). A tomada de Granada e a descoberta de Colombo, no mesmo anno, foram o re- mate do novo edifício poli- tico. SALVA — Estilo de i65o Quão differente foi a nossa sorte I Emquanto os espanhoes avançavam pela Kuropa dentro, tomando posse dos centros da civili- zação antiga e da cultura da Idade Media (Itália, sul da Allemanha e Paiscs- Baixos, linhas do Rheno e do Danúbio), partíamos nós para o Oriente, pelo mar tenebroso; abandonávamos quasí a Europa; e teríamos perdido o fio ás relações occidentaes, se não fora a continua emigração de gente europeia, que vinha esperar nas margens do Tejo a resolução dos novos problemas económicos. Este movimento inverso explica, de uma maneira sufficiente, a differença entre o desenvolvimento artístico dos dois países da península, e esta ditferença não é a nosso favor em nenhuma das quatro artes, e ainda menos nas artes industriaes até fins do século xv. Não alludimos a uma ou outra obra ex- cepcional; não é isso o que se trata de confrontar; compare-se o movimento, a marcha geral, fase por fase, desde o nascimento de uma arte ou de uma industria até sua extincção. A emigração artística para Portugal, a introducção de elementos estrangeiros não podia desviar as consequências necessárias, fataes, do movi- Ourivesaria portuguesa 257 mento a que obedecemos; podia apenas actuar isoladamente so- bre certas organizações privilegiadas, e isto no curtissimo espaço de trinta annos K D'ahi uma decadência rápida, quasi repentina, como a de uma planta exótica que muda de clima. Qualquer SALVA— Kstilo Renascença movimento artistico, qualquer arte é o resultado de uma progres- são histórica sensivel, mas lenta, durante séculos; não se importa, repetimo-lo 2. A historia da ourivezaria e joalharia espanhola é mais uma prova d'isso, como vamos ver. O foco d'essa industria > É a duração do reinado de D. Manuel (1495-1521), o movimento come- çou porem já nos últimos annos do reinado de D. João 11. 2 A pintura portuguesa nos séculos XV e XVI, Porto, 1881, pag. 9. »7 258 Ourivesaria portuguesa é O Aragão e a Catalunha ', o domínio doesse grande Príncipe que em 1443 abria as portas da Itália aos espanhoes. A progres- são abrange dois séculos. Nesse mesmo anno triunfal estávamos nós de luto; expirava então o Infante Santo nas enxovias de Tanger; pouco depois começávamos nós as terríveis questões internas que cobriram de precioso sangue os campos de Alfarrobeira (1449) ^ ^^ termina- ram no cadafalso de Évora (1483). Emquanto aragoneses, cata- lães e valencianos se tinham fortalecido durante dois séculos sob a influencia das antigas civilizações, que haviam nascido em torno do Mediterrâneo; emquanto castelhanos e leoneses desciam á Andaluzia a admirar em paz as ultimas maravilhas do génio árabe no Alcazar de Sevilha (i36o, a Alhambra é de i258), Por- tugal procurava reatar antiquíssimas relações através do immenso oceano; sustentava a Europa, cansada, esgotada, e acordava o Oriente do seu torpor ^ ! Eis a differença de situação entre Por- tugal e a Espanha. Todo o reino de Aragão tirou grande proveito das conquistas que enumerámos; a sua capital, Barcelona, tornou-se a rival de Génova, principalmente durante o reinado do grande D. Jaime I, o Conquistador ^. Da parte do Príncipe, liberdades locaes e com- munaes concedidas com a maior franqueza, protecção racional. > Capmany, Memorias y prova que Barcelona já tinha um commercio activo de pedras preciosas com o Oriente no século xiv; v. também Heyd, cap. Edeisteine, vol. 11, pag. 58 1. Barcelona e Montpellier, cidade ligada, politi- camente, ao Aragão tinham corporações de ourivezes organizadas, com esta- tutos, já no século anterior. Vid. Texier, pag. 1200. 3 A Europa estava, com efleito, exhausta. Em 1492 não tinha ella nos seus cofres mais do que um milhar de milhões de francos, segundo Kiesselbach, Der Gang des Welthandels, pag. 3o i e seg. Vid. as provas e a indicação das causas no cap. Sobre o commercio oriental das especiarias^ em Arch. art,, fase. IV, pag. i36 e seg. Posteriormente ao nosso estudo de 1877 appareceu a lúcida exposição histórica do allemão Heyd, em 1879: Erschiip/ung der Han- delsnationen am Mittelmeer, que occupa a maior parte do vol. 11 da sua obra. 3 Basta recordar que o primeiro código de commercio, a primeira compi- lação de leis marítimas, o Consolai dei mar, foi impresso em Barcelona em 1458 em língua limosina, espalhando-se depois por toda a Europa. Sobre as varias edições e traducções, vid. o Catalogo da Bibliotheca Salva, vol. u, pag. 692. A melhor fonte de estudo é a traducção francesa commentada de Boucher. Paris 1808, 2 vols., in-8.° Ourivesaria portuguesa 259 dispensada largamente ao commercio e á industria; da parte do povo tenacidade, iniciativa corajosa, actividade commercial, génio inventivo para as empresas industriaes, — e tudo isto ajudado, idealizado por notáveis faculdades artisticas — eis os elementos que concorreram para a singular fortuna da casa de Aragão, uma das maiores da Europa nos séculos xiv e xv. A politica centrali- zadora e niveladora de Carlos V acabou com os foros e privilégios de D. Jaime e seus successores. O Aragão fundiu-se na immensa casa de Habsburgo e Borgonha. A sorte que tiveram os foros aragoneses no tempo do Imperador, quis Felipe II pre- pará-la aos flamengos, mas o tempe- ramento germânico resistiu e venceu afinal. Entre a historia dos paises de Flandres e do Aragão-Catalunha, entre Bruges e Barcelona ha, com effeito, mais de um ponto de contacto : o mesmo espirito municipal que ensina o respeito da lei ; a mesma força nas corporações, que cria industrias florescentes e a ri- queza da classe media; a mesma bur- guesia valente e audaz nos mares e nos combates, que abre a essas industrias um mercado universal. Com relação á ourivezaria e joalharia (a que nos temos de restringir) isto já era assim, no século xiv. Davillier fornece noti- cias valiosas sobre a corporação dos ourivezes de Barcelona, que se referem ao século xiv e xv, e que podem ser completadas pelo estudo de Ebert. A organização do ensino era solida; a disciplina dispunha de penas severas; as relações entre os vários membros da officina eram rigorosamente fiscalizadas, para prevenir toda e qualquer injustiça do mais forte, ou desobediência do subordinado. J05E PEREIRA LEITE Ourives-artista Conclusão: Inventários. Faollldades para o Estudo O limitado espaço de que disponho não me permitte traçar aqui a historia das peças mais arcaicas da ourivezaria peninsular, e descrevê-la; já citei as mais importantes; aqui teria de restrin- gir-me aos artefactos portugueses e aos que existem em collecções 25o Ourivesaria portuguesa portuguesas e estrangeiras. Porem, a descrição sem as estampas correspondentes, em escala avultada, não é proveitosa. Para as reliquias dos nossos vizinhos, guardadas em Espanha, França (Paris-Cluny) e Inglaterra (South-Kensigton) ha estampas magistraes em publicações condignas, que enumeramos cuidado- samente nas Fontes de consulta. Para lá remettemos o leitor. Quem não puder adquirir essas obras tem ainda o recurso das photographias, nas series opulentas da celebre casa Laurent de Madrid, e a divulgação em volumes económicos. Portugal descuidou-se durante longo tempo. A collecção de photographias da casa Pardal (i 865-1 872), que Começou a archi- var os thesouros do chamado Museu de arte ornamental existente outr ora em duas salas escuras da Academia de Bellas Artes {Con- vento de S. Francisco de Lisboa) foi uma mui louvável tentativa, hoje esquecida; mas o photographo reproduziu somente dentro da collecção official e não se importou com os outros thesouros da arte existentes em Lisboa, por exemplo na Sé, em S. Vicente, em S. Roque, nos Paços Reaes das Necessidades, Ajuda, etc. A preciosa collecção do Rei D. Fernando (Necessidades) fora mandada reproduzir pelo Museu de South-Kensington, que já muito antes delegara o photographo Thomson para archivar os monumentos mais característicos do reino. Figurou a serie do Rei na Exposição de Vienna (iSyS) e depois trouxe-a eu ao Porto para outro certamen. O publico de Lisboa pôde vê-la e admirá-la no Museu do Carmo, ao qual fora dada. Continuou porem o se- questro dos thesouros das cathedracs, confrarias, etc, até á grande exposição de 1882, sem que o enorme dispêndio então feito no Museu das Janellas A^erdes servisse ao publico, pois das reproducções de Carlos Relvas fizeram monopólio official, em be- neficio dos caprichos de um amador '. O photographo Sartorius de > As casas Biel do Porto e Rocchini de Lisboa chegaram a fazer offertas razoáveis, no caso de se abrir o concurso para as reproducções. Eu instei nesse sentido ; mas o Inspector da Academia de Bellas Artes de Lisboa (Delfim Gue- des) queria, por força, favorecer o seu particular amigo Carlos Relvas. Con- struiu-se-lhe até, de graça, e de propósito, um atelier photographico de madeira e zinco no jardim do Museu de Lisboa, que custou a bonita, mas inverosímil somma de4:5ooííí)Ooo réis. Fomos lá vê-lo, por dentro e por fora; e deu-se-lhe o monopólio das reproducções, sem nenhuma condição, ad libitum, A historia por miúdo fica para outro logar. Ourivesaria portuguesa 201 Coimbra e depois a casa Biel do Porto " ajudaram a reproduzir nos últimos annos peças desconhecidas e valiosas; Rocchini enn Lisboa e Serra em Évora vulgarizaram outras jóias da arte; mas tudo isso foram migalhas ^. Falta um inventario, em forma, da ourivesaria e joalharia na- cional, com reproducções a preços razoáveis. Os desenhos de Ca- sanova, que acompanham o catalogo official de 1882, não são dignos do certamen, nem do valor das peças reproduzidas. Per- deu-se uma occasião única para auxiliar os estudos da historia das artes decorativas em Portugal e criar uma boa receita per- manente para o Estado pela venda das photographias ! Resta-nos esperar pela munificência sobejamente provada do Sr. Bispo- Conde D. Manuel, que organizou ha poucos annos admiravel- mente o opulento Museu de arte religiosa da mitra. O catalogo já tarda um pouco; era fácil adeantar, ao menos, as photogra- phias, pois esse Museu da mitra e a collecção adjunta ao Con- vento Real de Santa Clara (edificio moderno), em devoção da Rainha Santa Isabel ^, contém o melhor núcleo que podemos apre- sentar 4 de peças de ouro e prata, esmaltes, jóias, não falando nos estofos tecidos e panos bordados, etc, do periodo de 1000- i5oo. E por aqui ficarei, por ser este limite o que abrange um dominio da arte, em parte inédito e noutra parte, menos conhe- cido. O século XVI é o de uma pujante florescência; abundam as provas ; mas são peças de estilo mais corrente ^ Porto, agosto de ujo8. Joaquim ue Vasconcellos. > A Arte e a Natureza em Portugal. Publicação em 8 vols e yó fase. = 384 estampas, com texto em português e francês. 3 O Álbum de Aveiro e o de Vianna (Exposições de artes decorativas, an- tigas) deram bom auxilio aos estudiosos. 3 O Sr. Dr. Ribeiro de Vasconcellos fez a historia d*essas relíquias, com boas illustraçóes e excellente critério, na Vida da Rainha Santa^ em 2 vols. Em Guimarães, a Collegiada de Nossa Senhora da Oliveira seguiu o exem- plo, dado pelo Sr. Bispo-Conde. Bem haja. 4 h claro que não devemos esquecer a grande collecção do Museu Nacio- nal ( Janellas Verdes) ; d'esta não ha, porém, ainda hoje ! nem esboço de cata- logo, apesar de ser facillimo organizá-lo com os dados da Exposição de 1882. ^ O catalogo chronologico e critico da ourivezaria e joalharia nacional, desde a fundação da monarchia, mesmo separado dos periodos históricos e ante-historícos, obrigaria a um volume esoecial. Está feito nos nossos mss. 202 Ourivesaria portuguesa NOTAS EXPLICATIVAS SOBRE AS ESTAMPAS DO TEXTO 1. Cruz latina de cobre, portátil, estilo latino-byzantino ; classificada de his- pano-arabe, e como pertencente ao século ix, na coUecção do fallecido Marquês de Sousa-Holstein. Ignora-se o paradouro actual. 2. Cruz latina, processional, de ouro, ornamentação de filigrana, com cabo- chons de pedras preciosas. Altura o",6o. No centro tinha uma reliquia do Santo Lenho; nas costas outra. Foi do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, onde era conhecida como cruz de D. Sancho I. Feita em 12 14, segundo a inscripçao original da haste, por ordem do monarcha. Palá- cio Real da Ajuda. 3. Cruz processional, de prata. Tem de altura i",3o e pesa 22 kilogrammas. Foi do Mosteiro de Alcobaça. Estilo gothico florido, fim do século xiv. Peça contemporânea e irmã, no estilo, da custodia n.<* 7. Museu Nacional de Bellas Artes, Lisboa. 4. Cruz processional, de prata. Altura i^jiç. Pertence á Sé do Funchal. Da- diva de El-Rei D. Manuel. Estilo manuelino ; este exemplar, de magni- fico lavor, soífreu bastante do tempo. 5. Cruz de altar, de prata, com o vulto dourado. Altura o",9i. Na peanha, tri-partida, alternam os passos da Paixão de Christo com scenas mytho- logicas. Lavor perfeitissimo, que pertenceu ao Mosteiro de Belém. Es- tilo da Renascença, cerca de 1540. Museu Nacional, Lisboa. 6. Cálice de prata dourada, com patena. Altura o",35 V»- Estilo gothico-ma- nuelino. Pertenceu ao Convento da Ordem de Christo em Thomar; hoje no Palácio Real da Ajuda. El-Rei D. Luis I mandou uma imitação perfeitíssima d'este cálice, feita pelo ourives Leitão & Irmão, de Lisboa, como presente, ao Papa Leão XII I. 7. Custodia de prata dourada. Altura o'",92. Largura o"^25. Segundo uma ins- crição foi mandada fazer pelo Abbade de Alcobaça, D. Frei João de Omellas, na era de 1404 (i366). As volutas, que ladeiam o hostiarío, são do meado do século xvii e substituem antigos botaréos de estilo go- thico. Museu Nacional de Bellas-Artes, Lisboa. 8. Custodia de ouro esmaltada, chamada de Belém, fabricada pelo celebre ou- rives Gil Vicente; acabada em i5o6. Altura o",83. Peso 3o marcos de ouro. É sobremodo notável o lavor do esmalte, na parte figurativa, que lhe dá um logar único na historia da arte nacional. Na parte constructiva soffreu alterações consideráveis. Legado de D. Manuel ao Mosteiro de Belém. Palácio Real da Ajuda, Lisboa. 9. Porta-paz de prata. Altura o'",56. Largura o'",28. No centro Nossa Senhora com o Menino, sobre a meia-lua, e um espinheiro florido. É uma das obras de ourivezaria mais perfeitas e caracteristicas, no estilo manuelino. Ourivesaria portuguesa 203 Foi do Convento dos Eremitas de Santo Agostinho de Nossa Senhora da Graça de Villa Viçosa. Museu Nacional, Lisboa. IO. Cofre de bronze dourado, com lavores de prata branca. Comprimento o",34. Estilo da Renascença, cerca de 1540-1 5 5o. Parece-nos haver nelle eviden- tes sinaes de influencia allemã. O ornato linear, de estilo oriental (mores^ che)^ recorda as composições de Peter Flõttner. Ha ainda muita analogia com a cruz n.** 5, na parte figurativa. Foi do Mosteiro de Belém. Hoje no Museu Nacional, Lisboa. 1 1 Imagem de prata, em parte dourada. Santo António com o Menino Jesus. Altura o",3o. Estilo nacional do primeiro terço do século xvii. Renas- cença, evolucionando para o estilo barôco. Peça característica na con- cepção e na parte technica. Museu Nacional, Lisboa. 12. Fruteiro circular, de prata dourada, com pé. Diâmetro o*,32. Fim do sé- culo XVI. Estilo indo-português, provavelmente de uma ofRcina de Goa. A coroa ducal aberta parece indicar o possuidor D. Constantino de Bragança, Vicc-Rei da índia. Collecção do Palácio Real da Ajuda. i3. Salva circular, de prata dourada, repoussée. Estilo baroçt:e, lavor relevado, bem nacional, do meado do século xvii. A execução, algum tanto carre- gada com elementos decorativos, é de uma grande virtuosidade e de eífeito sumptuoso. Museu Nacional, Lisboa. 14. Gomil grande de prata dourada, carregado com uma ornamentação fantás- tica, no estilo da Renascença, cerca de 1540. Tem prato correspondente. Antiga collecção de El-Rei D. Fernando; passou para seu neto El-Rei D. Carlos. Paço da Penha, Cintra. i5. Pequena salva, recortada, à jour. Diâmetro o" .3o. Trabalho do principio do século XVII. Pertencia em i883 ao Visconde de Valdemouro. Aveiro. 16. Salva oblonga, grande, de prata repoussée, no estilo baroque (Luis XIV), do meado do século xvii. No centro, em medalhão oval, a representação do episodio do ovo de Columbo. Aparte o anachronismo dos trajes, é um primor de arte, em tudo invenção original do celebre ourives por- tuense Pereira Leite. Pertencia em i883 ao negociante Th. Alves Gui- marães, Prior que foi da Ordem do Carmo, grande protector do mallo- grado artista. Paradouro actual, ignorado. Photographia inédita. 17. Salva redonda de prata, relevada, estilo do meado do século xvii (tulipas e rainunculos estilizados, género hollandês). No centro Cupido sobre um leão (o amor vencendo a força); parece imitação de um camapheu antigo. Do mesmo artista e do mesmo possuidor em i883. Paradouro actual, ignorado. Photographia inédita. 18. Salva em estilo da Renascença por João Monteiro, ourives do Porto. Diâ- metro o",57. Trabalho primoroso de um dos primeiros artistas contem- porâneos. Officina na Rua do Bomjardim. 19. Retrato do ourives- artista José Pereira Leite, primeiro lavrante de prata do norte do país, na segunda metade do século xix. Obteve a primeira distincção na Exposição de Ourivezaria Nacional da Sociedade de Ins- trucção do Porto em i883. Falleceu cerca de 1887. Retrato inédito. 254. Ourive!faria portuguesa FONTES DE CONSULTA Monumentos arquitectónicos de espana, com o texto espanhol e os addita- mentos que os allemâes Uhde, Junghãndel e Gurlitt publicaram moderna- mente, de 1880 em deante. Os franceses, em architectura não são isentos de parti-pris (por exemplo, Enlart). O inglês W. Watson (1908), acaba de publicar um estudo importante sobre a Architectura portuguesa (Lon- don, A. Constable), em que envolve um pouco as artes decorativas. Museu espanoi. de antiguedades, sob a direcção de Rada y Delgado ; e as importantes monographias estrangeiras que completam a historia da archeologia da arte na peninsula, em parte adeante citadas. A enumeração completa encheria uma dezena de paginas. Escolheremos só os allemâes HUbner e Justi; os franceses: Cariaillac. Pierre Paris (1903-1904), e Da- villier. Deixamos de parte os autores sobre a pintura castelhana, arago- nesa, catalã, etc, posto que os quadros dos séculos xiii a xvi contenham espécimens da ourivezaria, joalharia, armaria, etc, peninsular, pintados. Os dois volumes de Sanpere y Míquel, sobre os Primitivos hespanhoe:, o provam; os quadros gothicos do nosso Museu Nacional do mesmo modo M. BoRRELL, Tratado de dibujo. Madrid, 1866-1878, 3 vol., foi. peq. — Esta obra, capital para a Espanha, não perdeu, em trinta annos, o mérito e o valor, que lhe assinalámos em 1879. (Reforma do ensino do desenho). Posteriormente, as publicações mais valiosas espanholas, na forma de manuaes, completaram e ampliaram essa obra fundamental. Veja-se adeante. A Espanha tinha oficialmente uma cadeira de Historia da Arte e Archeologia antes de 1875, pois a Diputacion provincial de Barcelona mantinha a Escola de Bellas Artes, subsidiava pensionistas e pagava a D. José Manjarrés (que a imprimia em 1873), a «prímera Historia ilus- trada dei Arte que se ha publicado en Espafiu» — um volume de 370 pagi- nas, com 195 gravuras. Manjarrés começou os seus Cursos livres em lições dominicaes nos annos de 1868 a 1869; passaram a ser lecciones comoassi- gnatura em 1872, entrando no programma oíiicial, obrigado, do professor, que passou a cathedratico^ e ainda o era em 1880. Os manuaes espanhoes, a que acima me refiro, são principalmente os de Gudiol y Cunill, Vicb, 1902; La Roza y Cabal^ Oviedo, 1893; Pena y Fernandez, Sevilla, 1890; Miguel y Baia, Barcelona, 1879 e 1892, etc. Menendez V Pelavo, Historia de las ideas estéticas en Espana. Madrid, i883 e annos seguintes (6 volumes, até 1889).— Lavor de grande mérito, cuja leitura recommendo ha vinte annos ; que recommendarei sempre aos nossos descobridores, nacionalistas de estufa, que teem medo do ar dos Pyreneus. Ourivesaria portuguesa 265 Do MESMO, O discurso de recepción publica^ na Academia de Bellas Artes de San Fernando, em 3 1 de março de 1901. Madrid, Fortanet. Complemento da obra precedente. Luís Domenech, Historia general dei Arte, Dirigida por L. D. Barcelona, Mon- taner y Simon. — Estão publicados oito volumes, que abrangem também as artes decorativas e os trajes. Obra de primeira ordem, inclusivamente para o período pre-historico e proto- histórico. São do mesmo arrojadís- simo editor da Historia general de Espana^ de Lafuente, continuada por Valera (Madríd, 1877-1882; 6 vol.), outro monumento da imprensa editorial espanhola, cheio de magnificas illustrações. Joaquim de Vasconcellos. — O estudo histórico especial (inédito), em 2 volu- mes sobre a Ourivesaria e Joalharia portugueza, e varias monographias do autor sobre as artes dos metaes fToreuticaj no Boletim da Associação do Carmo, desde 1882; na Arte Portuguesa, revista do Centro Artistico do Porto desde 1880; na Revista da Sociedade de Instrucção, do Porto desde 1882 ; na Revista de Guimarães, etc, no decurso dos últimos vinte e cinco annos. Os theorícos antigos espanhoes dos séculos xv, xvi e xvii foram explo- rados pelo autor, pode dizer-se, pela prímeira vez em Portugal, systematica- mente, desde que começou a publicação da Ar cheologia Artística (1872). Continuamos isolados nesse campo. Vide a respectiva Bibliographia, am- plíssima, no estudo sobre Diirer (1877); no Ensaio sobre a architectura manuelina (i885), appendice 11, etc. Estatutos Portugueses dos ourívezes da prata e ouro, e dos ofiicios manipuladores dos metaes, em geral. Grande collecção da Biblioteca Mu- nicipal do Porto (44 volumes), que inventariei de 1877-1878; e de que publiquei extensos extractos na Revista da Sociedade de Instrucção do Porto, Annos de 1881 -i883, na Revista de Guimarães e na separata intitu- lada Toreutica, Catalogo da exposição de arte ornamental. Lisboa, 1882, em fascículos, com estampas. — O volume de A. F. Simões, sobre este certame, é fraquíssimo. Lisboa, 1882. Álbum da exposição de aveiro (secção archeologica). — Aveiro, i883. Álbum da exposição de vianna do castello (secção archeologica). — Vianna, 1898. O Álbum Relvas, da Exposição de Lisboa, de 1882, foi um capricho de um notável amador-photographo, mas sem efTeito para o publico, pela sua tiragem limitadíssima (5o ex.). Ha, porem, d*elle o Álbum Completo, em 4 volumes (cerca de 400 estampas), exemplar único, dado ao Museu Nacional, que é precioso. Na exposição de Ourivesaria e Joalharia Nacional, que orga- nizei no Porto em i883, tirou a casa Bíel setenta e tantos clichés, mas não 266 Ourivesaria portuguesa conseguiu assinatura para o album. Das exposições, chamadas archeohgi- cas, realizadas em Lisboa por i85o e tantos, e no Porto (1865-1867), não ficaram photographias, infelizmente. E. A. A1.1.EN e Ferreira, Catalogo da coUecçáo de moedas visigodas^ perten- centes a Luis José Ferreira. Porto, 1890. Com uma Introducção valiosa de Allen. — Junte-se o catalogo da collecção Ferreira Carmo (hoje do Conde do Ameal, pelo Dr. Pedro Augusto Dias (Porto, 1877), onde trata das offi- cinas visigodas ; os volumes do Dr. Teixeira de Aragão sobre as moedas portuguesas ; emfim, a grande obra de Heiss ( Aloys), Description générale des Monnaies des Róis Wisigoths. Paris, 1872. O ARCHE01.0G0 PORTUGUÊS. Publicação muito valiosa do Museu Ethnologico Português, dirigida pelo Dr. Leite de Vasconcellos. — Appareceram até hoje, junho de 1908, i3 volumes. Lisboa, Imprensa Nacional. PoRTVGALíA. Revísta dirigida pelos Srs. Ricardo Severo e Rocha Peixoto. Cus- teada toda pelo primeiro, sem subsidio algum. Porto, 7 fascículos, que bem se podem classificar de volumes, e lhe conquistaram um dos primeiros logares na secção scientifica da Península. Historia y arte. Revista mensal illustrada. Madrid, marzo de 1895 a fevereiro de 1896. Director, Adolfo Herrera. — Com profunda pena, vimos terminar esta excellente publicação no 2." volume ! Contém monographias interes- santíssimas sobre as artes decorativas da Espanha. Entre as revistas portuguesas especiaes, é justo ceder o primeiro logar ao Boletim do Museu do Carmo; as revistas de Lisboa; Artes e Letras (vários volumes); a Arte, que veio depois; a Arte Portuguesa, editada por Casanova ; a anterior, do mesmo titulo, que o Centro Artístico inau- gurou no Porto — tudo isso contém elementos aproveitáveis, mas dispersos. A publicação da Casa Biel & C* : ^4 Arte e a Natureza em Portugal, ainda é, afinal, a contribuição mais valiosa dos últimos cem annos para o estudo da Arte, da paisagem e da gente portuguesa e seus costumes. Publicaram-se oito volumes, com 384 estampas (phototypias), e texto ra- zoavelmente elucidativo, em português e francês. JuAN F. RiANO, The industrial arts in Spain. London, 1879. Publicação official do Museu de South-Kensington. Ensaio muito valioso, illustrado. — Não deve confundir-se (como tenho notado em escritores nossos, que fingem consul- tar livros de Arte sobre assuntos espanhoes) com outra obra do mesmo autor : o Catalogo dos objectos de Arie espanhoes do dito Museu : Cias- sijied und descriptive Catalogue 0/ the art objects of Spanish production in the South K. M. London, 1872. Pertence-lhe um supplemento sobre as tapeçarias: Report de 3o de abril de 1875, de Riano. Bem entendido : tape- çarias do Palácio Real de Madrid. São para cima de MtL 1 que conhecemos desde 1871. Como os objectos portugueses andam, mesmo em South- Kensington, baralhados com os espanhoes (observámos esta confusão por Ourivesaria portuguesa 267 toda a Europa, em viagens desde 1865-1876, e ainda depois em 1881 !) é mister fiscalizar as classificações de todos os especialistas espanhoes^ incluindo as de um dos mais eruditos, o nosso fallccido amigo Riafío. O bem conhecido Sr. J. C. Robinson (escritor sobre Grão- Vasco) na obra em seguida mencionada, e que é também objecto de confusão com as duas de Riafío, deu-se uns ares de quem resolve o enygma, e achou os caracte- res de differenciação entre os productos espanhoes e portugueses nas ar- tes decorativas. (Vide a Introducçâo, pag. 1 1). Já respondi a essa pretensão na Revista da Sociedade de Instrucção (vol. 1, 1882, pag. 4o3). No fim doesta nota vae o titulo da terceira obra que, como as duas citadas, foram matéria incógnita para a illustre Commissâo da Exposição de Arte Orna- mental de 1882 (Lisboa). É justo dizer que o medico-archeologo Sr. Dr. Sousa Viterbo consultou Riaiio e o Catalogo da Loan exhibition, de 1881, muito depois de fechado o certamen de Lisboa ; mas como o Boletim da Sociedade de Geographia de Lisboa (onde imprimiu o seu escrito em Junho de i883), andava atrasado nas datas, parece, á primeira vista, que o Sr. Viterbo tinha conhecimento em 1882 do que andava impresso em Inglaterra em 1872 e 1879. No Catalogo oílicial da Exposição de 1882 não apparece vestigio de haverem seus autores folheado qualquer dos três guias que indicamos: i. Catalogo de objectos espanhoes em South-Kensington (1872); 2. Resumo histórico de Riafío (1879); e 3. Catalogo de objectos de arte ornamental expostos em Londres em 1881, de empréstimo (on loan) ; porque, a final, foi esta exposição londrina que provocou a de Lisboa, de 1882. Eis a ver- dade. Catalogue of the special exhibition of spanish and portuguese ornamental ART, South-Kensington Museum, 1881. Kdited by J C. Robinson. — A in- troducçâo é de Robinson ; o Essay on spanish art é de Riafío, reimpresso da primeira obra, supra, de 1872. Este catalogo da exposição de Londres custava um shilling (225 réis); o da Exposição irmã de Lisboa, 1^440 réis. Davillier (baron ch \ Les arts décoratifs en Espagne au moyen age et à la Renaissance, Paris, 1879. Edição, ampliada dos estudos feitos na revista L'Arty de Paris. Obra indispensável, que a famosa Commissâo de 1882 igual- mente desconhecia. Esqueceu á illustre commissâo também o seguinte : Do MESMO, Recherches sur Vorfévrerie en Espagne, au moyen age et à la Renaissance. Paris, 1879. In-4." Hubner (Prof. Emil.). — Haveria a citar uma biblioteca, taes, tantos e tão valio- sos foram os seus estudos sobre a archeologia da peninsula. Resumiremos : i ) O corpo das inscrições latinas (vol. 11 da grande serie da Academia de Berlim), com supplemento. 2) As inscrições latinas, chriS" tás, com supplemento. 3) As inscrições ibéricas, 4) A memoria premiada La arqueologia de Espana. Barcelona, 1888; emfim, entre a numerosís- sima serie de pequenas monographias, a que tem o titulo : Objetos dei comercio fenicio encontrados en Andalucia, em que aprecia as importantissi- 268 Ourivesaria portuguesa mas descobertas de George Bonsor e seus estudos^ publicados na Revue Archeologique de 1898-1899 e depois em volume. Temos presente uma separata da Revista de ArchivoSy Bibliotecas y Museos (com que o pro- fessor allemão brindou somente alguns amigos). Madrid, 1900. E. Renan, Discours sur Vétat des Beaux-Arts en France au quatorpème siècle. Faz parte da Hist. littéraire de la France au xiv siècle. Vol. n. Paris, i865, pag. 123 e seg. Abbé Texier, Dictionnaire d'orfévrerie, de gravure et de ciselure chrétiennes (com a historia dos metaes, esmaltes e pedras preciosas). Paris, iSSy. In-8.« gr. — Pertence á celebre Encyclopedia theologica, de Migne. Tem ainda grande valor. Paul Lacroix et Ferdinand Serre, Histoire de Vorfévrerie, joaillerie et des anciennes communautés et confrèries, etc. (France et Belgique). Paris, i85o. In-8.*» gr. — Obra indispensável, com os mais antigos documentos, Esta- tutos dos officios (1234) e marcas. 450 estampas, em parte coloridas. Linas (Charles de), Orfévrerie mérovingienne. «Les oeuvres de Saint-Eloi et la verroterie cloisonnée». Paris, 1864. In-8.*— Esta obra, infelizmente já muito rara (tiragem 100 exemplares), trata com a mais solida erudição e ajuizada critica da ourívezaria peninsular desde o século v até ao sé- culo IX ; e deve confrontar-se a cada momento com os trabalhos de Mr. de Lasteyrie e Amador de los Rios. John H. Pollen, Ancient and modem gold and silversmith's work in the South Kensington Museum^ described, etc. London, 1878 — É o grande Catalogo illustrado das coUecções (edição critica). Como supplemento, a grande serie illustrada, em fascículos, The South- Kensington Museum. A. Darcel, Notice des émaux et de Vorfévrerie (collecçóes do Louvre). Paris, 18Ò7. — Edição critica. H. Barbet de Jouv, Notice des gemmes et joyaux (idem). Paris, 1872, Ferlinand de Lasteyrie, Description du trésor de Guarrajar. Paris, 1860. F. Didot. D. José .\mador de los Rios, El arte latino-by^antino en Espana y las Coro- nas de Guarra^ar. Madrid, 1861. Nos Monumentos Arquitectónicos de Es- pana; e em volume separado. Outro estudo de Rada no Museu Espaúol, (vol. ui), é de 1874. Ourivesaria portuguesa 260 Palx Mantz, Notes sur Vorfévrerie anglaise, na Gajette des Beaux-ArtSy 2ême periode, tomo ix e tomo xvi. WiLFRiED J. Cripps, ColUgc and Corporation plate. «A Handbook to the re- productions of silver plate in the South-Kensington Museum». Lon- don, 1881. Hlytens (Jules), Recherches sur les corporations gantoises. Gand^ 1861. Fo- lio. — A historia dos armeiros da mesma cidade contém outras e mui pre ciosas informações que aproveitam á ourivezaria e seus processos techni- COS. Veja-se : Ferdinand Vanderhaeghen, Histoire de la Gilde souveraine, etc. dite chef-confrérie de Saint-Antoine à Gand. Gand. Septembre, i8C"o. In.8.*» gr. Dr. J. Stockbauer. NUrnbergisches Handwerksrecht des XVI Jahr. Nlirnberg, 1879. In-4." gr. — Sobre as Corporações da Allemanha do Sul. Hans Meyer, Dic Strassburger Goldschmiedejun/t, com documentos históri- cos, importantes de i365-i68i. — Pertence á Biblioteca de Sciencias Sociaes e Politicas, dirigida por G. Schmoller. Leipzig, 1881. Volume 111. Sobre a Corporação de Strasburgo. ExposiTiON uNiVERSELLE DE 1867 A PARIS, «RappOFts du jurv intematlonal, pu- bliés sous la direction de Michel Chevallier» — Secção : Joaillerie et bijou- terie. Tomo iv. ExposiTioN uNivERSELLE DE viENNE EN iSjS. Commission supérieure. France, Paris, 1875. Tome ii. Rapports. EXPOSITION INIVERSELLE INTERNATIONALE DE 1878 A PARIS. RappOFtS du jurV in- ternational. (Mariial Bernard, Roubleaux, Dugage e outros). — Paris, 1877 e 1880. Deveríamos começar por onde acabaremos, recommendando a exploração cuidadosa das seguintes obras : Provas da Historia Genealógica da Casa Real (6 volumes); Portugalice Monumenta Histórica; os Documentos históricos da cidade de Évora, do século xvi,.por Gabriel Pereira, e as suas numerosas, pe- quenas monographias, onde abundam noticias de valor; emfim, a obra Vima- ranis Monumenta Histórica, a saec. nono P. C. Vimarane, 1908, dirigida pelo Sr. Abbade de Tagilde, precioso complemento das abundantes noticias da Re- vista de Guimarães. A cidade do Norte prova que o exemplo dado pelo Mu- nícipio de Lisboa (collecção de Documentos Freire de Oliveira) frutificou. O Município do Porto parou, infelizmente, com a sua iniciativa. J. DE V. %£% l^^fcj S S^ VíZ^ttI W^M ^ A MUSICA EM PORTUGAL olpe de vista retrospectivo. — Prlliminar. — Não permitte o plano d'este brevíssimo resumo tomar o fio da historia ^ em época muito remota, pois isso obrigaria a investiga- ^ çóes forçosamente extensas. Somente se pode constatar que o desenvolvimento da arte musical adquirido na Europa depois do periodo medieval e re- presentado principalmente pelos contrapontistas flamengos, encon- trou no nosso país terreno bem disposto, e que as obras dos mais celebres d'esses contrapontistas, taes como João Ockeghem e Josquin do Prado, nos eram familiares, como se reconhece pelas referencias que lhes fazem vários escritores coevos. Princi- palmente nos séculos xvi e xvii, mestres portugueses muito notá- veis brilharam entre os mais afamados da peninsula; os nomes de Manuel Mendes, Frei Manuel Cardoso, Soares Rebello e Duarte Lobo {Eduardus Lúpus em latim, Kduardo Lopes em espanhol), foram celebrados num poema de Faria de Sousa, que os colloca a par dos espanhoes Morales, Guerrero e \'ictoria. Duarte Lobo, que viveu io3 annos, parece comtudo ter sido a figura primacial d'esse movimento, não só pelas obras que escreveu, algumas das quaes ainda chegaram até nós, como pela sua influencia e acção educativa sobre grande numero de discípu- los notáveis que teve. , EDVARDVS LVPVS m OLISIPONENSI : EccLEsiA MvsiCES pr^fex:tvs. DUARTE LOBO A musica em Portugal 273 O restaurador de Portugal, D. João IV, ínteressando-se parti- cularmente pela musica, juntou uma biblioteca riquíssima na espe- cialidade, sem duvida a primeira do seu tempo, mas que, por pouco estimada, veio a dispersar-se. A dispersão, levada a efteito principalmente nos reinados de D. Affonso VI e D. Pedro II, terminou com o terramoto de lySS. O interesse que a casa de Bragança sempre teve pela arte musical, a partir do Duque D. Theodosio, bisavô do Restaurador, e apenas interrompido nos dois reinados que citei, prolongou-se, porem, como adeante veremos, nos descendentes de D. Pedro II. Século XVUL — Todo o povo que tem linguagem sua, caracter próprio, vida autónoma, deve também possuir uma arte nacional: se não a tiver, precisa adquiri-la; se a perdeu, deve esforçar- se em recuperá-la. Portugal está hoje nesta ultima situação: perdeu, ha exactamente dois séculos, a sua musica característica, e procura agora dar-lhe novos alentos. Nunca poderá ter, nunca teve, escola própria, mas tenta adquirir um caracter distinctivo que lhe dê direito de nacionalidade. Vão-se tornando notáveis e frequentes certas tentativas para fazer entrar nos dominios da arte mais esmerada as canções tradicionaes ouvidas nos recantos das po- voações rústicas, aquelle «cantar saudoso» — segundo a frase de João de Barros — que caracteriza a melopeia dos povos penin- sulares. Esse cantar saudoso nunca deixou de existir, visto que, decorridos quatrocentos annos depois de ter sido notado por João de Barros, elle se encontra ainda não raro ecoando pelos nossos campos e serras. Somente da arte culta o desterraram as árias e recitativos garganteados pelos capadinhos romanos, que D. João V e D. José importaram juntamente com outras mercadorias, não sei se tão avariadas como aquella. A musica portuguesa começou principalmente a ser enxertada pela italiana quando a rainha D. Maria Anna de Áustria casou com D. João V (1708), trazendo de Vienna o uso da opera nos paços reaes. Com a opera vieram cantores, instrumentistas, bai- larinos, scenographos, compositores e até poetas, para comporem e executarem aquellas representações denominadas operas, que substituíram os antigos e nacionaes autos ennobrecidos pela memoria de Gil Vicente. Músicos portugueses foram enviados a Roma para beberem na própria fonte o manancial dos gorgeios 18 D. JOÃO IV Gravura de Balthafar Moncornet, Paris A musica em Portugal 275 italianos. Da escola de Nápoles vieram mestres para também aqui ensinarem as formulas da composição e o modo da execução de taes gorgeios K Os primeiros músicos alados a Itália foram: António Teixeira, em 17 17, e Francisco António de Almeida, pouco depois. Muitos outros se lhes seguiram, sendo o ultimo Marcos António Portugal. Simultaneamente, veio para Lisboa o celebre cravista Domin- gos Scarlatti, que D. João V contratou para seu serviço, em 1721, e foi mestre affeiçoado da Infanta D. Maria Barbara, mais tarde Rainha de Es- panha. Partindo Scarlatti com a sua discipula para Madrid, veio em 1762 ou- tro mestre napolitano de grande fama, David Peres, que exerceu profunda e du- radoura influencia nos com- positores nacionaes. Ficá- mos, desde então, comple- tamente italianizados. '. É justo, porem, confes- sar que o ensinamento ita- liano foi notavelmente proli- tíco: numerosos composito- res portugueses receberam esse ensinamento e produzi- ram trabalho de incontestá- vel valor na sua espécie, como se reconhece pelo que d'elles nos resta. As partituras que se conservam na Biblioteca da Ajuda dão testemunho de que a DAVID PERES Gravura de Bartolozzi Adviria-se, porem, que a arte italiana não avassalou unicamente o nosso país. A supremacia que desde o século xvii adquiriu sobre a polyphonia fla- menga, vencendo com a simples monodia o trabalho complexo dos mestres contrapontisias, tomou-se geral em toda a Europa, ou mais exactamente em todas as cortes da Europa, visto que a opera foi a principio uma arte pura- mente cortesã. 276 A musica em Portugal segunda metade do século xviii marca um periodo áureo para a musica theatral na corte portuguesa. Desde 1720, época em que as representações italianas começaram a tomar maior incremento, até á inauguração do theatro de S. Carlos, em 1793, isto é, durante setenta e três annos, cantaram-se nos theatros régios para cima de duzentas operas differentes, um terço das quaes foram escritas por músicos portugueses. As restantes eram dos autores em voga na Europa, figurando com maior numero os dois mestres napolitanos David Peres e Nicola Jommelli. Este ultimo firmara em 1769 um con- trato pelo qual se obrigou a en- viar para Lisboa copias de todas as partituras que compusesse, contrato que cumpriu até falle- cer, em 1777. Ao mesmo tempo, o theatro publico imitava o exemplo da corte, e não só companhias ita- lianas, mas também as portugue- sas exhibiam, com muita frequên- cia, operas de mistura com as farças e burletas nacionaes. Foi neste meio que se criou a cele- berrima cantora Luisa Todi e o não menos celebre compositor Marcos Portugal. Por essa época desenvolveu-se extraordinariamente entre nós o gosto pela musica, como affirma uma carta escrita em 1765: «Na musica temos feito os maiores progressos. Não ha casa onde se não ache algum instrumento musico, ou quem saiba cantar» *. Dos compositores portugueses produzidos pela escola ita- liana, ou mais especialmente napolitana, sobresaiu João de Sousa Carvalho, que esteve em Itália, e a quem coube a honra de ser Lithographia do Plutarcho Português » Carta aos sócios do Jornal Estrangeiro y em Paris, por Miguel Tibério Pedagache. A musica em Portugal 277 O successor de David Peres em todos os cargos da corte : mestre da família real, compositor e director das operas, mestre da capella e mestre de contraponto no Seminário Patriarchal, que era então a nossa primeira escola de musica. Teve por melhores discipulos António da Silva, Leal Moreira, Marcos Portugal, João José Baldi, e por ultimo João Domingos Bomtempo, alem de muitos mais que não lograram igual reputação. A par de Sousa Carvalho trabalharam outros músicos de não menor valor, que foram também pensionistas em Itália, como Luciano Xavier dos Santos, João Cordeiro da Silva, Jero- ^^ nimo Francisco de Lima e seu irmão Brás de Lima. Quasi lodos compuseram numerosas operas italianas. Leal Moreira e Marcos Portugal foram, alem d^isso, mestres nos theatros pú- blicos do Salitre e Rua dos Condes, escrevendo nessa qua- lidade muita musica para as peças nacionaes ali representa- das. As árias e lunduns que essas peças continham, e mais caiam no agrado publico, pas- savam a ser cantadas nas salas e tornavam-se populares. As- sim nasceram os dois typos que hoje se julga geralmente serem os principaes represen- tantes da musica portuguesa: a «moda» ou — segundo o eufemismo brasileiro — «modinha», que outra cousa não é senão a ária italiana amoldada ao gosto nacional; o «fado», derivado de dança africana que com o nome de «lundun» divertia as plateias populares, tornando-se favorito nos bordeis, onde recebeu a nova designação. Não constituem, decerto, estes dois typos a única substancia da mu- sica portuguesa, que em tal caso bem pobre seria; mas nelles se encontra o espirito interno que a caracteriza e tem sido notado pelos estrangeiros. Agua-forte de Sequeira 278 A musica em Portugal A par da musica theatral, também a musica religiosa italiana exerceu decidida influencia entre nós, levando-nos na orientação viciosa que frequentemente fez confundir o estilo próprio da igreja com o do theatro. Essa orientação foi boa a principio: D. João y contratara em 1729 um mestre veneziano, João Jorge, para dirigir a escola de canto religioso que fundou; era um mes- tre hábil na especialidade e criou excellentes discipulos. Entre MARCOS PORTUGAL a enorme quantidade de musica sacra dos compositores acima citados, encontram-se bastantes exemplares de bom e serio estilo; sobre todos, Luciano Xavier dos Santos produziu trabalho muito notável. Mas o gosto pelas árias dos castrados e o interesse does- tes em se tornarem indispensáveis, obrigava os autores da musica a fazerem dos textos litúrgicos assunto para elles brilharem, e assim se perdeu a noção da verdadeira musica religiosa, que entre nós se tornou raridade. A musica em Portugal 279 Século XIX. — Com a inauguração do theatro de S. Carlos (1793)9 encerraram-se para sempre os theatros privativos da corte. Leal Moreira, director e ensaiador de musica no theatro da Rua dos Condes, passou com igual categoria para o de S. Car- los, e ahi se conservou até 1800, cedendo então o logar a seu cunhado. Marcos Portugal, recemchegado de Itália. Tanto um como outro, escreveram ainda algumas operas, que se cantaram sob a sua direcção, até 1810, ultimo anno da residência de Mar- cos em Lisboa. Mesmo por mais algum tempo ainda se repetiram certas operas d'este compositor, mas depois só muito raramente os músicos portugueses teem tido accesso no nosso theatro lyrico, seja para compor ou seja para dirigir. Apenas lhe ficou o re- curso dos bailados, para os quaes Santos Pinto, de iSSg a i863, escreveu musica de valor relati- vo, seguindo-se-lhe Angelo Car- rero. Rio de Carvalho e Justino Castilho. Attenuando a falta do thea- tro italiano, adquiriu a musica maior desenvolvimento nos thea- tros nacionaes, e época houve (meado do século), em que o pu- blico recebia de mau grado qual- quer peça dramática que se apresentasse sem musica. Muitos compositores trabalharam nesse género, já collaborando em dra- mas, peças fantásticas, comedias, etc, já escrevendo verdadei- ras operas cómicas e operetas. Foi dos primeiros António José do Rego, autor dos Velhos Gaiteiros, burleta muito popular em 1814. Merecem também nota: João Evangelista Pereira da Costa, mestre ensaiador no theatro da Rua dos Condes em 1820; Jacob Osternold, que desde i836 escreveu tanto para este thea- tro como para o do Salitre; e António Luis Miro, que traba- lhou para os theatros do Salitre e Gymnasio até 1849. A par de Miro, sobrevivendo-lhe ainda alguns annos, trabalhou Santos Pinto, estreando-se em i83g com a musica para o drama de Mendes Leal Os dois renegados. Guilherme Cossoul escreveu siurros pnrro 28o A musica em Portugal algumas operas cómicas, representadas entre os annos de 1848 e i863. Mas a todos sobrelevou Joaquim Casimiro, que se fez pri- meiro notar em algumas comedias de Molière, representadas na Rua dos Condes em 1842. O trabalho de Casimiro foi abundante, attingindo a cifra de duzentas e nove peças, para as quaes escreveu musica muito apreciada pela vivacidade e frescura da inspiração. E justo mencionar neste ponto Angelo Frondoni, nas- cido em Itália mas estabe- lecido em Portugal, onde exerceu a maior parte da sua actividade artistica; tor- nou-se popularíssima a Can- ção da Saloia, intercalada numa farça que se represen- tou em 1844, canção digna de nota pelo sabor nacio- nal. Escreveu muitas peças portuguesas, representadas em diversos theatros de Lis- boa até ao anno de 1873. Monteiro de Almeida escreveu bastante musica para o theatro da Rua dos Condes, entre 1860 e 1868. Emfim, dos composito- res lisbonenses mais notáveis já fallecidos. Rio de Carvalho, Júlio Soares e F^rancisco Alvarenga, trabalharam assiduamente para o theatro nacional durante o ultimo quartel do século xix. Alvarenga foi muito. applaudido no Rio de Janeiro, onde falleceu em i883. No Porto, João Medina de Paiva, nascido em 1810; Sá Noro- nha, melodista inspirado, que trabalhou desde 1854; José Fran- cisco Arroyo, musico de grande valor pela mesma época ; José Cândido, autor da popular opereta Narciso com dois pés (1874), que teve centenas de representações; Alves Rente e António Canedo, seus contemporâneos, escreveram para uma infinidade de peças. Um logar especial é porem devido ao portuense Domingos Cyriaco de Cardoso, pela sua verve offenbachiana e pela extraor- CÀRLOS DE SEIXAS Retrato de Fr. Vieira, gravura de Daullé  musica em Portugal 28 [ dinaria habilidade em ensaiar e dirigir. As popularissimas operas burlescas Burro do Sr. Alcaide e Solar dos Barrigas, cuja musica se allia com a mais pittoresca jovialidade aos versos do mallo- grado poeta D. João da Gamara, constituem preciosos exempla- res da genuina graça nacional. Cyriaco de Cardoso nasceu no Porto em 1846, e quasi encerrou o século xix, fallecendo em Lisboa a 16 de novembro de 1900. Foram numerosos os virtuosi notáveis durante o século XIX. Não contando já com Luisa Todi, cujos do- tes de perfeitissima cantora receberam os maiores tes- temunhos de admiração em Madrid, Paris, Londres, Vienna, Berlim, S. Peters- burgo e muitas cidades de Itália e Allemanha desde 1777 até 1796; deixando mais remotamente ainda o organista e cravista José António Carlos de Seixas, que floresceu na primeira metade do século xviii, abre o caminho á brilhante plêia- de do século passado o pia- nista João Domingos Bom- tempo, nascido em Lisboa, no anno de 1773, o qual partiu para Paris em 180 1 e de lá passou a Londres, sendo muito apreciado nessas duas capitães, onde residiu alguns annos, pela sua maravi- lhosa execução. Voltou a Lisboa em 1820, e aqui fundou a pri- meira sociedade de concertos, sendo também o primeiro director do Conservatório; falleceu em 1842. As suas sonatas, concertos com orchestra e outras composições, publicadas a maior parte em Londres, são clássicas no estilo de Clementi. O clarinetista José Avelino Canongia, nascido em Oeiras no anno de 1784, saiu de Lisboa em 1806, esteve alguns annos em Paris e Nantes, passou a Londres, percorreu varias cidades da Itália e Allemanha, Espanha, dando concertos, exercendo a J. D. BOMTBMPO Gravura de VendramiDÍ, Londres i8i3 282 A musica em Portugal sua arte; veio a Portugal em 1816, estabelecendo-se definiti- vamente aqui em 1821. Era admirado pela belleza do som e primor da execução. Fez imprimir em Paris quatro Concertos e dois Themas cariados, para clarinete com acompanhamento de orchestra. Pela mesma época, primeira metade do século xix, brilhou no Porto um flautista, João Parado, fallecido em 1842, mestre muito considerado e autor de di- versas composições para o seu instrumento. A familia Ribas, oriunda de Espanha e estabelecida no Porto desde o principio do século, pro- duziu vergonteas de grande valor na arte musical. Contam-se entre as principaes: i.% João Antó- nio Ribas, nascido no Ferrol em 1799, mas criado no Porto desde a primeira infância, hábil em quasi todos os instrumentos, es- pecialmente no violino e no vio- loncello; 2.*, José Maria Ribas, irmão do precedente, que em Lon- dres, onde residiu desde 1828 até 1841, chegou a ser o primeiro flautista do seu tempo, publi- cando-se naquella cidade muitas das suas obras para flauta; 3.% Hypolito Ribas, filho de João António, também Hautista considerado no Porto; 4.*, Nicolau Ribas, violinista, que em Bruxellas estudou com Bériot. Francisco Eduardo da Costa, nascido em Lamego, em 18 19, mas criado no Porto, onde desenvolveu toda a sua actividade artística, foi excellente pianista, organista e compositor inspirado, principalmente de musica de igreja; cultivava com amor e profi- ciência a musica clássica. O autor das operas Arco de SanfAnna e Beatri^ de Portugal, PVancisco de Sá Noronha, foi também festejado, principalmente na America do Sul, como brilhante concertista no violino. Mas o violinista português que mais justas homenagens recebeu no FRANCISCO EDUARDO DA COSTA Desenho de João Correia, i85o A musica em Portugal 283 Brasil, quasi adquirindo ali foros de patrício, foi um filho do Porto, Francisco Pereira da Costa. Estudou em Paris com Garcin e Alard, tornando-se principalmente notável pela expressão e ma- jestosa sonoridade com que tocava um adagio, pelo que grangeou o epitheto de «rei da 4.* corda». Falleceu no Rio de Janeiro em 1890. Não seria justo esquecer outro bom tocador de violino, natu- ral do Porto, Augusto Marques Pinto, que falleceu em 1888. Entre os lisbonenses mais notáveis do século xix compete um dos primeiros logares a Guilherme Cossoul, que exerceu as func- ções de maestro no theatro de S. Carlos, entre os annos de 1860 e 1878. Esteve em Madrid, Paris e Londres, fazendo-se applaudir como violoncellista primoroso. Um amigo e companheiro de Cossoul nos trabalhos artisticos cumpre mencionar a seu lado: o fagotista Augusto Neuparth que, indo á AUemanha em busca de mestre que o aperfeiçoasse, mal encontrou quem o igualasse. Coevos de Neuparth e Cossoul, per- tence o logar immediato aos irmãos Croners, António (flauta) e Rafael (clarinete); Rafael Croner percorreu por mais de uma vez a America do Sul, onde o festejaram enthusiasticamente ; apre- sentou-se também no Palácio de Cristal de Londres, e ali desper- tou um enthusiasmo raro na capital inglesa. A brevidade obrigatória neste resumo só me deixa citar de passagem mais alguns nomes; serão elles: os violinistas Ignacio de Freitas (/J- i8i5), seu filho José Maria de Freitas (-J- 1867), Caetano Jordani (-J- 1860), Angelo Carrero (f 1867), Narciso Pitta (7 1893), Victor Wagner (•]- 1877), Garcia Alagarim (f 1897); os violoncellistas João Jordani (-J- 1860), seu discipulo Sérgio da Silva (•J- 1890) e o discipulo de Cossoul, Eduardo Wagner (•J- 1889); os flautistas José Gazul (-;• i865) e João Emilio Ar- royo (-J- 189(3); o clarinetista Carlos Campos (7 1888) ; o harpista Galeazzo Fontana (^|- 1876); os pianistas Duarte dos Santos, que se estabeleceu em Londres, onde gozou boa reputação de pro- fessor (•;- i855), Guilherme Daddi (-J- 1887), Eugénio Mazoni (Y 1899), José António Vieira (-J- 1894), Miguel Angelo Pereira Já disse que as operas de portugueses rarearam desde o prin- cipio do século, pela difficuldade em serem recebidas no theatro italiano ; darei agora a lista das que lograram tal ventura, depois de Marcos Portugal ter encerrado o período fecundo. 284 ^ musica em Portugal 1. Egilda di Provença, de João Evangelista Pereira da Costa, 1828». 2. // Sonâmbulo, de António Luis Miro, theatro das Laran- jeiras, i835. 3. Atar, do mesmo autor, i836. 4. Virgínia, do mesmo autor, 1840. 6. Inês de Castro, de Manuel Innocencio dos Santos, 1839. 6. Cerco de Diu, do mesmo autor, 1841. 7. Bianca di Mauleon, de José Francisco Arroyo, theatro de S. João no Porto, 1846. 8. Sampiero, de Xavier Migone, i852. 9. Mocana, do mesmo autor, 1854. 10. Beatri:{ de Portugal, de Sá Noronha, theatro de S. João no Porto, i863. 11. Arco de SanfAnna, do mesmo autor, theatro de S. João, 1867, S. Carlos, 1868. 12. Tagir, do mesmo autor, theatro de S. João, 1876. i3. Eurico, de Miguel Angelo Pereira, 1870. 14. L'Elisire di Giovine^a, do Visconde do Arneiro, 1876. i5. Beatrii, de Frederico Guimarães, 1882. 16. Laureana, de Augusto Machado, 1884; Marselha, i883; Rio de Janeiro, 1886. 17. I Dória, do mesmo autor, 1887. 18. Mário Weiter, do mesmo autor, 1898. 19. Frei Luis de Sousa, de Francisco Gazul, 1891. 20. D. Branca, de Alfredo Keil, 1888, com repetição em i88y. 21. Irene, do mesmo autor, 1896; Turim, 1893. 22. Serrana, do mesmo autor, 1899, com repetição em 1900; Coliseu dos Recreios em Lisboa, 1901 ; S. João, no Porto, 1902. AcTUAUDADE. — Começarci pelo ensino, visto que ainda d^elle não tratei. O ensino da musica era noutros tempos ministrado com profusão nas cathedraes, mosteiros e seminários, visando particularmente a musica religiosa. Nos séculos xvi e xvii sobre- saiu entre todas a escola de Évora, pela excellencia dos mestres 1 As que não tiverem indicação especial cantaram-se em Lisboa no theatro de S. Carlos.  musica em Portugal 285 que a regiam e dos discípulos que produziu. Depois tomou-lhe o passo o Collegio dos Reis, seminário instituido em Villa Viçosa pelo Duque de Bragança, D. Theodosio II. Á semelhança do Collegio dos Reis estabeleceu D. João V em Lisboa, no anno de 1713, o Seminário Patriarchal, largamente dotado, e que veio a ser a nossa escola superior de musica até aos principios do sé- culo XIX. Já em decadência, foi o Seminário absorvido pelo Conserva- tório Real de Lisboa, criado em i835 por Almeida Garrett, sendo seu coUaborador na parte musical João Domingos Bomtempo, que ficou exercendo os logares de director da secção musical e pro- fessor de piano. Muitos mestres notáveis, alem de Bomtempo, teem ensinado nesta escola, taes como: Canongia e seu successor Neuparth, dirigindo a aula de ins- trumentos de palheta ; Migone, as aulas de piano e de composi- ção ; João Jordani e Cossoul, a aula de violoncello ; Masoni, Frei- tas e Alagarim, a aula de violino; José Gazul e João Emilio Arroyo, a de flauta ; Ernesto Wagner, a de trompa, etc. Nume- rosos e bons discipulos tem produzido durante os setenta e três annos da sua existência, não se podendo, portanto, dizer com jus- tiça que a historia do Conservatório carece de paginas honrosas. Em varias épocas tem sido modificada a sua organização, e sem duvida a melhor lei que o tem regido é a actual, decretada pelo Ministro Hintze Ribeiro em 24 de outubro de 1901. Esta lei conservou a divisão primitiva do ensino em duas secções, mu- sica e declamação, cada uma com acção independente e director privativo, ambas sob a gerência artistica e administrativa de um inspector. Criou de novo um Conselho de Arte Dramática e ou- tro de Arte Musical, corpos consultivos formados de professores do Conservatório e de individues a elle estranhos, nomeados pelo Governo. É actual inspector o membro da Academia das Scien- cias, Eduardo Schwalbach, que elaborou a lei vigente e seu regu- lamento interno, auxiliado por Augusto Machado, director da secção musical e professor de canto. O ensino de musica comprehende os seguintes cursos: rudi- mentos ; solfejo preparatório de canto ; canto ; piano ; harpa ; vio- lino e violeta ; violoncello e contrabaixo ; flauta ; instrumentos de palheta ; instrumentos de metal ; órgão ; harmonia, contraponto e composição. Alem doestes cursos estabelece a lei mais as seguin- 286 "^ musica em Portugal tes classes, obrigatórias para os alumnos matriculados nas outras aulas : canto coral, musica de orchestra, musica de camará, his- toria da musica e litteratura musical, lingua italiana. O curso de rudimentos é de dois annos; os de piano, violino e violoncello dividem-se em curso geral e curso superior, com uma totalidade de oito annos ; o curso de harmonia é de três annos, continuado pelo de contraponto e fuga, que abrange mais quatro annos. Os cursos de solfejo preparatório de canto, canto individual e collec- tivo e canto theatral, constituindo o estudo completo do cantor, abrangem uma totalidade de sete annos. Os cursos dos outros instrumentos são de quatro, cinco ou seis annos, conforme o ins- trumento. Os professores estabelecidos pela lei são; dez de i.* classe, com o ordenado annual de Soo^ooo réis ; dois de 2.* classe, com 400^000 réis; onze auxiliares, com iSo^r^ooo réis; quatro adven- ticios, contratados temporariamente por quantia não superior a 240.^000 réis. O professor de lingua italiana vence a gratificação de 200^000 réis. As classes de orchestra, camará e canto coral são dirigidas por professores dos outros cursos, com a gratifica- ção de i2o.rooo réis'. Os logares de professores são dados por concurso publico ; a lei estabelece, porem, uma excepção, dispensando de concurso e deixando ao arbítrio do Governo a nomeação de «qualquer pro- fessor estrangeiro que pela sua provada aptidão julgar necessário para o aperfeiçoamento do ensino». Uma applicação muito latitudinaria doesta excepção tem graves inconvenientes. O Conservatório é frequentado por trezentos alumnos em me- dia, os quaes são leccionados por vinte e oito professores, alem dos monitores nomeados pela escola em numero indeterminado. Os livros de estudo são obrigatórios, approvados pelo Conse- lho da Arte Musical, de cinco em cinco annos, ou antes de con- cluído este prazo se o professor de qualquer curso justificar a conveniência de ser substituída alguma das obras adoptadas. A frequência dos alumnos é gratuita, exigindo-se-lhes apenas o pagamento de pequenas propinas pela abertura e encerramento A classe de historia c literatura ainda não funcciona. A musica em Portugal 28? de matricula. As provas de aproveitamento são dadas annual- mente em exame publico, perante um jury de três professores e dois membros do Conselho da Arte Musical, que dá a classifica- ção de approvado ou adiado; dois adiamentos successivos na mesma disciplina importam exclusão. Alem dos exames ha con- cursos a prémios, e a admissão aos cursos superiores faz-se tam- bém por meio de concurso. Uma circunstancia se dá neste Conservatório que, sendo aliás útil, não tem equivalente nos estabelecimentos congéneres do es- trangeiro : é a admissão de examinandos não alumnos. A princi- pal utilidade doesta medida é dar ás pessoas que estudam parti- cularmente um certificado do seu aproveitamento. O canto coral nas escolas primarias está consignado na lei de instrucção publica desde 1878, mas a sua pratica é ainda rara e imperfeita. Uma das causas doesta falta deve attribuir-se necessa- riamente ás escolas normaes, onde os futuros professores não praticam esta matéria nem lhe ligam a menor importância. Con- sequência natural, sociedades orpheonicas também não ha, embora se tenham feito tentativas em differentes épocas para vulgarizar o canto harmonizado ; geralmente quando se canta nas escolas ou nas sociedades populares é em unisono. Em compensação pullu- lam por todo o país, até nas mais recônditas aldeias, as «socie- dades philarmonicas», constituindo bandas de musica militar; são também muito populares as «tunas» ou «sol-e-dós», conjunctos formados principalmente por instrumentos de cordas dedilhadas. Se passarmos da arte popular para a arte culta, reconhecere- mos que a época actual é animadora e que os músicos em Portu- gal acompanham de perto a evolução moderna. Um artista exuberante de talento, que infelizmente deixou ha pouco de existir, mas que pelo modernismo das suas tendências pertence de direito á geração actual, Alfredo Keil, produziu obras de incontestável valor em diversos géneros. Não só nas três ope- ras acima mencionadas, que se cantaram em S. Carlos, mas na cantata Patrie, no poema Orientaes, em outras composições com orchestra e nos numerosos trechos publicados para canto e para piano, encontra-se a flux trabalho de um musico activissimo, an- sioso de produzir e sedento de gloria. Mais valioso trabalho ainda elle deixou inédito entre a multi- dão de composições que completou, mas não chegou a publicar, 288 A musica em Portugal e também na grande quantidade de esboços por concluir, entre os quaes a partitura de uma opera sobre a descoberta da índia e outra intitulada Pedro o Ruivo. Alfredo Keil era artista de grande coração e patriota devotadissimo, como provam os assuntos das suas operas; muitas vezes se inspirou elle, com subida arte, na musa nacional. Era seu desejo intimo criar a opera lyrica portu- guesa, e nessa intenção tinha composto a Serrana sobre poema português, escrito por Henrique Lopes de Mendonça. Os actuaes compositores mais em evidencia, que pelas suas obras mostram uma orientação moderna, são Augusto Machado, Júlio Neuparth, Francisco Gazul e, recentemente, João Arroyo. Augusto Machado possue bagagem artistica de considerável valor, pois que, alem das três operas já mencionadas, tem apre- sentado nos theatros nacionaes muitas operas cómicas, operetas e outras peças com musica; concluiu uma opera italiana que espera o favor de ser cantada em S. Carlos, e outra portuguesa que brevemente apparecerá. Muitas das suas composições estão publi- cadas. A tendência ou maneira — como se diz dos pintores — que Augusto Machado tem manifestado é puramente francesa, mas algumas vezes tem ido á fonte nacional buscar uma ou outra nota característica. Júlio Neuparth, professor de harmonia no Conservatório, tem produzido musica syraphonica e de camará — entre ella um bello quartetto — e peças theatraes portuguesas, alem de vários trechos para canto e para piano, que estão publicados. Francisco Gazul, também professor no Conservatório e ex- cellente harmonista, fez da sciencia de compor uma occupação principalmente profissional, e no exercício d'ella escreveu e arran- jou durante alguns annos para o theatro da Trindade em Lisboa enorme quantidade de musica com que ornou peças de todos os géneros representadas naquelle theatro. Da parte mais artistica do seu trabalho deve destacar-se a opera Frei Luis de Sousa, um Libera-me que pode considera r-se entre nós raro exemplar de boa musica religiosa, e alguns trechos symphonicos, dando testemunho de sciencia technica. João Arroyo surgiu ultimamente de improviso, como um quasi milagre. Filho de José Francisco Arroyo (vid. acima este nome) era muito conhecido pela sua brilhante carreira politica, mas de musica apenas se sabia que a cultivava como amador nos mo-  musica em Portugal 28q mentos de repouso. Repentinamente, e começando por onde é costume acabar, apresenta uma bella opera — Amor de Perdi- ção — e consegue (não menor milagre) fazê-la cantar em S. Car- los, com o maior êxito e unanimes applausos, durante duas épo- cas consecutivas, em 1907 e 1908. O Amor de Perdição foi a primeira opera de compositor português que se cantou em S. Carlos no século xx. Quanto aos compositores que actualmente trabalham para os theatros populares, são mais notáveis : Joaquim Delnegro, que de óptimo trompista se fez autor e arranjador de musica para toda a qualidade de peças theatraes ; Filipe Duarte, autor de duas fes- tejadas operetas, a Lancha Favorita e o Oito, esta ultima com letra de D. João da Camará ; Luis Filgueiras, Dias Costa, Calde- ron, etc. Cumpre ainda notar entre os compositores : Frederico Guima- rães, autor da opera Beatri\; o pianista António Soller, cujas obras publicadas para piano são muito numerosas ; o pianista Oscar da Silva, também autor de varias obras publicadas para o seu instru- mento; o organista Costa Pereira, que se dedicou á musica religiosa; António Taborda, mestre da banda de musica da Guarda Munici- pal de Lisboa ; e outros que a brevidade me não deixa mencionar. Os autores de valsas e obras congéneres para piano são mui- tos e as suas obras contam-se por centenas ; entre elles sobresaiu Fabião Figueira, ha pouco fallecido, cujas valsas tiveram voga. Ultimamente teem saido do Conservatório alumnos com apro- veitáveis aptidões, os quaes teem feito promettedores ensaios; mas a carreira de compositor não offerece estimulo para com- mettimentos de grande monta, que podem considerar-se verdadei- ras excepções, exigindo desafogo nos recursos materiaes. A luta pela vida obriga a rastejar quem não pode voar. Executantes de primeira ordem temo-los em José Vianna da Motta e Alexandre Rey CoUaço ; sobre o valor de ambos não ha que dizer, tão provado elle está e tão grande é. Resta só frisar que nas suas producções vibram muitas vezes as cordas da lyra popular, ennobrecendo-a com arte superior. Francisco Bahia, professor no Conservatório a par de Collaço, é também pianista de muito merecimento. Teria logar á frente dos primeiros pianistas portugueses o decano d'elles, Arthur Napoleão, natural do Porto, se o Brasil 2QO ^ musica em Portugal não o considerasse de ha muito seu glorioso e dilecto filho adoptivo. E outro português illustre residente em país estranho, com direito a honrosa menção nesta fugitiva galeria dos nossos prin- cipaes músicos, é o primoroso cantor Francisco de Andrade, tão applaudido na Allemanha e tão estimado na corte de Berlim. Para concluir: Bernardo Moreira de Sá é um nome que a justa critica manda não esquecer; litterato, mathematico, violi- nista e compositor, tem, com as suas múltiplas aptidões, prestado os maiores serviços á cultura da arte musical no nosso país. E como Moreira de Sá no Porto, Michelangelo Lambertini em Lisboa, com o seu enthusiasmo artístico, illustração e saber technico, trabalha também devotadamente no mesmo sentido. Lisboa, 1908. Ernesto Vieira. índice Pag. Advertência preliminar — por António Arroyo v O PAÍS PORTUGUÊS — O solo, O cHma e a paisagem — por António Arroyo. O Minho I Trás-os-Montes ... 1 1 O Douro i5 As Beiras 24 A Serra da Estrella 3o Aveiro, Coimbra 3ó Estremadura 43 Cintra 47 O Tejo e Lisboa 53 Alemtejo 60 Algarve 66 O POVO PORTUGUÊS — pof Antonio Arroyo 73 Praias e estações thermaes — Portugal, estação de inverno — por An- tonio Arroyo 101 As praias portuguesas io3 Aguas e estações thermaes 119 Rheumatismo e doenças da pelle 120 Doenças da pelle 128 Doenças das vias digestivas i3i Doenças diversas ... 133 2Q2 Índice Pag. Doenças das vias respiratórias e arthritismo iS; Aguas purgativas i38 Portugal, estação de inverno iSq A HABITAÇÃO EM PoRTUGAL — por João Barreira 147 Arte decorativa portuguesa — por Joaquim de Vasconcellos. l 17Q II 188 A ARCHiTECTURA EM PoRTuGAL (Breve noticía sobre) — por João Barreira 209 OuRivEZARiA PORTUGUESA — Estudo historico (até fins do século xv) — por Joaquim de Vasconcellos. I. — Arte pre-historica e proto-historica 233 II. — Primeiro periodo christão e Idade Media (até i5oo) .... 249 Conclusão : Inventários. Facilidades para o Estudo 259 Fontes de consulta 264 A MUSICA EM Portugal — por Ernesto Vieira. Preliminar 271 Século XVIII 273 Actualidade 284 Erratas principaes 2q3 ERRATAS PRINCIPAES Pag. 68 — linhas 23 e 24 — em logar de : vem ajuntar-se a palmeira do esparto — ler: vêem ajuntar-se a palmeira e o esparto. Pag. 119 — linha 17— em logar de: mais